Novo dicionário do Itamaraty

Brasil tira de textos gênero e termos de consenso por 25 anos ao usar visão conservadora com base em religião

Jamil Chade Colaboração para o UOL, em Genebra Fábio Machado

Não são raras as ocasiões em que diplomatas entram madrugada adentro negociando um texto de um acordo internacional. No centro da mesa, está o choque de interesses nacionais. Mas, no papel, aquela visão de mundo precisa ser traduzida em palavras. E nem sempre encontrar um consenso sobre o uso de palavras e termos na diplomacia é um trabalho fácil.

A realidade é que, em política externa, as palavras têm um enorme peso. Em 2002, num discurso diante dos novos formandos do Instituto Rio Branco, o então chanceler Celso Lafer já confirmava a relação entre a palavra e a atuação diplomática. "O poder da diplomacia é, em larga medida, o poder da palavra", disse. A turma que estava se formando ganhou o nome do filólogo Antonio Houaiss.

Consciente do peso das palavras para redesenhar uma visão de mundo, a nova administração do Itamaraty sob governo de Jair Bolsonaro (PSL) já imprimiu seu próprio vocabulário nos últimos seis meses e distribuiu orientações aos postos do Brasil pelo mundo sobre o que dizer. E, acima de tudo, o que não dizer.

Pelas embaixadas do Brasil espalhadas em diferentes continentes, o novo "dicionário" da diplomacia brasileira abandona palavras usadas por décadas, introduz novos termos, resgata formulações do passado e, assim, traduz em um novo léxico uma visão de mundo muito particular do chanceler Ernesto Araújo, dos discípulos do escritor Olavo de Carvalho e de grupos evangélicos mais conservadores.

Uma visão que tenta reverter um suposto "marxismo cultural", que, na visão do chanceler, teria passado a também influenciar as entidades internacionais e a diplomacia.

Parte do movimento em busca das novas palavras é informal, com diplomatas tentando se adaptar à nova ideologia de seus chefes. Mas outra parte da criação desse novo léxico é consciente e estrategicamente pensada.

Não demorou para que embaixadores começassem a receber, em telegramas, instruções precisas sobre as palavras que deveriam sumir.

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Palavra "gênero" incomoda o Brasil

No início de julho, o Brasil surpreendeu a muitas delegações na ONU ao exigir que o termo "gênero" fosse abolido dos textos de resoluções de diferentes assuntos. Pelo novo dicionário do Itamaraty, o termo deve ser substituído pela frase "igualdade entre homens e mulheres". A meta é simples: reivindicar que o que vale para o Brasil é o sexo biológico, e não sua construção social.

Um exemplo prático: a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, participou de um debate sobre igualdade de gênero em Nova York. Em seu discurso, preferiu a formulação "igualdade entre homens e mulheres".

Num texto que serve como base para a candidatura do Brasil a mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU, por exemplo, o Itamaraty não faz qualquer referência à palavra "gênero" ao explicar o que será sua luta ao promover o direito das mulheres.

Segundo o texto, o Brasil tomará "como premissa o texto constitucional brasileiro que estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações".

O Brasil tenta explicar a mudança. "O governo tem buscado esclarecer seu entendimento sobre expressões e termos que considera ambíguos", apontou a chancelaria ao UOL em nota. "O entendimento de que 'gênero' é sinônimo de sexo masculino ou feminino baseia-se na igualdade entre mulheres e homens, conforme estabelecido pela Constituição Federal, a qual não cita o termo 'gênero'."

O Itamaraty também afirma que o governo continua comprometido com o fortalecimento dos direitos humanos das mulheres e a eliminação da violência, além defender os direitos homossexuais. "Nos foros internacionais em que atua, o Brasil tem igualmente defendido os direitos de pessoas LGBTI+. O país integra as principais iniciativas internacionais em defesa dos direitos de pessoas LGBTI+ na AGNU [Assembleia Geral das Nações Unidas], CDH [Comissão de Direitos Humanos] e OEA [Organização dos Estados Americanos], entre outros foros", disse.

Inconformados, diversos países ocidentais lembraram que, hoje, existem mais de 200 documentos oficiais, tratados e leis que citam explicitamente o termo "gênero". Um abandono da palavra significaria um retrocesso de 25 anos nos debates.

Veto a "direitos sexuais"

Na mesma linha, o Brasil passou a vetar o uso do termo "direitos sexuais e reprodutivos", já que a interpretação seria de que a frase abriria uma brecha para o reconhecimento do aborto. Há uma semana, no Conselho Econômico e Social da ONU, o Brasil se absteve em votações de resoluções que apresentavam tais palavras.

Ao se explicar, o governo indicou ao UOL que a "posição brasileira tem como base o princípio da inviolabilidade da vida, sempre de acordo com a legislação brasileira". "Portanto, o governo não favorece referências em documentos internacionais que possam imprimir conotação positiva ao aborto", disse a chancelaria, reforçando que o aborto é ilegal no país, não sendo passível de punição em três casos (risco de vida da mãe, estupro e anencefalia).

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Feminismo? Só se acompanhado por grupos religiosos

Entre delegações estrangeiras, surpreendeu ainda uma manobra feita pela diplomacia brasileira na ONU para tentar tirar de textos oficiais referências a "grupos feministas". Para que tal termo fosse mantido em um dos projetos de resolução, o Itamaraty exigiu que outro grupo também fosse reconhecido como tendo contribuído para a situação das mulheres: os grupos religiosos.

Numa das reuniões para debater um projeto de resolução da ONU, o Brasil ainda fez questão de que se retirasse do texto uma afirmação de que barreiras estabelecidas pelas religiões poderiam ser barreiras à defesa das mulheres. O ponto é que a religião jamais será um obstáculo.

A defesa da fé, porém, se choca com uma realidade já descrita em informes da ONU em que meninas pelo mundo acabam tendo seus direitos minados por conta da interpretação de preceitos religiosos ou de tradições locais. Ou mesmo de suas manipulações.

A manobra do Brasil foi duramente criticada nos bastidores da ONU, com delegações acusando o governo de estar "chantageando" os demais países.

Entre diferentes delegações europeias, fazer referências a grupos religiosos é considerado como um risco, já que esses termos em resoluções poderiam ser usados por países islâmicos como uma forma de limitar os direitos de mulheres.

Segundo os europeus, o Brasil sabe da resistência que existe pela inclusão do termo "grupo religioso" e interpretaram o gesto como uma forma de bloquear as referências a "grupos feministas" em resoluções da ONU.

Mais "soberania", menos "global"

Não foram só as questões relacionadas a mulher ou sexo que passaram a ser alvos do novo "dicionário" diplomático brasileiro.

Muitos dentro do Itamaraty apontam que o início da transformação no vocabulário da chancelaria se deu quando, de forma surpreendente, o Itamaraty renomeou seus departamentos. Um deles ganhou o nome de Secretaria de Assuntos de Soberania Nacional, o que agrupa as divisões que estavam antes sob a Subsecretaria de Política Multilateral.

Sob o termo "soberania" agora estão temas como direitos humanos e outros aspectos sociais. Entre parte dos diplomatas, a mudança foi interpretada como um sinal de que, nos fóruns multilaterais, o foco do Brasil será o da defesa do interesse nacional e da soberania. E não dos desafios globais.

A mudança não ficou apenas na placa da porta do gabinete dentro do palácio do Itamaraty. Aos poucos, essa mudança foi se transformando em um novo comportamento do governo em reuniões.

Uma das consequências foi a decisão de se evitar a palavra "global" em textos oficiais, em resoluções e em discursos em nome do Brasil.

Sua eliminação dependeria do contexto. Numa das resoluções sob debate na ONU, o termo "desafios globais" seria trocado por "desafios em comum".

A ideia é que não existem realidades globais, mas apenas desafios que seriam comuns a todos. Na prática, o Brasil mantém seu espaço soberano e evita aderir a princípios e padrões universais.

Questionando o "globalismo"

Tampouco o Itamaraty gosta da ideia de que os discursos de seus diplomatas tragam o termo "sistema internacional". Sempre que possível, os representantes nacionais terão de dar um enfoque no papel dos Estados soberanos. Portanto, "sistema internacional" se transformaria em "sistema de nações" ou simplesmente "Estados-membros".

A ofensiva tem um motivo claro e que, neste caso, não tem relação com a religião. No Itamaraty, uma das dimensões da política externa tem sido o questionamento ao que chamam de "globalismo". O conceito se refere supostamente a um projeto político de um governo global.

Na visão do governo brasileiro, tal proposta é uma afronta à soberania e às culturas nacionais.

Há poucas semanas, a chancelaria chegou a promover um seminário para debater essa vertente de pensamento. Ernesto Araújo, chanceler e discípulo de Olavo de Carvalho, também mantém um blog "contra o globalismo".

A vertente da diplomacia também mudou. O termo tão badalado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva --"a cooperação Sul-Sul"-- também é visto com certa suspeita na atual gestão.

Por anos, tal conceito demonstrava uma certa postura de resistência de parte dos países emergentes em relação ao poder e influência dos países ricos. Hoje, a preferência é por termos como "cooperação entre nações".

Brasil fora de exercícios diplomáticos

Em alguns outros casos, há um temor por parte da sociedade civil de que haja uma resistência por parte de alguns postos da diplomacia brasileira em fazer referências à "Agenda 2030", uma série de metas que os governos assumiram para os próximos dez anos no âmbito social e ambiental.

O governo afirma que "o Brasil não deixou de empregar os termos Agenda 2030 e desenvolvimento sustentável, tampouco se dissociou do documento".

"No nível do governo federal, a institucionalidade de acompanhamento e implementação da Agenda 2030 tem passado por revisão, de forma a aprimorar as políticas de desenvolvimento sustentável no Brasil", explicou o Itamaraty, indicando que país participará do Foro Político de Alto Nível deste ano, na sede das Nações Unidas, em Nova York.

Mas, num gesto pouco comum na diplomacia, o governo brasileiro se retirou da revisão de suas políticas públicas no setor social e ambiental que ocorreria justamente durante o Foro Político em Nova York, nesta semana.

Um dos argumentos usados pelo Planalto para explicar o gesto a interlocutores é que a Presidência de Jair Bolsonaro não iria participar de um exercício diplomático com base em resultados de governos anteriores.

Na ONU, porém, esses resultados não são considerados como dados ou políticas de um governo, e sim de Estado. Além disso, a sabatina não avalia apenas o que foi feito. Mas também os programas que estão sendo estabelecidos para reduzir pobreza, doenças e situações de violações de direitos pelos próximos dez anos.

A Revisão Voluntária Nacional na Assembleia Geral da ONU tem como objetivo avaliar e monitorar o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 por parte de um Estado. Entre os assuntos que seriam examinados estão educação, meio ambiente, saúde, acesso a terras, fome e outros aspectos sociais.

Numa nota, o Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 e a Rede ODS Brasil, grupo de ONGs com foco no acompanhamento os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, repudiaram a atitude do governo e cobram responsabilidade.

"Externamos nossa preocupação com o afastamento, cada vez maior, do compromisso que o Estado brasileiro assumiu em 2015, junto com outros 192 países-membros da ONU, de implementar um modelo de desenvolvimento voltado à prosperidade, com respeito às pessoas e ao planeta, orientado pela paz e viabilizado através de parcerias multissetoriais inclusivas, que resultem em serviços acessíveis e de qualidade para todos", disseram os grupos.

Nos últimos meses, vários incidentes marcaram a relação entre o Brasil e a ONU, inclusive o cancelamento de eventos de meio ambiente. "Tal desistência é mais uma prova do rechaço às instituições multilaterais como a ONU", alertaram.

O Itamaraty explicou sua decisão, dizendo que a apresentação dos relatórios é voluntária. "É, portanto, de livre escolha dos países a decisão de apresentar um RNV [relatório], bem como o ano de apresentação, seu conteúdo e formato. Encoraja-se que, até 2030, os países apresentem ao menos dois RNVs", explicou.

Liberdade para alguns

Mas nem todo o léxico do Itamaraty hoje busca desafazer anos de progressos na ampliação de direitos. No caso específico da Venezuela, os discursos do Brasil na ONU passaram a falar da necessidade de uma ação para "libertar" o povo venezuelano de uma ditadura.

Tal termo não vale para a Arábia Saudita e seu príncipe Mohamed Bin Salman, com quem Eduardo Bolsonaro esteve fazendo selfies, além de ser acusado de envolvimento na morte do jornalista Jamal Khashoggi e de conduzir uma repressão violenta em seu país.

Os mesmos sauditas que são um dos poucos que apoiam a agenda ultraconservadora e o novo dicionário da nova diplomacia brasileira.

Novo dicionário da chancelaria brasileira

  • Trocar "igualdade de gênero" por "igualdade entre homens e mulheres"
  • Trocar "violência com base em gênero" por "violência com base em sexo" - objetivo é reforçar que o sexo é biológico e não uma construção social
  • Trocar "treinamento com base em gênero" por "treinamento que leve em conta temas de mulheres"

Objetivo é reforçar que o sexo é biológico e não uma construção social

  • Eliminar o termo "direitos sexuais e reprodutivos"

O objetivo é evitar abrir uma brecha para o reconhecimento do aborto como escolha, fora dos termos previstos em lei

  • Referência ao papel de "grupos feministas" só deve ser aceita se for acompanhada por "grupos religiosos" na mesma frase
  • Vetar usar a religião como obstáculo aos direitos humanos

O objetivo é fortalecer grupos conservadores, como os evangélicos, base de apoio do governo Bolsonaro

  • Trocar "desafios globais" por "desafios em comum"
  • Evitar "sistema internacional", trocando-o por "Estados-membros" ou outras formulações
  • Evitar termos como "cooperação Sul-Sul"
  • Reforço do termo "soberania"

O objetivo é combater o que o Itamaraty chama de globalismo, que afrontaria as culturas nacionais e a soberania brasileira

Opinião: última mudança tão dramática aconteceu pós-1964

Ex-ministro e embaixador Rubens Ricúpero escreve artigo

Em diplomacia, a precisão e o sentido das palavras são fundamentais. Basta lembrar a importância que teve na época de Jânio Quadros e de San Tiago Dantas a expressão "política externa independente", na qual o adjetivo "independente" contrastava com a política externa anterior do "alinhamento automático".

Outras palavras que até hoje resumem um pensamento complexo foram as da célebre expressão "congelamento do poder mundial", inventada pelo diplomata e ministro de João Goulart [1961-64] Araújo Castro para definir a estrutura de poder imposta pelas superpotências.

Ou, em sentido positivo ou negativo, a utilização de lemas breves com a intenção de resumir o espírito de uma política, tal como o "pragmatismo responsável" de Geisel-Silveira ou a "política externa ativa e altiva" de Lula-Celso Amorim.

Nos dias atuais, quem não tiver sensibilidade para utilizar expressões como "desenvolvimento sustentável" ou "igualdade de gêneros" escolhe voluntariamente a automarginalização, a situação de pária em relação à esmagadora maioria da humanidade.

Creio que a última vez em que ocorreu uma mudança tão dramática de linguagem na diplomacia brasileira foi justamente logo depois do golpe militar de 1964.

De uma política externa independente, que recusava a lógica do automatismo do alinhamento da Guerra Fria e valorizava a soberania e o interesse nacional, passou-se subitamente ao uso de palavras e expressões como "soberania limitada", "fronteiras ideológicas", "força interamericana de paz" (para as intervenções) e a famigerada expressão de Juracy Magalhães "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil".

Até hoje, os adeptos desse tipo de política tentam explicar o sentido dessa infeliz expressão.

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