O lixo do luxo

Fome e pobreza levam pessoas a buscar sustento em lixeiras de arranha-céus em SC

Hygino Vasconcellos (texto) e Caio Cezar (fotos) Colaboração para o UOL, em Balneário Camboriú (SC) Caio Cézar/UOL

Em uma cidade acostumada com luxo e imóveis milionários, a pobreza quase passa em branco.

Nas ruas de Balneário Camboriú, no litoral catarinense, placas se espalham com uma recomendação: "Não dê esmola". A frase é escrita em letras garrafais e maiúsculas, como um grito na linguagem das redes sociais.

Na cidade, praticamente não há lixeiras abertas ou contêineres de calçada. Ao menos, essa é a realidade nas duas quadras mais próximas do mar, onde se concentram a maior parte dos arranha-céus conhecidos por sombrear a areia da praia.

O lixo fica literalmente escondido em "casinhas" de alvenaria, que possuem até porta para evitar que os restos fiquem à mostra. Algumas estão na mesma parede do prédio, enquanto outras ficam mais afastadas, podendo ser confundidas com estações de gás.

As "casinhas" de lixo garantem o sustento de parte da população. Algumas pessoas vêm de cidades vizinhas para revirar os sacos.

É o caso do paraense Wendlei de Oliveira Machado, 37, que mora com um amigo em Camboriú. Montador industrial e soldador, começou a catar lixo após ficar desempregado, em 2017, em Goiânia.

Após passar por diferentes cidades do país, chegou ao litoral catarinense em março de 2020, em plena pandemia, e inicialmente ficou abrigado no salão de uma igreja.

Apesar das placas nada acolhedoras, o paraense consegue tirar entre R$ 50 e R$ 300 por dia com a venda de garrafas pet, latinhas e papelão encontrados nas "casinhas".

Notou, com certo pesar, que os preços nas recicladoras baixaram. O quilo do papelão foi de R$ 1,50 para R$ 1. "Explicaram para nós que foi por causa da alta do dólar, da Bolsa de Valores", diz.

No dia em que conversou com a reportagem, o catador carregava nos próprios ombros duas sacolas pesadas com latinhas e outros metais. Ia à recicladora trocar o que recolheu por dinheiro.

No percurso, chegou a avistar caixas de papelão do outro lado da rua, mas acabou deixando para trás. "Não consigo carregar mais. Fica para outro", conta.

Normalmente, o paraense aluga um carrinho, que permite juntar mais material e poupar força. Paga R$ 50 por dia. Porém, naquele dia decidiu não pegar emprestado porque iria ganhar um desses veículos.

Naquele dia, fez três viagens dos arranha-céus até a reciclagem, em Camboriú. Caso estivesse com o carrinho, faria apenas uma, no final do dia.

Machado conta que acorda cedo e já vai para a rua. Apesar da oferta de restos de alimentos nas "casinhas", diz que não procura comida nesses espaços. "Eu ganho muita coisa na rua. Às vezes, paro num restaurante e me oferecem uma marmita. Ou mesmo moradores de prédios vêm com um prato de comida."

Uma semana depois, cinco catadores foram encontrados pela reportagem em pontos diferentes da cidade. Acompanhado da companheira, Henrique Aparecido Reis Ferraz, 47, revirava uma das casinhas de lixo atrás da "riqueza" da cidade, nas palavras dele.

"Por dia eu não tiro menos de R$ 100. Dá para tirar quase R$ 3.000 por mês", conta o catador, que mostra o carrinho carregado com panelão, latinhas e ferro.

Nas lixeiras, o casal não procura por comida, mas volta e meia são surpreendidos por doações. "Tem uma peixaria que sempre nos dá alguma coisa. Ganhamos esse saco de sardinha. Isso aqui de noite com uma cervejinha vai ser ótimo. Às vezes nos entregam cestas básicas. A gente não recusa, né?"

Henrique trabalhava na construção civil como servente, mas há 18 anos passou a recolher material reciclável e o que era complemento de renda virou ganha-pão. Hoje, encara as ruas asfaltadas para tirar o sustento.

Próximo do limite com Camboriú —e longe da praia—, a dona de casa Valéria Machado, 59, também encontrou na reciclagem uma maneira de pagar as contas. "Eu recolho aqui na volta de casa mesmo. Antes a minha irmã me ajudava, mas agora faço sozinha."

Toda sexta-feira, o marido dela leva os materiais que ela recolheu até a reciclagem e consegue tirar entre R$ 80 a R$ 100. "Dá para pagar ao menos o gás, que es caro, né?"

Com o marido aposentado, ela até colocou algumas peças da casa para alugar. "Acabou de vagar essa aqui do lado. Tô pedindo R$ 800. Tomara que alugue logo", diz.

Projeto queria multar quem pede esmola

Em 2017, um projeto foi aprovado na Câmara de Vereadores com a intenção de proibir que moradores de rua pedissem dinheiro nos semáforos. Na época, a justificativa era o risco com a segurança do trânsito. Sem a sanção do prefeito, a proposta foi arquivada.

"Sabemos que nosso município é uma cidade turística, por isso é inadmissível que em nossos semáforos se amontoem pessoas com o objetivo de fazerem apresentações, vender mercadorias e pedir contribuições financeiras, trazendo assim um grande prejuízo ao trânsito de nossa cidade", escreveu no projeto de lei o vereador Marcos Augusto Kurtz (antes no então PMDB e agora no Podemos).

Caso fosse aprovada, a lei estabeleceria advertência e pagamento de multa de R$ 662,14 a R$ 3.310,70.

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