No Dia dos Namorados de 2009, eu estava gripada. Não que eu lembre. Sou conhecida por ter memória ruim. O namorado da época também não se recorda. Quem guarda a lembrança desse detalhe da minha vida é a Droga Raia.

O banco de dados da empresa, que é parte do grupo RaiaDrogasil, a maior rede de farmácias do Brasil, registra todas as compras que fiz desde 2008. Data, local, produto, valor pago e desconto oferecido. Do remédio de receita controlada ao cotonete.

Ali estão praticamente todas as doenças que tive e todos os métodos contraceptivos que usei nos últimos 15 anos. Nem minha família, meus amigos, médicos e convênio sabem tanto sobre minha saúde quanto a RaiaDrogasil.

Esses dados —os meus e os de 48 milhões de pessoas— estão sendo usados por uma empresa da mesma rede, a RD Ads, para ganhar dinheiro com anúncios.

O anunciante entra em contato com a RD Ads, diz qual público quer atingir e a empresa faz a busca no banco de dados da RaiaDrogasil. Quem toma antidepressivo, por exemplo. A propaganda é então direcionada a essas pessoas não só no site da farmácia, mas nas redes sociais e no YouTube.

O que permite que uma empresa privada, negociada em Bolsa, acumule dados sobre tantas pessoas? A explicação está na pergunta mais feita nas farmácias do Brasil: "Qual é o seu CPF?".

Em junho, o CEO da RD Ads cometeu um sincericídio em um podcast voltado para investidores: pedir dados pessoais nas farmácias dos Estados Unidos seria caso de polícia.

Se você perguntasse o social number nos Estados Unidos, acho que iam chamar a polícia. Aqui, 97% dão o CPF para ter um desconto na farmácia. Vitor Bertoncini, CEO da RD Ads

A promessa é que, se der o CPF, o cliente terá descontos que passam de 70%. Mas, na maioria das vezes, o preço "sem descontos" das farmácias é meramente fictício.

Uma caixa com 12 comprimidos de um genérico do anti-inflamatório nimesulida custava R$ 31,78 na RaiaDrogasil, em São Paulo, sem o CPF. Já com o CPF, o preço despencava para R$ 8,50. Um desconto tentador de 73%.

Sabe quanto uma rede de hospitais privados pagou pela mesma caixa de nimesulida? R$ 4,39. E qual foi o preço registrado nas compras feitas por órgãos públicos? R$ 1,08.

O preço de R$ 31,78 não representa o valor real, só está ali para você dar o CPF.

Essa chantagem ocorre sob a vista grossa do Estado, que regula o preço dos remédios no Brasil. Existe uma planilha que estipula quanto cada medicamento pode custar, no máximo. É a tabela da Cmed (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), ligada à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

No caso da nimesulida, os R$ 31,78 cobrados pela RaiaDrogasil sem o CPF são justamente o valor máximo permitido pela tabela. Quer dizer, o órgão público autoriza que o consumidor pague 2.800% a mais do que produto custou em compras públicas.

A nimesulida não é exceção. A distorção da tabela da Cmed é geral. Isso permite que indústria e farmácias pratiquem preços fictícios e peçam nossos dados para conceder descontos também fictícios.

Em nota, a RaiaDrogasil disse que "não condiciona concessão de descontos à identificação pessoal" e que os descontos são "reais". Em todas as unidades visitadas pela reportagem, no entanto, foi informado que o desconto só seria concedido se fosse informado o CPF.

Farmácias se aproveitam dos elevados valores da tabela da Cmed, que são fictícios, e concedem 'descontos' sobre eles. Os consumidores ficam com a falsa impressão de que estão pagando muito menos, quando na realidade aqueles são os preços reais dos medicamentos.

Caroline Miranda, pesquisadora da UFRJ, que analisou a precificação de medicamentos

Picanha e biometria

Ninguém entra em um açougue, uma loja de roupas ou um posto de combustível e dá o CPF para saber o preço do produto.

Na hora de pagar, você pode até se identificar para ganhar desconto de algum programa de fidelidade, mas os valores da picanha, do "cropped" e da gasolina não vão cair pela metade se você passar seus dados, como ocorre com os medicamentos.

E tem mais: a picanha, o "cropped" e a gasolina não contam grandes segredos sobre você. No máximo, que não é vegetariano, que segue a moda e que anda de carro.

Com as farmácias é outra coisa. Elas sabem alguns dos nossos maiores segredos. No meu caso, conhecem detalhes íntimos da minha vida que, até agora, pouca gente do meu convívio pessoal sabia.

Sei disso porque pedi que as farmácias onde mais comprei nos últimos anos me enviassem os dados que mantêm a meu respeito. É um direito previsto pela Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD.

A planilha que recebi da RaiaDrogasil, por exemplo, registra que:

  • Tomo antidepressivo há seis anos, tentei parar algumas vezes, mas acabei voltando (desconto obtido em troca dos meus dados: até 55%);
  • Logo antes, tomei calmantes fitoterápicos (zero desconto);
  • Fiz tratamento para endometriose (desconto de até 64%);
  • Parei de tomar anticoncepcional há nove anos (desconto de até 15%) e, até me adaptar, usei pílulas do dia seguinte algumas vezes (desconto de 28%).

A lista, que tem 39 páginas, continua. Mas tem coisas que não me sinto à vontade para compartilhar. Nem em nome do interesse público desta reportagem. As farmácias sabem do que estou falando.

E você? O que as farmácias sabem sobre você? Montamos um passo a passo de como pedir seus dados.

Uma coisa posso adiantar: é possível que a farmácia saiba muito mais sobre você do que sabe sobre mim.

Sou "noiada" com privacidade digital. Já há alguns anos, só dou CPF em farmácias para comprar remédios, por causa dos "descontos", não para produtos de higiene pessoal.

Por algum tempo, comprei meus antidepressivos em uma farmácia bem longe de casa porque aceitava dar o desconto do CPF mesmo sem o CPF.

E em 2021 um post meu viralizou no Twitter quando a Drogasil tentou cobrar 64% a mais no meu remédio de endometriose se eu não fornecesse, veja só, a minha biometria.

Não bastava o CPF, queriam também minha digital para que o preço baixasse de R$ 133,57 para R$ 48,59. Aí já era demais, nem no meu prédio dei minha biometria. Saí sem o medicamento.

O Procon de São Paulo e o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) cobraram providências. Funcionou. A exigência de biometria caiu. A do CPF continua em muitas drogarias.

Se você dá o CPF em toda compra que faz nas farmácias, seus dados podem revelar muito mais do que suas doenças:

  • sua frequência sexual - pelo número de camisinhas que compra;
  • se engravidou e quantos anos tem seu(s) filho(s) - pelo teste de gravidez, o fim das compras de absorventes e, 9 meses depois, as fraldas;
  • se usa a pílula azul;
  • se tem caspa, frieira, bafo, chulé.

Sênior ativo ou debilitado

O banco de dados da RaiaDrogasil, usado pela startup RD Ads, permite que o anunciante faça até 20 tipos de filtros sobre o cliente: produtos comprados, idade, sexo, se é gastador ou econômico, região e dias de preferência para comprar.

É dessa forma que é possível selecionar clientes com perfil "sênior debilitado", nas palavras da própria RD Ads.

"Identificamos as cestas [de compras] daqueles clientes que possuem problemas cardiovasculares, diabetes, colesterol e outras patologias, além de itens como fraldas geriátricas e curativos para ajudá-los com o melhor tratamento".

Ou o "sênior ativo", que leva "itens como: coloração para os cabelos, suplementos nutricionais e vitaminas".

"Impactamos e mensuramos os clientes com base em dados REAIS de compra. Temos acesso a 100% da transação sempre que o CPF é fornecido", diz a RaiaDrogasil, em apresentação feita no segundo semestre de 2022.

Um dos "cases" da RD Ads é de um produto para bebês. Casais com filhos de até dois anos foram identificados no banco de dados por meio da compra de "fraldas, papinhas e produtos correlacionados". A propaganda foi direcionada para eles. Resultado: as vendas alavancaram 20%.

Os clientes podem ser encarados como audiências (...) [O varejista] pode passar a vender mídia para esse bloco de clientes, concorrendo pelo bolo de investimento publicitário com Google, Meta. Vitor Bertoncini, CEO da RD Ads

A pergunta que fica é: a farmácia pode fazer isso? A resposta não é preto no branco. Há uma zona cinzenta, pendente de regulação e fiscalização.

A LGPD diz que informações de saúde são consideradas "dados sensíveis", categoria que precisa de maior proteção. E diz que o compartilhamento para obter vantagem econômica "poderá ser objeto de vedação ou de regulamentação".

Nos EUA, em fevereiro deste ano, uma empresa de cupons de desconto em remédios recebeu uma multa milionária da Comissão Federal de Comércio por usar dados de saúde para vender anúncios.

A RaiaDrogasil diz que os clientes que dão o CPF autorizaram o uso das informações de saúde. Não sei você, mas eu só fiquei sabendo que vendem meu histórico para publicidade por esta reportagem. A política de privacidade da empresa não fala de monetizar os dados. [Leia a entrevista com Vitor Bertoncini, CEO da RD Ads, braço de anúncios da RaiaDrogasil]

A RaiaDrogasil também afirma que as informações são anonimizadas antes de serem usadas nos anúncios. Mas a Autoridade Nacional de Proteção de Dados ainda vai definir se direcionar publicidade para o indivíduo exato que fez a compra é mesmo um uso anonimizado e se não fere a lei.

O uso dos nossos dados de saúde para vender propaganda é só o começo.

O setor está entusiasmado com as possibilidades abertas pelas health techs —startups que usam tecnologia e dados na área de saúde. Muitas atuam sob o guarda-chuva de grandes redes de farmácia.

A RaiaDrogasil tem várias. Uma delas promete ajudar empresas a cortar custos com a saúde dos funcionários. Para isso, analisa dados sobre o uso individual do convênio médico e "utilização de medicamentos".

Outra diz que "apoia clientes crônicos" a ter uma maior "adesão ao tratamento". Depois, compartilha os dados com a indústria farmacêutica. Há ainda uma empresa de prontuários eletrônicos e até um laboratório de exames médicos.

Juntando todas, estamos falando de dados de remédios, planos de saúde, exames, receitas e diagnósticos de posse de um mesmo conglomerado.

Pesquisadores se preocupam com um cenário ao estilo da série "Black Mirror": o uso das nossas informações de saúde para negar convênio médico, empréstimo, seguro, vaga de emprego. Sem contar o risco de vazamento.

Não se sabe se as farmácias têm integração com bancos ou com empregadores. Se eu tive um financiamento negado, não sei o porquê, mas dei meu CPF na farmácia, o banco pode ter negado com base em um dado de saúde? Analluza Dallari, advogada especializada em aplicação da LGPD na área da saúde.

Nossos CPFs vão continuar alimentando bancos de dados e revelando cada vez mais sobre nossa saúde e nosso comportamento sexual, enquanto não houver uma regulamentação sobre o uso de informações de saúde e uma revisão das regras da Cmed.

O que podemos fazer? Eu pedi para as farmácias apagarem todos os dados que têm a meu respeito. É outro direito previsto pela LGPD. Podem até continuar exigindo meu CPF para não cobrar um preço fictício.

Mas, pelo menos, não vão mais armazenar 15 anos dos meus dados de saúde para fins que desconheço.

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