Vitamina usada para tentar engravidar pode direcionar até anúncio de carro

A RaiaDrogasil, a maior rede de farmácias do Brasil, armazena mais de 15 anos de registros individuais de compras de até 48 milhões de clientes - uma de cada cinco pessoas na população brasileira. O segredo para armazenar tantos dados está na exigência do CPF para conceder descontos, que podem passar de 70%. Hoje, 97% das compras nas farmácias da rede registram o CPF do consumidor.

Em 2021, a RaiaDrogasil criou a RD Ads, "cujo principal objetivo é monetizar os dados junto às indústrias e agências de publicidade". O UOL entrevistou o CEO da empresa, Vitor Bertoncini, para entender como a RaiaDrogasil lucra com os dados dos clientes.

Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

UOL - Como funciona a RD Ads?

Vitor Bertoncini - A RD Ads é o braço de retail media do grupo RaiaDrogasil. O retail media é uma modalidade de publicidade digital em que o varejo passa a funcionar como um publisher.

Existem três ondas da publicidade digital. A primeira onda foi a do search, a publicidade no Google. A segunda foi o social, a publicidade nas redes sociais. O retail é a terceira onda. E de onde vem o perfil da audiência no retail media? Dos hábitos de consumo. Nos Estados Unidos, o retail media já corresponde a 18% do marketing digital.

Para o varejista, é uma nova fonte de receita. O varejo, em geral, trabalha com margens muito apertadas. Movimenta muito o dinheiro, mas, em geral, os lucros são baixos. Quando você entra na publicidade digital, as margens são muito maiores.

Você pode dar um exemplo?

Suponha um fabricante de creme dental medicinal. É muito difícil você achar quem tem sensibilidade no dente ou gengivite. O fabricante vai lá [na RD Ads] e compra a audiência da marca concorrente [os dados dos clientes que adquiriram o produto] e eu posto os anúncios para essa audiência. E aí, falo: "Você quer experimentar essa outra marca aqui?" Esse é um exemplo de aplicação.

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O anunciante não rasga o dinheiro com um anúncio para alguém que está apenas interessado. Ele vai sempre anunciar para quem, de fato, tem potencial de consumo. Então, o retorno de investimento para o anunciante é muito bom.

Todos os clientes da RaiaDrogasil são transformados em audiência?

Você tem que topar. Você quer participar, quer jogar, quer receber publicidade. A maioria fala "sim, beleza". Porque confia muito na gente e a gente sempre entrega publicidades muito relevantes. A gente não vai nunca fazer uma campanha para a Amanda de uma coisa que ela nunca comprou e nunca tende a comprar, porque o perfil dela não é esse.

Qual o tamanho das operações?

A gente não abre os dados da RD Ads ainda. É uma operação que começa a rampar [crescer], mas não é relevante ainda dentro do nosso balanço [da RaiaDrogasil]. Mas, obviamente, a gente enxerga bastante potencial.

Há quanto tempo a RaiaDrogasil está organizando os dados dos clientes?

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Isso a gente faz desde 2006, mas em 2016 a gente passa a organizar melhor os dados. Em 2017, a gente já começa a nossa operação de mídia. E, entre 2021 e 2022, começa de fato a escalar o negócio da RD Ads.

Onde são feitos os anúncios com base nos dados dos clientes da RaiaDrogasil? Apenas no site da farmácia, no app, na loja física? Ou também no Google, nas redes sociais, no YouTube?

A gente consegue fazer anúncios dentro de outros publishers, Google, Meta, YouTube, TikTok. É uma modalidade que a gente chama de custom audience, em que a gente cruza a base de clientes e a base da audiência do Google. Então, o Google sabe que a Amanda é a Amanda, e eu [RaiaDrogasil] sei que a Amanda é a Amanda. Eu vou juntar a Amanda com mais um monte de pessoas parecidas com ela e vou subir isso dentro do Google. Aí toda vez que esse grupo aparecer navegando, a gente consegue oferecer o anúncio relevante também dentro do Google e do Facebook.

Vitor Bertoncini, CEO da RD Ads
Vitor Bertoncini, CEO da RD Ads Imagem: Reprodução/Linkedin

Só as marcas que vendem na RaiaDrogasil podem anunciar com a RD Ads?

Não, qualquer um pode usar esse ecossistema. Vou te dar um exemplo que é superinteressante. Eu trabalhei bastante tempo na indústria de eletrodomésticos. Um dos triggers [gatilhos] para você trocar de geladeira e comprar uma maior é quando a sua família cresce. Se você tem mais um filho, você vai pensar em comprar um carro maior.

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Onde você acha esse público? Um dos caminhos é você me perguntar: "Vitor, quem teve filho nos últimos meses?"

E eu consigo te falar. Isso é um básico, alguém que está tentando engravidar começa a tomar ácido fólico, depois passa a tomar alguns medicamentos que ajudam no processo da gravidez. Passa a comprar creme para estria. Claramente, é uma pessoa que está grávida. Depois, começa a comprar fralda de recém-nascido, chupeta e mamadeira de 0 a 3 meses. Claramente, é uma pessoa que teve um filho. Então, é uma audiência elegível, por exemplo, para a Ford, que quer vender um novo SUV dela, entende?

Só que não vai aparecer a Ford lá dentro da tela da farmácia, vai ficar um negócio meio estranho do ponto de vista de experiência de compra, né? É mais adequado que apareça lá, por exemplo, a fralda nova da Pampers. Então, nesses canais próprios, geralmente eu vou privilegiar os anunciantes que estão vendendo no meu web-sistema. Mas eu posso ajudar o Google a direcionar a publicidade do SUV para pessoas que acabaram de aumentar a família.

Obviamente, eu posso fazer isso com quem topa receber publicidade. Primeiro, essa mãe tem que ter dado opt-in [aceitar a política de privacidade da RaiaDrogasil] para mim.

Quando esse anúncio aparece no YouTube, não vem com a marca da RaiaDrogasil, certo? Vou ver só o anúncio do SUV da Ford. Só que esse anúncio foi direcionado para mim devido às minhas compras na RaiaDrogasil?

Exato. Agora, isso é teórico. A gente ainda não fez isso com nenhum anunciante. A RaiaDrogasil está trabalhando, por enquanto, efetivamente, com as marcas que vendem na RaiaDrogasil. Não tem ainda operação com marca de fora. Tudo isso que eu te falei aqui é uma possibilidade que existe, né? Os países mais maduros, os Estados Unidos, principalmente, já atuam muito fortemente dessa maneira.

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Essa estratégia depende que o cliente se identifique. As pessoas se identificam?

Sim, as pessoas se identificam. Na RaiaDrogasil, a gente tem um nível de identificação superalto. De todas as transações, 97% são identificadas.

Nas transações online e offline?

A gente organiza as audiências não só a partir dos dados de compra online, que é o que a maioria do retail media faz. A gente também usa toda a base das compras offline. E isso é muito diferencial, né? Porque a gente tem 48 milhões de clientes. São 2.800 lojas físicas, que atendem um milhão de clientes por dia.

Qual é o segredo para tantas pessoas se identificarem?

Acho que é relevância. Por que eu me identifico? Basicamente porque tenho alguma contrapartida. Em geral, benefícios e personalização no atendimento. Isso faz com que as pessoas voltem e continuem dando sua identificação. Isso também é uma evidência do nível de confiança que as pessoas têm na gente. Quer dizer, eu me identifico porque eu tenho benefícios claros, é uma troca justa. E porque eu confio e estou satisfeito com a companhia.

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No balcão das farmácias da RaiaDrogasil, é informado que só há desconto mediante identificação com CPF. Em alguns casos, os descontos passam de 50%, 60%, 70%. E de forma permanente. Como a Raia Drogasil consegue dar tantos descontos?

Esses percentuais que você está me falando, provavelmente, têm a ver com Farmácia Popular [programa de acesso a medicamentos do governo federal] ou com alguma campanha genérica de uma farmacêutica. Então, esses descontos, em geral, são dados pela indústria. Nunca cabe isso num desconto da farmácia. O varejo não consegue bancar descontos tão agressivos. A margem do varejo é muito baixa.

Na verdade, os descontos das farmacêuticas, chamados de Programa de Benefício de Medicamentos (PBM), englobam um pequeno número de remédios, quase sempre os de referência e de alto custo. Tanto que, no próprio balanço da RaiaDrogasil, o PBM é marginal. Então, o grosso dos descontos é da farmácia. Inclusive, quem estuda o mercado de medicamentos diz que o preço com desconto é o verdadeiro, enquanto o preço cheio é fictício.

Aí eu não consigo te falar, porque isso é uma pauta muito mais do time comercial. Acho que depois a assessoria de imprensa consiga te colocar em contato com os times que têm mais profundidade aqui, tá? [Nota da edição: o UOL solicitou a entrevista, mas não foi atendido. Por escrito, a RaiaDrogasil afirmou que "os descontos concedidos são viabilizados pelo volume de compra da empresa e também mediante parceria com os fabricantes, como no caso dos PBMs"].

No podcast Invest News, em junho deste ano, você comentou que o brasileiro entra na farmácia e se identifica, dá o CPF. E que, nos Estados Unidos, se perguntassem o social security number, iam chamar a polícia. Por quê?

Eu acho que é cultura, né? O CPF é uma chave de identificação. Poderia ser seu celular, email. Mas, no final do dia, o e-mail e o celular mudam, o CPF não. Então, o mercado brasileiro, em geral, se acostumou a identificar as pessoas pelo CPF simplesmente porque a variação é menor.

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O ponto da privacidade, né? A privacidade está muito relacionada à relevância e à confiança. Então, eu topo me identificar desde que eu tenha uma contrapartida ultrarrelevante e eu tenha confiança nas pessoas que estão me identificando. Aqui, a gente construiu essa confiança e está sendo relevante. O ponto dos Estados Unidos é uma figura de linguagem. Nos Estados Unidos é um pouco mais... Acho que não tem esse nível de confiança. A preocupação do consumidor brasileiro com privacidade é mais similar com a do consumidor chinês, por exemplo. E menor do que nos Estados Unidos.

O que o anunciante e as plataformas onde são feitos os anúncios sabem sobre os clientes da RaiaDrogasil?

O anunciante nunca sabe da Amanda. Eu anonimizo essas audiências e passo essa informação de uma maneira consolidada. E eu nunca passo os dados de cada uma das pessoas para o Google ou o Facebook. A gente faz um match no sistema, o data clean room, um lugar que é totalmente neutro, onde ninguém fica com o dado de ninguém. E os dados são usados temporalmente durante aquela campanha [de marketing].

Você falou que o cliente precisa dar opt-in. A política de privacidade da RaiaDrogasil não fala sobre a monetização dos dados para publicidade.

O tempo todo a gente está conversando com as pessoas. E outra coisa importante é que, toda vez que eu faço alguma comunicação direta com você, por exemplo, no teu e-mail, no SMS, você sempre tem a possibilidade de falar, cara, não quero mais receber. Então, esse processo todo é compatível com a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados]. A LGPD é a base de tudo, a gente nunca faria nada sem estar totalmente de acordo com ela.

Quais são os cuidados adicionais que um varejo de saúde tem que tomar no retail mídia, já que a LGPD diz que o dado de saúde é sensível e sua comercialização pode ser vetada?

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Isso limita bastante a nossa atuação. Praticamente, tudo que a gente faz hoje são campanhas de saúde. A gente trabalha muito perfumaria. E as campanhas que a gente faz em saúde, em geral, são campanhas educativas. Vou dar um exemplo. Tem alguma doença que está acontecendo e aí é criada uma vacina. E tem um trabalho da farmacêutica, que criou a vacina, de falar para as pessoas: "Ó, gente, tá rolando essa doença, é bom vocês tomarem essa vacina". Eles podem fazer isso na Globo, eles podem fazer isso na RaiaDrogasil.

Como esses dados são armazenados? Qual é a segurança? Porque a gente fica muito preocupado com vazamento de dados.

Eu tenho, obviamente, conhecimento disso, mas eu não sou especialista. Mas a gente fez um trabalho muito profundo disso. Investimos dezenas de milhões de reais. A gente sabe o quanto a gente tem criticidade [devido a] nossa posição no mercado de saúde. Então, a gente redesenhou o processo, a gente revisou tecnologia. E toda a parte de criptografia, anonimização, enfim, tem um monte de procedimento aqui que vale a pena você entrar um pouco mais em detalhe com alguém mais técnico.

Em fevereiro deste ano, a Federal Trade Commission dos Estados Unidos multou uma empresa de cupons de descontos em remédios, a GoodRX, por usar dados de utilização de medicamentos para fazer propaganda. Algo assim pode vir a acontecer com a RD Ads?

Eu não sei deste caso, tá? Eu preciso me aprofundar para poder te responder. Se pode ou não pode acontecer. A farmácia não pode incentivar o uso de medicamento. Não sei se foi isso que aconteceu lá nos Estados Unidos. A gente tem muito cuidado ao trabalhar com medicamento. A gente prefere trabalhar muito mais com a parte de perfumaria, de coisas que são um pouco mais abertas e tranquilas. Claramente, a gente sempre vai atuar dentro do que pode ser feito na lei e dentro do que o cliente quer. A gente está aqui tem 120 anos. A gente tem a confiança dos clientes. A gente tem relevância em tudo que a gente oferece. É difícil que a RaiaDrogasil caia nisso porque a gente trabalha muito sério.

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