A esperança equilibrista

Sem previsão de acabar, pandemia faz 2 anos com desigualdade vacinal e risco de variantes

Carlos Madeiro Colunista do UOL, em Maceió Claudio Santana/Getty Images

Em 11 de março de 2020, a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarava que o mundo vivia uma nova pandemia —quando uma doença atinge nível global afetando grande número de pessoas.

Um século após a tragédia da gripe espanhola, o novo coronavírus já matou mais de 6 milhões de pessoas —sem contar mortes subnotificadas— e passou por mutações que o tornaram mais contagioso.

A falta de cobertura vacinal em nível global e uma taxa alta de transmissão no mundo, segundo a OMS, são fatores que mantêm o status de pandemia e não permitem estimar quando ela chegará ao fim.

Porém, em meio a incontáveis incertezas, há motivos para esperança.

"A gente pode estar a caminho de um fim próximo no sentido de redução de casos e controle da doença, mas é difícil de bater o martelo a respeito porque a gente não controla o que vem pela frente, que são as próximas variantes e como que a nossa imunidade vai interagir com elas", diz Átila Iamarino.

"Um sinal muito bom e claro de que a gente pode esperar dias mais tranquilos é a efetividade das vacinas: elas continuam funcionando contra a hospitalização e óbitos, mesmo com as variantes", completa o microbiologista e divulgador científico.

Especialistas em saúde alertam, contudo, que é equivocado assumir um clima de "fim de pandemia" —embalado pela desobrigação de máscaras em capitais brasileiras e festejos de Carnaval.

A vacinação mudou o curso da doença, mas a desigualdade no acesso ao imunizante no mundo amplia as chances de novas variantes do vírus.

Sob críticas quanto à condução do combate à doença pelo governo federal, o Brasil já registrou mais de 654 mil óbitos em decorrência da covid-19 —segundo país com mais mortes no mundo, atrás, apenas, dos Estados Unidos.

A queda da letalidade gera hoje um debate de que a pandemia estaria prestes a se tornar uma endemia, quando uma doença é recorrente, mas não há aumento significativo de casos e a população convive com ela.

A questão, portanto, tem a ver com uma possível estabilidade nas estatísticas. Quando os números de uma doença fogem do controle, a situação evolui para uma epidemia (se a enfermidade for localizada em uma região) ou para uma pandemia (caso a crise se alastre por continentes).

WILLIAN MOREIRA/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO WILLIAN MOREIRA/FUTURA PRESS/FUTURA PRESS/ESTADÃO CONTEÚDO
Aly Song/REUTERS

Pandemia no fim? OMS não vê isso

A OMS diz que é prematuro falar que a pandemia está perto do fim. "É muito cedo para cantar vitória. Ainda há muitos países com baixa cobertura vacinal e alta transmissão", afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Mas o que levaria a OMS a declarar o fim da pandemia?

Especialistas dizem que não há uma fórmula ou indicadores exatos que determinem quando o mundo deixará o status pandêmico. A decisão é colegiada e depende da avaliação de países e seus representantes na OMS.

Dois anos depois, a receita para debelar a pandemia segue a mesma: amplo acesso à vacinação e a redução cada vez maior da transmissão do coronavírus.

Paulo Petry, epidemiologista e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), explica que a doença ainda abrange o mundo inteiro. E que, com o controle da transmissão e menos hospitalizações, ela pode se tornar endêmica. No entanto, há incertezas de quando isso deve ocorrer.

"O caráter de pandemia é decretado em função da alta mortalidade e de abranger todos os continentes —nenhum país se livrou da covid. Na medida em que os países vão controlando, há menos internações e passa a ser uma doença endêmica. Ou seja: ela não vai mais desaparecer, mas vai ser controlada por vacinas."

Para o cientista Miguel Nicolelis, os dados ainda não dão segurança para que o fim da pandemia seja decretado, uma vez que muitos países continuam com números altos de casos e de mortes.

"A pandemia envolve ondas nos países, com picos e vales —depois se invertem. Estamos entrando agora em vale aqui [no Brasil], depois de um número brutal de casos. Não vejo sinal de endemia, nem aqui, nem no mundo", diz.

Arquivo Pessoal

Ansiedade e Carnaval

"Moro com minha avó de 93 anos no Rio. Tranquei a faculdade e fiquei só pedindo compras de mercado de casa, trocava de máscara a cada 2 horas. Voltei para a faculdade ano passado, mas com um peso enorme de que, se minha avó pegasse a doença, a culpa seria a minha. Comecei a flexibilizar em dezembro, com apoio de psicólogo. Tive crises de ansiedade. Com o tempo, fui melhorando. No Carnaval, toquei em blocos, mas também tive crises. Estou me reacostumando com a vida normal."

Larissa Araújo, 28, estudante de Medicina

E se virar endemia?

Passado o pico da variante ômicron em janeiro e fevereiro, o Brasil observa queda de casos e de mortes. Na última semana, o recuo ou estabilidade nos números abrange todos os estados, com exceção do Amapá.

A média diária de óbitos no país foi de 505 na quarta-feira (9) —redução de 57% ante a média de 880 mortes registradas há um mês.

O cenário alavancou o debate sobre o status de pandemia dar lugar ao de endemia —inclusive o Ministério da Saúde fala isso.

Mesmo que vire uma endemia —sem aumento significativo de casos—, a infectologista Vera Magalhães defende a manutenção de ações e cuidados.

"Temos doenças endêmicas aqui como tuberculose e gripe, por exemplo, que com seus surtos epidêmicos levam a óbito muitas pessoas por ano", compara a professora da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Ela se mostra preocupada com ações de governos, como do Rio e de São Paulo, que retiraram a obrigatoriedade de máscaras. A especialista pontua que a imunidade gerada pelas vacinas atuais previne formas graves da doença, mas não a infecção. "A circulação viral continua a existir."

"A faixa etária abaixo dos cinco anos não dispõe de vacina e a dose de reforço só foi aplicada em 30% da população. Ou seja, ainda não podemos prescindir das máscaras."

Arquivo Pessoal

'Força descomunal para seguir'

"Faz um ano neste mês que perdi meu amado San, o José Alexsandro de Oliveira. A dor é indescritível e lembrar me faz tremer. Me despedi do amor da minha vida no necrotério do hospital. Estava em choque e não consegui chorar. Não pude ir ao enterro, pois estava com sequelas da covid. Precisei de psicoterapia e acompanhamento psiquiátrico para passar pelo luto, que ainda se faz presente e exige uma força descomunal e espiritual para aceitar a realidade e seguir em frente."

Ana Carolina Guimarães, 44, relações públicas de Maceió

iStock

Por que precisamos vacinar todos (ou quase todos)

O maior desafio é fazer com que a vacina chegue a todos locais do mundo, em especial na África —onde há países que nem sequer vacinaram 10% da população.

O diretor da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), Renato Kfouri, explica os efeitos da desigualdade vacinal (veja o gráfico acima).

"A gente persegue sempre as coberturas elevadas e homogêneas para que o vírus não se acumule em bolsões de suscetíveis. Isso favorece a ocorrência de surtos e, no caso do coronavírus, o risco mais constante é o surgimento de novas variantes."

A falta de vacina é acompanhada da desigualdade social.

"Há países com baixíssimas coberturas não só pela falta da vacina, mas por falta de insumos, geladeiras... Ou seja, condições de vacinação. Esses esforços deveriam ser muito maiores este ano", defende Kfouri.

No mundo, 56,8% da população tem as duas doses ou dose única da vacina, segundo o dado mais recente da OMS, no dia 6. No Brasil, esse percentual é de 72,9%.

Sem vacinar o mundo todo, corremos riscos de surgimento de variantes, como a ômicron, reforça Felipe Naveca, virologista e pesquisador da Fiocruz Amazônia.

"A teoria mais aceita para a ômicron é que ela surgiu na África a partir de uma pessoa que ficou por muito tempo infectada. Isso permitiu ao vírus acumular um elevado número de mutações."

Para ele, é necessário no Brasil uma vigilância genômica, pesquisando o vírus para acompanhar sua evolução e eventuais variantes. "A melhor maneira de não subestimarmos o SARS-CoV-2 é continuarmos estudando como ele evoluirá."

Louisa Gouliamaki/AFP

A crise de refugiados na guerra Rússia x Ucrânia

Especialistas em saúde veem com preocupação os efeitos da guerra Rússia x Ucrânia durante a pandemia. O total de refugiados já superou a marca de 2 milhões de pessoas na Ucrânia —mais da metade (1,2 milhão) foi para a Polônia, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas).

Países do Leste Europeu estão na lista dos que tiveram maior taxa de mortalidade por conta da doença (veja o ranking abaixo) —o que mostra uma dificuldade histórica no combate à pandemia nesses locais.

O epidemiologista Paulo Petry faz um paralelo do momento atual com a última grande pandemia do mundo, a de gripe espanhola, que se disseminou durante a Primeira Guerra Mundial.

"A doença se alastrou fortemente entre as tropas e depois mundo afora. Vemos hoje 2 milhões de refugiados em situação de higiene extremamente precária. Então há possibilidade de surtos."

Uma preocupação é de que os países que estão recebendo refugiados não disponham de vacinas para todos. "Os países da Europa compram vacinas contando a sua população. Se de uma hora para outra esse número cresce muito, existe chance de faltar. E eles estão no inverno", diz Petry.

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