"Saudade amor"

Para polícia, MP e Justiça de SP, jovem conseguiu roubar celular enquanto se declarava para a namorada

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo Mathias Pape

O crime e as (falta de) provas

O diálogo acima —parte em áudio e sem ruído de rua— foi trocado entre Lucas Vital e Silva, 24, e sua namorada (que terá a identidade preservada) na noite de 26 de julho de 2019. Os dois estavam cada um na sua casa, na região do Jabaquara, zona sul de São Paulo. No mesmo momento, no mesmo bairro, um homem teve o celular roubado após estacionar o carro em uma rua deserta.

Para as polícias Militar e Civil, MP (Ministério Público) e Justiça de São Paulo, a conversa acima deve ser ignorada. Segundo os órgãos ostensivo, investigativo e resolutivo, o jovem pode ter conseguido trocar as mensagens enquanto caminhava numa avenida movimentada, observava a vítima, a interceptava, tentava levar seu carro —sem êxito— e corria com o celular roubado em mãos.

O autor do roubo tirou uma selfie com o celular após o crime. O dono do aparelho conseguiu ver a imagem porque ela foi automaticamente para a nuvem. Ele mostrou a foto à polícia e o local onde o aparelho estava, pelo GPS. PMs fizeram ronda no bairro cinco dias depois do crime. Encontraram Vital e Silva na frente de sua casa com um vizinho, viram semelhanças entre ele e o autor do roubo. Assim que souberam que o jovem já havia sido preso, o detiveram. Na delegacia, a vítima do roubo o reconheceu. O celular, no entanto, não foi encontrado.

SSP (Secretaria da Segurança Pública), MP e Justiça apontam o reconhecimento como fator preponderante para a manutenção da prisão de Vital e Silva.

Apesar de o diálogo trocado entre o jovem e a namorada, além de imagens de câmeras de segurança, terem sido juntados aos autos, os órgãos não responderam à reportagem sobre a relevância do conteúdo. Vital e Silva está preso no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Guarulhos, na Grande São Paulo.

O roubo do celular

Na noite de 26 de julho, o consultor Clayton Medeiros, 34, estacionou seu carro, um Nissan Versa preto, na rua Miguel Hernandez. Após fechar o porta-malas, foi abordado por dois criminosos. Um deles portava arma de fogo. Segundo seu depoimento à Polícia Civil, os ladrões levaram seu celular e tentaram roubar o carro, mas não conseguiram.

Logo em seguida, ligou para a PM avisando sobre o roubo e informando as características dos criminosos. Duas horas depois, a PM retornou a ligação e disse que policiais haviam detido um suspeito. A vítima reconheceu o suspeito pego em flagrante. Trata-se de Luiz Antonio Gomes da Silva, 20, que está preso.

Gomes da Silva afirmou à Justiça que estava a caminho da casa da avó e que reuniu 20 testemunhas que afirmaram que, no momento do crime, estava assistindo a uma partida de futebol disputada por amigos. Gomes da Silva trabalhava como panfleteiro durante o dia e, à noite, como chapeiro em uma lanchonete próxima do aeroporto de Congonhas.

A vítima do roubo afirmou que os criminosos anunciaram o roubo com um: "Vai, vai, perdeu, perdeu", exigindo a entrega do veículo e de pertences pessoais, além de objetos que estavam dentro do carro. Como não conseguiram ligar o Versa, os criminosos saíram correndo. A vítima não conseguiu reaver nenhum item roubado, mas afirmou à reportagem ter 101% de certeza que foram eles os autores do roubo.

De volta ao inferno

Lucas Vital e Silva havia sido preso em 2 de novembro de 2017 sob suspeita de roubo. Em 25 de junho, progrediu ao regime aberto. Segundo sua folha de antecedentes, ele tinha o comportamento considerado excelente dentro da prisão. Tentando se reinserir no mercado de trabalho, ele participava de um instituto que fornece cursos a egressos do sistema penitenciário e que os indica ao mercado de trabalho.

Segundo atestado emitido pelo Instituto Responsa, Vital e Silva participou de "atendimento, acompanhamento social, capacitação para o mercado de trabalho e recolocação profissional" no dia 26 de julho, das 14h às 17h, e que ele "se encontrava aguardando processo seletivo para a vaga de auxiliar administrativo".

Depois do curso, ele chegou à sua casa, no Jabaquara, às 18h03. Saiu rapidamente e retornou às 18h25.

Vital e Silva vivia com os avós, tia e primos na mesma casa desde que nasceu. Segundo seus familiares, ele não saiu de casa após chegar, no início da noite. "O celular dele estava com a bateria ruim. Desligava rapidamente se não estivesse no carregador. E ele tinha que ficar falando com a namorada, porque ela é muito ciumenta. Não saiu do quarto, falando a noite toda com ela", afirmou uma das tias do jovem, que terá a identidade preservada por segurança.

"Eu não fiz nada!"

Às 18h20 do dia 31 de julho, Vital e Silva foi chamado por um vizinho para conversar em frente à sua casa. Três minutos depois, dois policiais militares passaram pelos amigos, retornaram e fizeram a abordagem. O jovem estava com touca. Quando os PMs se aproximaram, baixou a touca, colocou as mãos para o alto e não apresentou resistência.

Após conferir a situação processual dos vizinhos, o amigo de Vital e Silva foi liberado. Minutos depois, dois policiais civis chegaram ao endereço. Colocaram o celular, com a imagem que seria do criminoso, encostada no rosto do jovem. Ao perceber que estava sendo reconhecido por um crime que supostamente não cometeu, ele se desesperou.

Eu não fiz nada, tia! Eu não fiz nada! Pelo amor de Deus! Me ajuda, eu não fiz nada! Eu juro! Eu não roubei! Eu tô caminhando certo!

Os gritos do jovem foram ouvidos pela tia, primos e vizinhos. Ele foi levado ao 35º DP (Distrito Policial), a 1 km de distância dali. Os familiares foram atrás. Lá, dois primos, um deles menor de idade, chegou a receber ameaça de prisão. "Faziam sinal com a mão de que estávamos fodidos. E disse que, se eu não fosse embora, ia ficar preso junto por associação", afirmou o garoto.

Na delegacia, o escrivão de plantão afirmou à família: "O caso dele está fácil de ser resolvido: seu filho tem tatuagens nas mãos. O criminoso, não". Vital e Silva ficaria cinco dias preso temporariamente.

Foi reconhecido pela vítima e, com antecedentes criminais, teve prisão preventiva expedida. Policiais civis chegaram a cumprir mandado de busca e apreensão na casa do jovem, mas nada encontraram.

Desde então, os mesmos PMs que detiveram o suspeito costumam passar na frente da casa de Vital e Silva rotineiramente. A família diz temer represálias e, por isso, foi à Ouvidoria da Polícia de São Paulo na última quinta-feira (17). O órgão comunicou o caso às Corregedorias das polícias Civil e Militar, além do MP (Ministério Público).

O advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), analisou os autos do processo a pedido da reportagem. "Existem algumas contradições. A polícia não consegue nem sequer precisar o local do crime, colocando endereços diversos nos BOs e durante as investigações. O que também fez o MP", aponta.

"Além disso, possivelmente, ele acabou sendo acusado por ter antecedentes, inclusive por ser egresso do sistema prisional exatamente por roubo. Os policiais quiseram mostram serviço 'solucionando o caso', acusando alguém com antecedentes, porque sabem da dificuldade maior de questionamento e do acusado egresso do sistema penitenciário provar a própria inocência. O que configura grave discriminação", complementou.

Diante de todas essas falhas e contradições nas investigações policiais, podemos estar diante de mais um caso de reconhecimento equivocado, que pode gerar a condenação de um inocente
Ariel de Castro Alves, advogado

"Ele é a única coisa que eu tenho"

Elaine Cristina Lídia Vital, 43, consultora em ouvidoria e estudante de direito, mãe de Lucas Vital e Silva, diz estar desesperada. "Eu não consigo descrever ao certo o que tenho sentido. Descrever o meu sentimento é doloroso. Um misto de injustiça, raiva. É muita dor. Dor de verdade. Me perdoe o desabafo", afirma.

Quando a reportagem deixava a casa da família, Elaine disse: "Você está com a minha vida nas mãos. Meu filho é a única coisa que eu tenho. Que Jesus esteja à frente".

"O Lucas é um garoto pacato desde os sete anos, quando perdeu o pai. Teve a criação feita por mim, pelos meus pais e família. Ele não sai de casa, nunca passou madrugadas na rua, costuma sair até o portão, justamente onde foi abordado. Sempre foi muito próximo da família. Ele não fala gírias, foi muito bem-educado", diz a mãe.

Há evidências de que ele não praticou esse crime. A conta dessa discriminação cai sobre a sociedade, em um ponto que o próprio Judiciário bate: se cumpriu a pena, tem o direito de reconstruir a vida. É o direito à vida que estão negando a ele.

Elaine, mãe de Lucas

Reconhecimento mantém prisão

O processo de Lucas Vital e Silva se encontra na fase de atender um requerimento feito pela defesa. Uma audiência marcada para o próximo dia 18 de novembro irá ouvir uma testemunha em juízo.

SSP (Secretaria da Segurança Pública), MP (Ministério Público) e Justiça ignoram evidências de que o jovem não estava no local do crime no momento do assalto e apontam o reconhecimento da vítima e seus antecedentes criminais como os fatores preponderantes para a manutenção da prisão.

  • O que diz a SSP:

"O caso citado foi investigado por meio de inquérito policial instaurado pelo 35º DP (Jabaquara). A vítima do roubo compareceu à delegacia e realizou o reconhecimento pessoal do suspeito, que teve a prisão preventiva decretada pela Justiça. Ele foi capturado por policiais da unidade e permaneceu à disposição do Poder Judiciário. As polícias não compactuam com eventuais desvios de condutas de seus integrantes e as Corregedorias das instituições se colocam à disposição para formalização de denúncias."

  • O que diz o MP:

"A vítima reconheceu o réu tanto na delegacia como em juízo, pessoalmente. O réu, reincidente por roubo, foi preso temporariamente e preventivamente e mantido preso por três juízes diferentes."

  • Os argumentos da promotora Eliana Guillaumon Lopes Vieira:

"À vista do exposto, é certo que há suficientes elementos de autoria relacionados ao ora indiciado Lucas, quanto ao delito de roubo em tela. Observo que os autos de inquérito policial estão formalmente em ordem e não vislumbro qualquer ilegalidade evidente na constrição ordenada, não havendo, por ora, razões para a soltura do ora indiciado. A acusação que pesa contra ele é grave, denotando, assim, periculosidade."

  • Os argumentos do juiz Olivier Haxkar Jean:

"A vítima compareceu em delegacia e reconheceu pessoalmente o representado como sendo o agente que, de posse da arma de fogo, agiu em concurso com o autuado preso em flagrante da data da ocorrência, chegando, inclusive, a reconhecer a blusa usada pelo representado, afirmando ser a mesma utilizada na data do delito."

  • Os argumentos de Clayton Medeiros, vítima do roubo:

"É a segunda vez que fui assaltado em menos de um ano. Nessa segunda vez, tem coisa errada. A voz dele não se parece com a do criminoso. O que parece: Parece que colocaram a foto dele num celular qualquer, pegou a conversa de um cara qualquer, mostrou para você e disse que era ele. Te falo com toda certeza que era ele. Eu não colocaria um inocente na cadeia. Se eu tivesse um resquício de dúvida, eu falaria: não tenho certeza. Pedi para colocar o boné. Sem o boné, eu já tinha reconhecido. Com boné, eu falei: é ele. Eu estou me sentindo injustiçado, inclusive, como se eu fosse o criminoso, não ele. Eu olhei de frente. Tenho 101% de certeza que foi que ele."

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