Covardia em terra sem lei

'Quer falar com a polícia? Aqui é a polícia', disseram agressores à médica agredida no Rio

Herculano Barreto Filho Do UOL, no Rio Herculano Barreto Filho

A médica anestesista Ticyana Azambuja, 35, intercalava plantões exaustivos em três hospitais para atuar na linha de frente no combate ao novo coronavírus. Nas suas redes sociais, compartilhava vídeos com orientações sobre o enfrentamento à covid-19. Mas, justamente no local onde deveria descansar, ela lidava com o desrespeito às regras de isolamento social.

Na tarde de 30 de maio, Ticyana usou um martelo para quebrar o espelho retrovisor e o vidro traseiro de um carro importado estacionado irregularmente por um dos frequentadores de uma festa clandestina no Grajaú, zona norte do Rio de Janeiro, em uma casa em frente ao prédio onde mora. Espancada por ao menos quatro pessoas, sofreu duas fraturas e rompeu o ligamento do joelho esquerdo ao ser jogada no chão e ainda teve as mãos pisoteadas.

A profissional de saúde concedeu entrevista ao UOL em seu apartamento para falar de outra luta: sem condições de tratar pacientes com covid-19 por causa das agressões, Ticyana agora quer justiça.

"Ainda não foi feita justiça, então eu ainda continuo com um sentimento de impotência. Eu tenho dois medos: que essa injustiça fique impune e que algo aconteça no futuro comigo"

Herculano Barreto Filho/UOL
Reprodução

"Você quer falar com a polícia? Aqui é a polícia"

Enquanto era carregada pelo comerciante Rafael Martins Presta, que comemorava o aniversário em casa ao som de uma banda de rock, ela diz ter pedido que a polícia fosse chamada.

Ticyana disse ter ouvido dos agressores, entre eles, uma mulher identificada como Ester Mendes de Araújo: "Você quer falar com a polícia? Aqui é a polícia". Em vídeos, ela aparece puxando Ticyana pelos cabelos.

Ela pegou uma carteira funcional de policial e esfregou na minha cara com o maior orgulho

Relato semelhante foi feito pelo defensor público Marco Antônio Guimarães Cardoso, testemunha do episódio, que apareceu no vídeo levando um soco no rosto quando disse que chamaria a polícia.

Ele afirmou ter tido um diálogo rápido com o policial militar Luiz Eduardo Salgueiro, dono do carro depredado e um dos frequentadores da balada clandestina, que estava de folga naquele dia.

Quando eu digo que estou chamando a polícia, ele fala, berrando: 'Eu sou a polícia'

Marco Antônio Guimarães Cardoso, defensor público

Ester também aparece nas imagens com o policial militar, afastado das suas atividades no Batalhão de Choque após o episódio. Imagens mostram que ele presenciou as agressões, mas não as impediu.

Procurada pelo UOL, a defesa de Ester não quis se manifestar. O advogado Roger Couto Doyle, que representa o PM Salgueiro que estava de folga, negou que ele tenha se omitido de agir.

A gente vive numa sociedade do medo. As pessoas não tiveram coragem de me ajudar. Foi tanta truculência que as pessoas ficaram com medo de agir. Inclusive, estão com medo de depor a meu favor. Preciso que as pessoas falem o que viram, para que isso não caia no esquecimento

Ticyana Azambuja, médica agredida no Rio

Reprodução da internet

"Queria mostrar a minha coragem"

Depois das agressões, Ticyana pegou apenas dois vestidos e uma camisola, para ficar sob os cuidados do pai. Só voltou para o apartamento onde mora no Grajaú na quarta-feira (3) para se arrumar e participar de um ato de protesto por causa das agressões.

Dali, da varanda do apartamento, o cenário arborizado característico do Grajaú encobre a casa onde as festas clandestinas se intensificaram em meio à pandemia, ao lado de uma unidade do Corpo de Bombeiros.

Às vezes, parece que é só um sonho. Parece que nada aconteceu. Só lembro o que aconteceu quando sinto dor. Ainda tenho medo de ir até a janela

Ela conta que, para a manifestação, maquiou-se e colocou flores nos cabelos ao som da música Apesar de Você, de Chico Buarque.

"Quando chegar o momento, esse meu sofrimento. Vou cobrar com juros, juro", cantou em voz alta em frente ao espelho do banheiro, enquanto se preparava para o ato. Usou um vestido branco e longo. Não queria que as pessoas vissem os ferimentos causados pelas agressões.

Eu não queria mostrar as minhas lesões. Queria mostrar a minha coragem

Voltou fortalecida da manifestação. Na mesa da sala, comeu durante a entrevista ao UOL um bolo de cenoura e chocolate feito por uma moradora do prédio. "Essa vizinha disse que decidiu fazer o bolo para colocar ali todo o carinho dela", sorri.

As horas que antecederam as agressões

Jovem e fora do grupo de risco, Ticyana se atirou de cabeça no combate à pandemia. As horas que antecederam as agressões foram de muito trabalho no CTI do Hospital de Campanha Lagoa-Barra, destinado a pacientes com covid-19. Ela assumiu o plantão às 7h do dia 29 de maio e só deixou a unidade na manhã seguinte.

Na madrugada de 30 de maio, foi ao alojamento ao lado do hospital, local destinado a um descanso de duas horas. Ela se virou de lado e tentou até dormir. Mas uma mensagem no celular fez com que voltasse à unidade para intubar uma paciente em estado grave.

Ticyana deixou o hospital por volta das 7h40 de 30 de maio. Ainda pela manhã, elaborou uma aula sobre os procedimentos em pacientes com covid-19 voltada para a equipe de anestesia no CHN (Complexo Hospitalar de Niterói), onde também trabalha. E se deitou para descansar por volta do meio-dia, porque voltaria a trabalhar à noite.

Mas a festa clandestina, com show de uma banda com bateria e guitarra, não a deixou dormir.

Herculano Barreto Filho

"Peguei o elevador pensando: 'Vou dar um basta nessa festa'"

Por volta das 17h, Ticyana pegou o elevador com um martelo na mão. "A minha casa era o lugar para descansar e repor as energias. Não conseguia mais fazer isso. Eu não tinha dormido por causa da festa. Fiquei com muita raiva. Peguei o elevador pensando: 'Agora, vou dar um basta nessa festa'. Sei que errei. Mas foi um ato de protesto", lembra.

Ticyana disse já ter ligado para a polícia ao menos três vezes por causa do barulho. Uma delas no dia das agressões. Mas nunca viu uma viatura da PM-RJ (Polícia Militar do Rio de Janeiro) no local. Outros moradores das imediações confirmam a versão. A corporação diz investigar o caso.

Eu não estava mais aguentando. Lido com mortes todos os dias no hospital. Eles não respeitam quem estava na linha de frente, salvando vidas. Não respeitam os meus vizinhos, que estão dentro de casa cumprindo a quarentena de forma correta. Eu provavelmente poderia atender um desses caras no meu plantão. Mas eu precisava dormir

"Pessoal, são 1h32 e não conseguimos dormir por conta de uma festa regada a muita gargalhada e barulho. Seria perfeitamente compreensível o evento se não estivéssemos seguindo a recomendação de ficarmos em casa, no meio de uma pandemia, com pessoas morrendo lá fora. Cadê o bom senso e empatia das pessoas?", questionou uma moradora, em postagem feita na madrugada de 9 de maio.

Baladas já tinham virado tema de terapia

As constantes festas em meio à pandemia fizeram com que Ticyana passasse a dormir com o filho de 2 anos na sala de casa, mais distante das janelas.

"Eu colocava o colchonete na sala com o lençol por cima e falava que era a casa dos três porquinhos. E era de tijolos, para o lobo mau não nos atingir. Era a forma que eu encontrava para ele não sentir o peso do meu cansaço e a tristeza por não conseguir dormir no quarto", conta.

Quando o meu filho me viu, ele perguntou quem tinha me machucado. E eu não sabia direito como responder. Então, eu falei que o lobo mau que tinha machucado o meu joelho e as minhas mãos. Aí, ele chorou e falou que não estava lá para me proteger. E eu chorei junto com ele também

As baladas clandestinas também viraram tema das sessões de terapia da médica. "Era muito barulho. E isso despertava o que havia de pior em mim. Sentia muita raiva e precisava desabafar", lembra.

Sou médica. Não queria aplauso ou reconhecimento. Só queria que a sociedade me desse condições de descansar

Herculano Barreto Filho/UOL Herculano Barreto Filho/UOL

Incertezas em relação ao futuro

Agora, Ticyana lida com a incerteza em relação ao seu futuro e com o medo. Não sabe se vai continuar morando no apartamento em frente ao local onde foi brutalmente espancada.

Ainda não foi feita justiça, né? Então, continuo com o sentimento de impotência. Tenho medo que esse crime fique impune e que algo aconteça no futuro comigo, quando essa história for esquecida

Ela tenta levar os pensamentos para outros lugares, ouvindo música e lendo livros, espalhados por todos os cantos do seu apartamento. Mas admite que, ao deitar a cabeça no travesseiro, revive os momentos de terror.

Às vezes, de noite, eu ainda sinto a falta de ar que senti durante a asfixia. Ainda escuto as vozes das pessoas me xingando e me ameaçando. Ainda sinto o meu cabelo sendo puxado. O joelho, quando bateu no chão, fez um estalo que segue na minha memória. Tento bloquear essas memórias, mas eu ainda lembro de tudo

Para ela, o que mais marcou foi a covardia dos agressores e a omissão das pessoas que presenciaram os ataques. "Policiais estavam lá e não fizeram absolutamente nada para me proteger. Eu fiz um dano a um material. Mas a resposta foi totalmente desproporcional", diz.

Topo