Nasci e cresci no Capão Redondo, no chamado Morro do Piolho. Sou o mais novo dos cinco filhos. O terreno era invadido e todo o descarte de lixo ficava perto da nossa casa. Então eu brincava no meio do lixo. Foi no meio desse rolê de crescer num ambiente muito hostil de muita pressão que a desigualdade exercia na minha vida.
Nossa casa era precária, não tinha mesa para comer, cama para dormir. Minha mãe teve que fazer muita mágica para poder criar todos os filhos sem a referência paterna [o pai participou pouco da criação]. Meus irmãos são filhos de José e eu sou filho de Antonio. Ela era diarista e doméstica. Sempre que podia ela me levava para o trabalho, na região do largo da Batata. Hoje muito do que eu sou devo ao que aprendi com ela.
Dos 14 anos em diante só sobrava para mim a escola. Foi um dos grandes laboratórios. Fui me envolvendo com os grupos, aquela coisa de buscar sua identidade.
Com 15 anos, fumando com amigos passei a praticar pequenos furtos. Com 16 anos fui parar na Febem [hoje Fundação Casa]. Fiquei seis meses na Febem do Tatuapé. Teve uma mega fuga de 500 internos e eu fui um deles
Fiquei um mês na rua. E depois tive uma conversa olho no olho com minha mãe e meu pai. Eu estava numa linha tênue delicada entre o crime ou voltar a estudar e fazer as coisas certas, mas tinha que pagar com a Justiça.
Fiz a escolha de dizer que ninguém poderia resolver minha vida a não ser eu mesmo. Fomos juntos ao Fórum da Vara da Infância e Juventude no Brás para sair pela porta da frente e ressignificar minha história. Sabia que ia ser eu e mais eu.
Comecei a escrever uma lista de sonhos que eu tinha e a primeira delas era voltar a estudar. Queria ser lixeiro por conta da minha infância em que brincava com o lixo
Depois de mais cinco meses eu saí em liberdade pela porta da frente. Foi então que comecei a atuar no projeto do Instituto Rukha que havia no Capão. Em seguida me tornei pai. Fui gari e coletor de lixo.
Foi quando passei a sair mais do Capão Redondo. Limpava a Oscar Freire, Nove de Julho, Berrini Cidade Jardim. O grande negócio que me vem quando eu trabalhava nessas áreas era ver os contrastes. Eu via que era muito diferente a Oscar Freire da Carlos Lacerda onde eu vivia. Diante disso passou a me chamar a atenção: por que aqui tem isso aqui e lá não tem? Na coleta de lixo conheci aldeia indígena em Parelheiros, zona leste e oeste. Quando comecei a empreender e me lembrar das coisas que eu via diferente entre o centro e a periferia.
Quando meu irmão saiu do trabalho em uma padaria, a gente se juntou e fez um projeto no Capão de uma experiência gastronômica, o Ateliê Sustenta Capão.
Ele cozinhava e eu trazia gente para dentro da favela. Em 2014, eu conheci a Micheline e a gente passou a fazer juntos o projeto Nave (Núcleo de Acolhimento e Valorização da Educação). Passei a tentar fazer coisas semelhantes aqui.
A princípio era para fazer doação de cesta básica e entendemos que a comunidade precisava de educação. Hoje trabalhamos com esporte e cultura e um acolhimento de excelência para crianças e adolescentes em situação de extremo risco social.
Hoje temos base de atendimento de 70 a 80 crianças, a meta é chegar a 200 atendimentos até o fim do ano. Estamos em um espaço maior. Em parceria com a rede Gerando Falcões, estamos oferecendo oficinas de esporte e cultura: futebol, balé, percussão, jiu-jitsu e capoeira. Mais um acolhimento no contraturno escolar para crianças até 12 anos.
A gente acredita que tem que mobilizar a sociedade em prol dos necessitados. Não temos parceria com Estado. Quando o Estado entra você acaba preso. Tem muita exigência. Se o Estado fosse bom, a gente não precisava nem existir como projeto social
O maior sonho da população da periferia é ter casa própria. O segundo é ter o próprio negócio. Temos uma oportunidade grande para abertura de empreendimento que tenha a ver com o cenário cultural.
A coisa mais louca que me veio foi a consciência de que a gente que é da quebrada, quando atravessa a ponte, é estigmatizado de forma violenta. Desde 1996 quando teve 233 casos de homicídios, a ONU estampou isso e falou que era o lugar mais violento do mundo. Você falava que era do Capão Redondo as pessoas perguntavam se era violento, perguntavam pelo tráfico.
Muita coisa mudou de lá para cá. O metrô chegou até o Capão com a linha lilás.
Aqui já foi violento, muito mais do que é hoje. Até por força maior e por toda essa opressão do Estado, força policial, que é o braço maior que chega na periferia, o Capão Redondo se reinventa e vira o maior polo cultural independente do poder público.
Você tem eventos ligados à tecnologia. Feiras, eventos. A comunidade jovem da periferia, a população negra não tem acesso. Fizeram ano passado o PerifaCom, para quadrinistas, galera que faz aplicativos, o evento bombou.
O próprio hip-hop atua na quebrada salvando vidas. Hoje a parte do hip-hop que empreende na quebrada está ligada à moda, artigo de luxo, roupa. É uma população que estava excluída e que agora está encaixada no mercado.
Temos uma mentalidade de não depender mais do governo, qualquer que seja. Aqui na região fizeram um shopping que tem um cinema. Custa R$ 15 o ingresso. O jovem não tem acesso a esse equipamento cultural tradicional. Deveria ter uma política melhor e mais eficiente.
Temos a Coperifa, lugar de sarau para recitar poesia, que vai de dona de casa a escritores conhecidos. Temos a festa de rap mais popular do Brasil, a 100% Favela, com de 5.000 a 7.000 pessoas.
Essa grande região que concentra o maior polo de cultura independente. Só que ninguém voltou para contar o que acontece hoje.
A periferia não é só funk. É hip-hop é audiovisual, é tecnologia. Tem muita coisa boa sendo feito e pouco explorada. De tudo o que é feito aqui ninguém fala. Só fala quando morre gente. Aqui é o Vale do Silêncio, que grita o tempo todo trazendo inovação, com recurso escasso, só que não aparece.