Inferno em porão de escola

Moradores do vilarejo de Yahidne, na Ucrânia, relatam confinamento por tropas russas e contam mortos na ação

James Mackenzie e Silvia Aloisi Da Reuters, em Yahidne (Ucrânia) Marko Djurica

Os nomes dos mortos estão gravados na parede descascada de um porão de escola, no qual moradores dizem que mais de 300 pessoas permaneceram presas por semanas pelas tropas de ocupação russas em Yahidne, um vilarejo ao norte de Kiev, a capital da Ucrânia.

Halyna Tolochina, que faz parte do conselho do vilarejo, tinha dificuldade para se recompor enquanto conferia a lista, rabiscada no gesso em ambos os lados de uma porta verde, em uma ala sombria onde ela disse que ela e centenas de outras pessoas foram confinadas.

À esquerda da porta estavam rabiscados os nomes de sete pessoas mortas por soldados russos. À direita, os de dez pessoas que morreram devido às péssimas condições no porão, segundo Halyna.

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"Este idoso morreu primeiro", disse Tolochina, apontando para o nome de Dmytro Muzyka, cuja morte foi registrada em 9 de março. "Ele morreu na sala grande, neste aqui."

Ela disse que o corpo de Muzyka permaneceu por alguns dias na sala da caldeira, até que, durante uma pausa no bombardeio, algumas pessoas puderam levar o morto para ser enterrado em covas abertas às pressas no cemitério do vilarejo.

A Reuters conversou com sete moradores de Yahidne que disseram que, ao todo, pelo menos 20 pessoas morreram ou foram mortas durante a ocupação russa. Nenhum número oficial de mortos foi divulgado pelas autoridades ucranianas.

Não foi possível à Reuters verificar de forma independente os relatos dos moradores. Repórteres viram uma cova escavada recentemente em um campo ao lado do vilarejo e dois corpos envoltos em plásticos brancos.

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O Kremlin não respondeu aos pedidos por comentários sobre os eventos em Yahidne.

Os relatos do que aconteceu no vilarejo se somam aos crescentes depoimentos de civis ucranianos sobre o sofrimento nas cidades em torno de Kiev durante as semanas de ocupação por forças russas, após a invasão iniciada em 24 de fevereiro.

A última vítima registrada nas paredes do porão, Nadiya Budchenko, morreu em 28 de março, disse Tolochina. A morte ocorreu dois dias antes das tropas russas se retirarem do vilarejo, quando interromperam o avanço rumo à capital ucraniana.

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Assim como aqueles que morreram de exaustão em meio às condições sufocantes e apertadas, a maioria idosos, Tolochina citou outros que foram mortos pelos soldados russos, incluindo Viktor Shevchenko e seu irmão Anatolii, conhecido como Tolya.

"Este foi enterrado no pátio", disse ela, apontando para o nome Shevchenko V. "E este, dizem que ele está lá (enterrado no vilarejo), em algum lugar", ela disse, apontando para o nome Shevchenko T., cujo corpo não foi encontrado.

A Reuters entrevistou outros seis moradores que corroboraram o relato de Tolochina e descreveram terem sido mantidos nas salas de concreto do porão, com cerca de 60 crianças, pouca água e comida, sem eletricidade e sem banheiros.

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As autoridades ucranianas acusam a Rússia de crimes de guerra, após o descobrimento de valas comuns nas cidades em torno de Kiev, como Bucha e Motyzhyn, e a descoberta de corpos cujas mãos estavam atadas e que foram baleados na cabeça.

A Rússia nega as alegações de execuções, tortura e abuso de civis.

O Kremlin diz que suas forças não estão atacando civis e acusou as autoridades ucranianas e o Ocidente de fabricarem evidências.

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Saques

Dois moradores disseram que, no início, alguns soldados russos, que chegaram no início de março, se comportaram bem, compartilhando suas rações e expressando surpresa com a aparência próspera do vilarejo. Mas outros começaram imediatamente a fazer saques na região.

"Eles começaram a saquear, levaram tudo que puderam pegar", disse Petro Hlystun, 71 anos, que testemunhou a cena. "Tinha uma lanterna, um tablet que meu filho comprou na Polônia. Eles levaram tudo."

Em 5 de março, os moradores disseram que foram ordenados a entrar no porão na escola, onde permaneceriam pelo 25 dias seguintes, com apenas breves pausas para se aliviarem ou esticarem as pernas.

Os soldados russos lhes disseram que o confinamento era para sua própria segurança, disseram os moradores.

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Eles descreveram compartilhar baldes para as necessidades e se revezarem para dormir nas salas pequenas e lotadas, já que não havia espaço suficiente para todos se deitarem.

"Era quase impossível respirar", disse Olha Meniaylo, uma agrônoma que disse ter permanecido no porão com seu filho de 32 anos, a esposa dele e os filhos do casal, um bebê de 4 meses e uma menina de 11 anos.

Ela disse que os soldados russos exigiram uma lista das pessoas presentes no porão para organizar a alimentação e ela disse que contou 360 pessoas. Dois outros moradores disseram que havia mais de 300 pessoas.

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"Era difícil para os idosos permanecerem ali no escuro sem ar fresco, por isso foram os que mais morreram."

Ela disse que o primeiro enterro, de um homem morto pelos soldados e de quatro idosos que morreram no porão, ocorreu em 12 de março. Os soldados russos permitiram que alguns jovens abrissem covas rasas.

"Assim que começaram a cavar ocorreu um bombardeio", disse Meniaylo. "As pessoas que estavam cavando tiveram que se deitar sobre os mortos nas covas para se protegerem dos morteiros. Meu marido estava lá."

Uma mulher que tinha uma vaca foi levada sob escolta certa manhã para pegar leite para as crianças. Outras eram soltas ocasionalmente segundo os caprichos dos soldados russos. Quando voltaram para suas casas, os moradores descobriram que tudo, de televisores a roupas íntimas das mulheres, tinha sido levado.

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Corpos exumados

Só depois de os russos começaram a retirada, em 30 de março, é que as pessoas presas no porão saíram de forma permanente, disse Tamara Klymchuk, 64.

"Nós abrimos a porta. Começamos a sair como se estivéssemos nascendo de novo."

Yahidne, um pequeno vilarejo agrícola com apenas cinco ruas, era um local popular para moradores urbanos da vizinha Chernihiv passarem feriados em chalés. O vilarejo agora é uma ruína desolada de casas incendiadas e equipamento militar descartado espalhado.

Um tanque abandonado está escondido do outro lado da rua de uma escola. Militares ucranianos, policiais e técnicos antibombas reviram os escombros, exumando corpos e recuperando munição não detonada.

"Tínhamos uma vida muito boa", disse Klymchuk, cujo genro era Viktor Shevchenko, 50, um dos dois irmãos que os moradores disseram terem sido mortos pelos soldados russos. "Nunca imaginávamos que tamanho pesar recairia sobre nós."

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Segundo ela, Viktor foi morto em 3 de março. Ele ficou para proteger a casa após enviar sua esposa e filhos para o porão da escola.

Soldados russos disseram aos moradores que Viktor estava usando uniforme militar e estava armado com uma espingarda.

Klymchuk disse que não testemunhou pessoalmente a morte, mas disse ter visto o corpo de Viktor, exumado de uma vala comum a pedido dela, após a cidade ser retomada pelas forças ucranianas. Ele estava trajando uma calça jeans azul e uma jaqueta preta, disse.

"Deram um tiro na cabeça dele."

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