O sagrado sequestrado

Violência e perseguição religiosa originaram os maiores acervos com peças de religiões afro no Brasil

Saulo Pereira Guimarães Colaboração para o UOL, do Rio Luciola Villela/UOL

A disputa política que destruiu templos. O delegado que fez da perseguição religiosa trampolim para virar deputado. O médico que encomendava peças a terreiros. Essas são as origens marcadamente violentas de algumas das maiores coleções com itens sagrados para religiões afrobrasileiras espalhadas por museus do Brasil.

Com artefatos oriundos de apreensões, os acervos se tornaram tema de debate em 2020, após a Polícia Civil do Rio transferir para o Museu da República um conjunto de objetos sob sua tutela há quase 100 anos. Ações realizadas pela polícia carioca entre 1889 e 1945 reuniram as 523 peças hoje em análise no museu do Catete.

Apesar de ter sido desmontada oficialmente no começo do século 20, a perseguição a religiões afro-brasileiras continua ecoando ainda hoje. Muitas das peças sagradas não retornaram a seus antigos donos porque os terreiros a que pertenciam foram aniquilados.

Além do Rio, Alagoas, Bahia, Pernambuco e São Paulo têm acervos que variam entre 200 e 500 peças sequestradas de 1912 a 1940. Em todos os casos, boa parte dos locais de origem dos artefatos é desconhecido e, segundo os responsáveis pelos conjuntos, os itens apresentam bom estado de conservação.

"Juntamente com o acervo que estava na Polícia Civil do Rio, as coleções Perseverança (Alagoas), Xangô (Pernambuco), Estácio de Lima (Bahia) e a do Centro Cultural São Paulo estão entre as maiores com este perfil hoje no país", afirma Luiz Gustavo Alves, historiador da Universidade Federal Fluminense (UFF).

No exemplo carioca, a transferência foi resultado de uma campanha liderada pelos povos de santo, que se incomodavam com a associação dos itens sagrados ao crime.

Minha avó já falava com muito sentimento sobre estas peças. Guardei isso comigo. Havia pessoas que nem sabiam que elas estavam com a polícia. Graças a Deus, conseguimos tirar o nosso sagrado da mão deles. Nossos antepassados não tiveram esta oportunidade
Mãe Meninazinha de Oxum, liderança de candomblé no Rio e liderou a campanha Liberte Nosso Sagrado

Já no resto do país, são raros os casos como o da Cadeira de Jubiabá, devolvida em 2015 ao terreiro Mokambo, em Salvador, quase 100 anos após a polícia apreendê-la em outubro de 1920. O mais comum é os museus não serem sequer procurados para devolver itens a pais e mães de santo, conta Juliana Cinthia Lima Silva, doutoranda em antropologia social do Museu Nacional e pesquisadora do tema. "Muitas casas não existem mais", explica.

Luciola Villela/UOL

A violência é base da construção de museus pelo mundo. Na Europa, peças retiradas estão sendo devolvidas principalmente para a África. No Brasil, a violência está em vários níveis: na construção, com a repressão aos religiosos, em que a polícia representa a 'civilização'; no aprisionamento de objetos sagrados em lugares onde viram figuras exóticas. Por último, há a violência do não lugar, pois as peças deixam de ser sagradas, mas não se tornam peças de arte ou museológicas

Valquíria Velasco, Doutoranda em história comparada pela UFRJ 

Divulvagação

Quebra de Xangô

Abrigada no Instituto Histórico Geográfico de Alagoas (IHGAL), a Coleção Perseverança reúne 200 itens. Esculturas, instrumentos musicais e outras peças foram doadas em 1950 ao museu pela extinta Sociedade Perseverança e Auxílio dos Empregados no Comércio de Maceió.

Os objetos foram reunidos após um episódio de 1912, conhecido como "Quebra de Xangô". À época, Euclides Malta governava Alagoas havia mais de uma década. Circulava na oposição o boato de que ele frequentava e protegeria os xangôs, como eram chamados os cultos religiosos afrobrasileiros que ocorriam em Maceió.

Rivais políticos de Malta usaram a mentira para depô-lo em fevereiro daquele ano. De quebra, destruíram todos os terreiros da cidade. Os objetos sequestrados dos templos foram queimados em uma fogueira no meio da rua. As peças sobreviventes foram carregadas em passeata por Maceió e ficaram durante um período na redação do "Jornal de Alagoas", que fazia oposição ao governo deposto. Depois foram dadas pelo grupo que organizou a revolta, a Liga dos Combatentes, ao museu da associação de comerciantes. A ideia depreciativa era ligar os itens religiosos ao mundo do comércio, devido à suposta compra do apoio político da comunidade do xangô pelo antigo governador. O que não se queimou e passou por esse périplo integra hoje o acervo do IHGAL.

A perseguição aos praticantes da religião de Maceió não parou por aí. "Os suspeitos eram surrados barbaramente, como no tempo da escravidão, e pela Polícia Civil em sua sanha de extermínio dos xangôs", relata o escritor alagoano Abelardo Duarte, em um texto sobre o episódio enviado à reportagem por representantes do instituto.

Luciola Villela/UOL

O axé no xadrez

O episódio em terras alagoanas está na origem de artefatos de cultos afrobrasileiros apreendidos pela polícia em Pernambuco, para onde líderes da religião migraram. Hoje formam a Coleção Xangô, do Museu do Estado de Pernambuco (Mepe), para onde foram transferidas na década de 1940 por decisão do governo estadual.

As cerca de 300 peças do conjunto se diferenciam pela variedade. Entre os destaques, há duas calungas, elementos sagrados presentes nos cortejos de maracatu que simbolizam a força espiritual dos antepassados. Também chama atenção uma estátua que faz referência a Iemanjá, mas possui elementos cristãos, como cruzes, e islâmicos, como a lua crescente e estrelas.

[A estátua] é um ícone de sincretismo religioso bastante interessante e que revela a presença da religião muçulmana em nosso país, que é pouco lembrada
André Luiz Gomes Soares, historiador e funcionário da reserva técnica do Mepe

A perseguição religiosa se intensificou em Pernambuco a partir de 1938, logo após o então secretário de segurança pública pernambucano, Etelvino Lins, expedir portaria proibindo xangôs, catimbós e centros espíritas no estado. Todos eram classificados como "seitas africanas". A partir da medida, o delegado João Roma, da Delegacia de Investigações e Capturas, empreendeu uma cruzada contra as religiões afrodescendentes no Recife.

Sobre Roma, a Folha da Manhã escreveu o seguinte em sua edição vespertina de 21 de março de 1938: "Os catimbozeiros andam de canto chorando. Toda vez que arrastam o seu cachimbo e toda curiosa aparelhagem, para as suas evocações diabólicas - O delegado Roma está perto, firme".

Ele só deixou a polícia em 1946, quando entrou para a política. Após ser secretário da diretoria regional do recém-criado PSD em Pernambuco, cumpriu mandatos de deputado pelo mesmo partido, entre 1951 e 1962, e depois pela Arena, 1967 e 1971.

Raul Spinassé/UOL Raul Spinassé/UOL

Hoje no Museu da República, acervo já foi chamado de Coleção Magia Negra; veja:

  • 1

    Realeza

    Adê é uma coroa de metal que compõe os trajes dos orixás Oxum, Iansã, Iemanjá e Nanã

    Imagem: Luciola Villela/UOL
  • 2

    Sem pés

    Sem significado definido pela pesquisa museológica, esta escultura representa um homem com barba, turbante e colar dourado

    Imagem: Luciola Villela/UOL
  • 3

    Adereços

    Braceletes e braçadeiras de Iansã, orixá representado pelos ventos, raios e tempestades, elementos que domina e que a representam

    Imagem: Luciola Villela/UOL
  • 4

    Crianças

    Estátuas de São Cosme, São Damião e Doum; no candomblé, os dois primeiros são representações das entidades ibejis e erês

    Imagem: Luciola Villela/UOL
  • 5

    Joias reais

    Feito de palha, miçangas, búzios e terracota, o colar de Kelê simboliza uma aliança entre o iniciado no candomblé e seu orixá

    Imagem: Luciola Villela/UOL
  • 6

    Comunicação

    Roupas usadas por Exu, orixá que, entre outras atribuições, atua como mensageiro entre divindades e seres humanos

    Imagem: Luciola Villela/UOL
Luciola Villela/UOL

Do lixo para o museu

No auge da perseguição às religiões afrobrasileiras, em 1938, aportou no Recife a Missão de Pesquisa Folclórica do Departamento de Cultura de São Paulo. Durante a expedição, seus integrantes foram autorizados a levar tambores, otás (pedras-fetiche em que a força sagrada de um orixá é fixada após rituais), quartinhas (recipiente de barro ou louça para guardar líquidos usados em cultos) e outros objetos sequestrados que estavam prestes a serem jogados no lixo.

A opressão era tamanha que, durante um ritual acompanhado pela missão folclórica no terreiro de Guida Mulatinho, um grupo de policiais, sem saber da permissão dada pelo delegado Roma, chegou a interromper o evento, retomado apenas após a intervenção dos paulistas.

À época, a perseguição a religiões afrobrasileiras era uma das estratégias usadas para ganhar notoriedade
Rafael Vitor Barbosa Sousa, coordenador do Acervo Histórico da Discoteca Oneyda Alvarenga, no CCSP

A doação deu origem à coleção que hoje se encontra no Centro Cultural São Paulo. O conjunto completo recolhido pela missão tem, ao todo, mais de 20 mil itens, todos foram reunidos em seis diferentes estados, como Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão e Pará. De acordo com Sousa, a maior parte dos artefatos foi comprado pela expedição — o que aconteceu com as peças de xangô de Pernambuco foi uma exceção.

Exceção, Museu Afro-brasileiro tem coleção formada por doações; veja peças:

  • Mensageiro

    Escultura de Exu feita em ferro por Agnaldo Silva da Costa Ferreira na cidade de Cachoeira em 1975

    Imagem: Raul Spinassé/UOL
  • Ferro e fogo

    Espada de Iansã, orixá ferreiro, doada pela Ialorixá Olga Francisca Régis

    Imagem: Raul Spinassé/UOL
  • Trono

    Cadeira de Laura Costa Santos, da Nação Ewejeje, ao lado da indumentária de Angorô e traje ritual de Mona Nkisi Meian Kunã (Marlene da Hora) e indumentária de Ogum e traje ritual, de Pai Nezinho de Muritiba

    Imagem: Raul Spinassé/UOL
  • Trindade

    Escultura de Iemanjá, emprestada da coleção Estácio de Lima em 1982, junto das estátuas de Oxalá e Xangô, feitas por Manoel Bomfim e doadas por Emanoel Araújo em 1983

    Imagem: Raul Spinassé/UOL
  • Força

    Esculpido em madeira, machado de Xangô, simboliza o orixá da Justiça, dos raios e do trovão

    Imagem: Raul Spinassé/UOL
  • Beleza

    Leque em forma circular, chamado de Abebê, de Oxum, doado pela Barraca São Jorge em 1977

    Imagem: Raul Spinassé/UOL

Um museu, duas coleções

De tão famoso por perseguir terreiros em Salvador, Pedro Gordilho virou personagem de romance de Jorge Amado. Apesar de ter sido delegado por curto período, de março a outubro de 1922, é a inspiração por trás de Pedrito Gordo, de "Tenda dos Milagres".

Na cidade, o delegado Pedrito Gordo soltara a malta do terror com carta branca: invadir terreiros, destruir pejis, surrar babalaôs e pais-de-santo, prender feitas e ialorixás. 'Vou limpar a Bahia dessa imundice!' Deu ordens estritas aos soldados da polícia, organizou a escolta de bandidos, partiu para a guerra santa
Jorge Amado, em 'Tenda dos Milagres'

Algumas dessas batidas apreenderam itens, que mais tarde originaram parte de uma das coleções hoje aos cuidados do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A outra parte foi reunida pelo médico legista Estácio de Lima, que passou a angariar peças de religiões afro-brasileiras junto aos próprios terreiros na década de 1930. Ao todo, são cerca de 200 artefatos, entre atabaques, colares e mais de 15 figas.

É sabido que ele tinha relação próxima, trânsito no Gantois e outros terreiros, sendo respeitado pela comunidade à época. A questão não é só como os objetos foram recolhidos, mas o contexto em que eram expostos. Muitas vezes, isso se dava de uma forma a criminalizar as religiões, colocando-os ao lado de itens do cangaço, por exemplo
Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha, gestor do centro cultural e professor do departamento de museologia da UFBA

Com o passar dos anos, uma pequena parte do acervo que havia sido sequestrada e também estava em outros lugares, como o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, foi devolvido a suas comunidades de origem.

O caso mais emblemático é o da cadeira de Jubiabá, famoso babalorixá dos anos 1910, cujo nome está entalhado no espaldar do móvel. Feita com madeira branca e palha no assento e encosto, a cadeira é símbolo de poder máximo dentro do candomblé. Espécie de trono, foi apreendida em uma operação de Gordilho.

A repatriação só foi possível porque ela trazia o nome do pai de santo. O destino foi o terreiro Mokambo que, apesar de ter sido criado em 1993, recebeu do IGHB a cadeira porque é liderado pelo pai de santo Tata Anselmo Santos, bisneto de santo de Jubiabá.

O museu baiano tem ainda outra coleção, que vai na contramão de outros acervos analisados pela reportagem.

A Coleção Material Afrobrasileira foi construída a partir de doações e encomendas feitas a 20 terreiros de Salvador e do Recôncavo Baiano nas décadas de 1970 e 1980. Por isso, seus itens são catalogados, com informações sobre origem e data de fabricação. Alguns dos destaques são uma roupa usada por Mãe Menininha dos Gantois em sua festa de 50 anos e 27 painéis de cedro de 3 metros de altura do artista Caribé com representações dos orixás.

"Quando comparada a acervos que são fruto da violência policial, a Coleção Afrobrasileira representa um contraponto. Ela existe por conta de um reconhecimento por parte da comunidade da importância do museu", diz Cunha.

Raul Spinassé/UOL
Topo