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Após 75 anos, polícia libera bens que contam origem do candomblé no Rio

Peças da "Coleção da Magia Negra" sendo vistoriadas pela comissão dos direitos humanos da Alerj em 2017 - Arquivo Pessoal/Flavio Serafini
Peças da "Coleção da Magia Negra" sendo vistoriadas pela comissão dos direitos humanos da Alerj em 2017 Imagem: Arquivo Pessoal/Flavio Serafini

Saulo Pereira Guimarães

Colaboração para o UOL, do Rio

20/08/2020 04h00

Um conjunto de oito anéis pode ajudar a reconstituir linhagens antigas da umbanda e do candomblé carioca. Os itens fazem parte da chamada Coleção da Magia Negra, formada por objetos apreendidos pela Polícia Civil no Rio. Após quase cem anos anos sob tutela da instituição, as 523 peças do acervo tiveram sua transferência para o Museu da República, no Catete, anunciada no começo de agosto.

Segundo o historiador da Universidade Federal Fluminense (UFF) Luiz Gustavo Alves, os anéis de metal pertenciam a líderes de religiões afro-brasileiras. Os desenhos e inscrições talhados neles devem colaborar para ampliar a compreensão dos cultos praticados em uma época em que as manifestações religiosas de matriz africana eram alvo de perseguição no país.

Além das joias, um grupo de 22 cachimbos é outro destaque da coleção, por, de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), estar em bom estado de conservação. O conjunto tem ainda 60 esculturas, 13 tambores e 10 peças de indumentária.

Os itens foram recolhidos pela Polícia Civil em ações realizadas entre 1889 e 1945. O registro das apreensões não incluía procedência e outras informações. Na avaliação do Iphan, a maior parte delas apresenta estado de conservação regular (373 objetos) ou ruim (148).

Estes objetos são os mais antigos do tipo sobre as quais temos notícia hoje no Rio
Arthur Valle, historiador de arte da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

R$ 200 mil para transferência

Ainda que confirmada, a transferência não tem data para acontecer. No momento, o Museu da República está selecionando a empresa de transporte que fará o serviço. O deslocamento do Museu da Polícia, no Centro, para o Catete será financiado pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj).

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Boneca africana, usada em cultos de candomblé e umbanda e apreendida pela Polícia Civil do Rio quando religiões de matriz africanas eram criminalizadas no Brasil
Imagem: Divulgação/Iphan

Uma emenda aprovada na Câmara dos Deputados destinou R$ 200 mil ao processo de higienização das peças pelo Iphan e outros cuidados para preservação. O acordo entre a Polícia Civil e o Museu da República prevê que equipes técnicas e lideranças religiosas façam a gestão do acervo.

Os bens não foram devolvidos a seus antigos donos, porque muitos dos terreiros que abrigavam os cultos desapareceram justamente em decorrência das apreensões do começo do século 20.

O Museu da República foi escolhido como destino das peças após a instituição apresentar um projeto para receber e tratar os objetos. Isso favorece a realização de mostras públicas no futuro, ainda sem data para ocorrer. "Uma possível exposição da coleção ainda deve levar algum tempo para acontecer", afirma Luiz Gustavo Alves, historiador da UFF, que acompanhou a campanha que proporcionou a transferência, chamada de Liberte Nosso Sagrado.

Segundo ele, uma das demandas do movimento é a mudança do nome de Coleção da Magia Negra para Acervo do Sagrado Afro-Brasileiro, em função da conotação racista da alcunha atual.

Quatro anos de mobilização

A Liberte Nosso Sagrado reuniu membros da OAB-RJ, da Defensoria Pública e de mais de 15 casas religiosas do Rio. Lideranças do candomblé e da umbanda lutavam pela liberação das peças desde a década de 1970, mas só em 2017 o processo que deu origem ao cenário atual ganhou corpo.

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Figa, usada em cultos de candomblé e umbanda e apreendida pela Polícia Civil do Rio quando religiões de matriz africanas eram criminalizadas no Brasil
Imagem: Divulgação/Iphan

Informados sobre a situação há quatro anos, integrantes da Comissão de Direitos Humanos da Alerj foram ao Museu da Polícia para uma vistoria. "Na primeira caixa que abrimos, uma peça feita de material orgânico estava cheia de traças", lembra o deputado estadual Flávio Serafini (PSOL), articulador da campanha.

Diante do quadro, os parlamentares enviaram uma representação ao Ministério Público Federal. O órgão realizou audiências e pediu nova vistoria ao Iphan. Depois, produziu relatório recomendando transferir itens para local com melhores condições de conservação.

Contatada pelo UOL, a polícia do Rio não respondeu até a publicação inicial deste texto questionamentos referentes à conservação das peças.

Primeira coleção tombada pelo Iphan

A Coleção da Magia Negra foi a primeira a ser tombada pelo Iphan no Brasil, em 1938. Doutoranda em história comparada pela UFRJ, Valquíria Velasco afirma que o entendimento à época era de que as religiões afro-brasileiras eram primitivas e deixariam de existir. A preservação se deu pelo "valor etnográfico" das peças.

Elas foram levadas na década de 1970 para o Museu da Polícia, onde eram usadas na formação de agentes. "Há fotos mais antigas em que estas peças aparecem ao lado de bandeiras nazistas e objetos ligados ao jogo do bicho", conta Valquíria.

No Museu da Polícia, as peças ficavam inevitavelmente associadas a um contexto de crime. Agora, em um espaço neutro, elas ganharão um significado diferente. A história de repressão não será esquecida, mas deixará de ser o principal aspecto relacionado a estes objetos
Arthur Valle, historiador de arte da UFRRJ

No começo da década de 1990, um incêndio no local ainda destruiu parte do acervo.

Religiões criminalizadas

Em sua pesquisa de mestrado, Velasco analisou 124 casos de repressão policial a espaços religiosos entre 1890 e 1929. Ela conta que os cultos afro-brasileiros eram enquadrados nos artigos 157 (espiritismo, magia e outros sortilégios) e 158 (curandeirismo) do Código Penal de 1890.

A repressão tinha um sentido civilizatório e o fator racial era decisivo para que certas práticas fossem classificadas como incivilizadas
Valquíria Velasco, doutoranda em história comparada pela UFRJ

Os cultos eram denunciados pelos jornais, o que motivava as ações da polícia, conta a historiadora. Nas incursões, objetos eram apreendidos como provas dos crimes, e isso deu origem à Coleção da Magia Negra.

Concentrados no Centro até 1910, os terreiros alcançaram bairros como Engenho Novo e Méier na década seguinte. Nos anos 1930, chegaram a subúrbios mais distantes, como Madureira e Irajá.

Em 1934, a polícia chegou a criar uma delegacia especializada neste tipo de ilícito, a Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Misticismo. Oito anos depois, um novo código penal acabou com a criminalização oficial da umbanda e do candomblé no Brasil.

No anúncio da transferência do acervo, a delegada Gisele Vilarinho, diretora do Museu da Polícia Civil, resumiu o que é considerado uma nova visão da instituição em relação às peças: "Somos uma polícia que não reprime a religião, e sim o crime".

Acervo raro

Mesmo no resto do país, acervos com as mesmas características que a Coleção da Magia Negra são raros. Um exemplo é a Coleção Perseverança, montada em Alagoas após um episódio de intolerância religiosa conhecido como Quebra dos Xangôs, ocorrido em Maceió em 1912.

Há também os conjuntos do Museu do Estado de Pernambuco e do Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O primeiro é composto de peças apreendidas pelo general Paulo Figueiredo na Era Vargas. Já o segundo reúne peças recolhidas durante 14 anos pelo médico eugenista Nina Rodrigues, morto em 1906.

Segundo o deputado Serafini, a outra grande coleção de peças de candomblé, que datavam do tempo do império, estava no Museu Nacional. Mas os itens se perderam no incêndio de 2018.