Você come mal no Metrô de SP

Oferta de produtos saudáveis inexiste, além de trabalhadores sofrerem com condição insalubre para se alimentar

Natália Silva e Victor Matioli Colaboração para o UOL, do Joio e o Trigo Inês Bonduki/UOL

As vidas de Heloísa Pompeu, estudante da Universidade de São Paulo, e Juciara Gomes, vendedora em uma loja de acessórios no Metrô, se conectam no subsolo da maior cidade brasileira. Nas estações, as duas, que não se conhecem e pouco têm em comum, comem mal. A primeira é vítima confessa de uma compulsão alimentar. A outra, da insalubridade.

Na volta para casa, Heloísa compra com frequência os mini pães de queijo vendidos aos montes dentro das estações - e que raramente têm queijo na composição. Mesmo quando tem uma fruta na bolsa, cai na tentação. "É ruim, mas é viciante", reconhece.

A estudante desconta na comida a ansiedade causada pela rotina: ela acorda bem cedo todos os dias para ir de casa, na Vila Matilde, zona leste da capital, à USP, na zona oeste, onde faz graduação em letras. Para evitar a lotação dos trens, precisa sair antes das 6h.

Na volta, faz o caminho inverso pelas linhas 4-amarela e 3-vermelha do Metrô, onde não consegue desviar do cheiro intenso e artificial dos pães de queijo.

Juciara passa nove horas de seu dia dentro da estação São Bento, na linha 1-azul, onde vende colares, anéis e brincos em um pequeno quiosque —que parece cada dia menor conforme a barriga dela cresce. Ela está grávida do segundo filho, que deve nascer em setembro. De onde trabalha, a vendedora consegue ver a porta para o refeitório dos metroviários. Almoçou lá algumas vezes "de penetra", até ser notada e proibida de entrar.

"Eles têm um refeitório maravilhoso, com uma televisão de plasma, mesa, geladeira, micro-ondas, água, café, leite e coisas para temperar salada", descreve.

Sem nada disso, Juciara come a marmita dentro do quiosque: "Aqui ó, sentada nessa lixeira", diz, apontando para o chão. Uma colega de trabalho explica que nem sempre a comida resiste à falta de refrigeração. "Tenho medo de abrir a marmita e ver que está estragada", comenta. "Já aconteceu várias vezes."

As condições degradantes de trabalho às quais Juciara e centenas de outras pessoas são submetidas passam despercebidas pelos 3,7 milhões de passageiros que transitam pelas estações todos os dias, segundo o relatório integrado de 2018 do Metrô de São Paulo.

Os dois lados da mesma história se encontram em meio a lojas, quiosques e máquinas de venda que têm de tudo: roupas, acessórios, chips de celular, remédios. E muita comida.

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Uma reportagem da Folha de S. Paulo apontou que o metrô já é o quinto maior centro de compras da capital paulista, ficando à frente dos shoppings Eldorado e Iguatemi. No total, são 374 lojas espalhadas por estações e terminais de ônibus vinculados à Companhia do Metropolitano de São Paulo, administradora das linhas públicas, que arrecadou R$ 68 milhões com aluguéis em 2018.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, a reportagem foi informada de que, no mesmo período, o Metrô recebeu R$ 31,3 milhões alugando pontos comerciais para venda de alimentos, o que representa apenas 1,54% do arrecadado com a cobrança de tarifas de viagem (R$ 2,02 bilhões).

Apesar da grande oferta de comida nas estações, a qualidade dos alimentos vendidos é baixíssima. Os ultraprocessados são maioria: hambúrgueres, cachorros-quentes, salgados, refrigerantes, salgadinhos, bolachas, balas e chocolates.

De forma geral, essas são as opções disponíveis para quem decide, ou precisa, se alimentar no metrô - ricas em sal, açúcar, gordura e aditivos, como corantes e aromatizantes. As alternativas saudáveis praticamente inexistem; e, quando existem, estão escondidas entre as embalagens coloridas e apelativas dos alimentos industrializados.

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Pântanos alimentares

A predominância dos ultraprocessados foi constatada no ano passado pela nutricionista Jessica Vaz Franco, que analisou na pesquisa de mestrado a comercialização de alimentos nas estações do Metrô de São Paulo. Com base nas recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira e na classificação NOVA, Jessica auditou 66 estabelecimentos em 19 estações das linhas azul, verde e vermelha.

O objetivo da pesquisadora era classificar o ambiente alimentar das estações e compreender tudo aquilo que de alguma forma influencia o quê, como, quanto, onde e por que se come. Segundo Jessica, as estações podem ser classificadas como "pântanos alimentares", ou seja, espaços nos quais há uma grande oferta de alimentos, mas predominam os de baixa qualidade nutricional. Com isso, o ambiente se torna "obesogênico", porque incentiva os usuários a consumirem alimentos calóricos em grandes quantidades.

Estudos sobre como o ambiente influencia a alimentação recebem cada vez mais atenção da comunidade científica, que tenta entender por que a obesidade se transformou num dos maiores problemas de saúde pública do mundo - e como é possível colocar um freio na tendência de aumento.

Juntos, o Metrô e as concessionárias ViaQuatro e ViaMobilidade —responsáveis pelas linhas 4-amarela e 5-lilás, respectivamente— são responsáveis por aproximadamente 12% das viagens de transporte público na região metropolitana de São Paulo, segundo a Pesquisa Origem e Destino de 2017.

Camila Duarte é uma das milhões de pessoas que usam o metrô diariamente. Ela é vendedora, usa o transporte para visitar clientes e, sem tempo para deixar a estação e comer, comprava cachorro-quente e coxinha com frequência nas estações. O corpo e o bolso arcaram com as consequências.

"Acabei indo a uma nutricionista. Agora, trago minhas marmitas de casa, com coisas mais saudáveis", explica. No dia em que conversou com a reportagem, Camila estava comendo sentada no chão da estação Luz, na linha azul. O metrô, apesar da oferta de alimentos, continua a ser um lugar de passagem. Por isso, não há espaços pensados para quem, por diferentes motivos, precisa parar.

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Ruim para quem passa, pior para quem fica

Assim como Juciara, milhares de pessoas fazem dos trens que cruzam a cidade o ganha-pão. Os impactos do ambiente alimentar do metrô ficam ainda mais evidentes para esse grupo do que para os usuários. Relatos coletados de mais de 70 trabalhadores — entre metroviários, funcionários de lojas e de quiosques, empregados terceirizados da limpeza, seguranças e jovens aprendizes — mostram como eles se relacionam com o ambiente e o que pensam sobre ele.

O grupo não é homogêneo. Os funcionários diretos e terceirizados do Metrô e das concessionárias têm acesso, em todas as estações, a pelo menos um refeitório (foto abaixo), banheiro exclusivo e água potável. Empregados de lojas e quiosques ficam excluídos. São proibidos de entrar nos refeitórios e só podem usar banheiros e bebedouros públicos, quando existem.

Os relatos são muito parecidos, quase repetitivos: a maioria dos trabalhadores leva uma marmita de casa, mas não tem geladeira para conservar nem micro-ondas para aquecer; comem dentro do quiosque, do lado de fora ou em outro canto da estação; sentados em um banco, no chão ou em pé mesmo. Alguns pedem para colegas de quiosques que têm micro-ondas para aquecer a comida, outros comem fria.

Por estar grávida, Juciara às vezes é autorizada a usar o bebedouro dos funcionários do metrô. "Quando os rapazes estão de bom humor, eles me deixam encher uma garrafinha ali dentro", conta. "Mas só eu, porque tô grávida. As outras meninas não." Com um sorriso amarelo, uma das colegas completa: "Acho que eles ficam com dó." Quando o pedido não é atendido pelos funcionários da estação, Juciara é obrigada a subir um lance de escadas e a passar por duas catracas antes de chegar ao bebedouro público.

Thaís*, funcionária de uma loja de acessórios da linha amarela, sofre ainda mais. Ela costuma levar de casa uma garrafinha de água e, quando precisa, compra outra na estação em que trabalha. Mais de uma vez, entretanto, a vendedora se viu sem dinheiro.

Pedir para os seguranças da ViaQuatro, segundo ela, é perda de tempo: dizem que não podem ajudá-la. Sem dinheiro e opção, Thaís conta que já encheu diversas vezes a garrafinha na pia do banheiro público da estação.

Se conseguir água é um desafio para esses trabalhadores, comer é uma luta diária. Proibidos pelo regulamento interno de fazer as refeições dentro da própria loja, eles deveriam comer fora das estações.

Como a maioria recebe salários baixos e não dispõe de benefícios como vale-alimentação e vale-refeição, essa opção é inviável. Thaís só pode entrar e sair da estação em que trabalha: se quiser embarcar no trem e procurar opções mais baratas em outras regiões, tem de pagar a passagem.

"É o mínimo do mínimo", disse uma vendedora da linha vermelha sobre o acesso ao refeitório da estação. "Se eles [metroviários] trabalham aqui dentro e têm esse direito, por que nós não temos?

Reprodução/UOL

Longe dali, na zona oeste da capital, uma vendedora da linha amarela sucumbiu à ausência de condições e deixou de levar marmita. "Eu gosto de comida quente", explicou. A solução, para ela, é gastar uma fatia maior do salário para comer um lanche na estação ou pedir um marmitex em um dos restaurantes da região.

Ainda que levem marmita, os funcionários das lojas continuam expostos aos alimentos vendidos nas estações. Poucos conseguem passar o dia todo sem consumir algo além do que levam de casa. "Antigamente aqui só tinha coxinha, coxinha e coxinha? A gente passou mal de tanto comer coxinha", protesta uma funcionária da linha amarela.

No regulamento interno, o Metrô deixa claro que é responsabilidade das empresas autorizadas "cumprir legislações e requisitos de segurança e saúde do trabalho de seus empregados", o que inclui as normas regulamentadoras (NRs) criadas em 1978 pelo então Ministério do Trabalho e Emprego para garantir condições dignas aos trabalhadores.

As regras sobre condições sanitárias e de conforto estão descritas na NR 24. De acordo com o documento, aos funcionários deve ser oferecido um local para refeições que atenda "aos requisitos de limpeza, arejamento, iluminação e fornecimento de água potável". Caso o trabalhador decida trazer de casa sua própria comida, "a empresa deve garantir condições de conservação e higiene adequadas e os meios para o aquecimento em local próximo ao destinado às refeições".

A NR 24 também descreve as responsabilidades das empresas em relação à disponibilidade de água para os empregados: "Em todos os locais de trabalho deverá ser fornecida aos trabalhadores água potável, em condições higiênicas, sendo proibido o uso de recipientes coletivos". A norma indica que devem ser oferecidos pelo menos 250 ml de água por hora de trabalho para cada funcionário, ou seja, pelo menos dois litros de água para o turno usual de oito horas.

Para a advogada trabalhista Mariana Serrano, a indicação de que as empresas autorizadas são obrigadas a cumprir a legislação trabalhista não isenta de responsabilidade o Metrô e as concessionárias. Ela entende que as organizações podem ser culpabilizadas "à medida que não fiscalizam as condições, permitindo trabalho em situações desumanas, e também por terem escolhido empresas despreparadas para a prestação do serviço".

A advogada ressalta ainda que o fato de alguns trabalhadores não terem acesso aos refeitórios das estações é um atentado à dignidade. "É uma conduta discriminatória", explica. "Eles trabalham no mesmo local, o refeitório está ali, não existe motivo razoável para que uns possam usar, e outros, não."

A reportagem enviou questionamentos ao Metrô e à ViaQuatro sobre a ausência de bebedouros públicos em diversas estações e a proibição do uso das instalações pelos funcionários de lojas e quiosques. O Metrô decidiu não se manifestar. A ViaQuatro informou que "aplica normas e regulamentos específicos para viabilizar sua estratégia de comercialização e segue as práticas de mercado".

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Melhor, mas nem tanto

Apesar de sujeitos a melhores condições de trabalho, os empregados diretos e terceirizados do Metrô enfrentam as próprias dificuldades. Uma funcionária da limpeza da linha amarela disse que leva marmita sempre que pode, mas, quando não consegue, se vê obrigada a comer nas lojas de dentro da estação. Ela até gosta da comida, mas sabe que não é saudável: "No começo eu comia bastante, mas as outras meninas começaram a falar pra eu diminuir porque a saúde da gente fica bem debilitada, né?".

Um segurança da mesma linha contou que tem o hábito de levar uma marmita de casa. Quando o tempo está apertando, substitui o almoço por uma "bobagem" dos quiosques. A realidade é semelhante para os seguranças das linhas públicas.

Luiz*, metroviário com mais de três décadas de casa, revelou que também não consome nada nos quiosques. "É um quebra-galho, não uma alimentação saudável."

A questão mais sensível para os metroviários, contudo, não é a comida, mas o tempo necessário para fazer as refeições de forma decente. "Aqui a gente não tem horário de almoço, precisamos estar sempre à disposição", conta Luiz. "Quem tem uma hora é um pessoal que entrou com um processo [contra o metrô]. A empresa mesmo não dá, isso é só via judicial."

A reportagem identificou três regimes distintos de pausa para refeições nos relatos dos funcionários diretos do Metrô. Alguns não têm tempo fixo para alimentação, mas se organizam informalmente para assumir os postos de trabalho dos colegas que se ausentam para comer. Outro grupo relatou ter 30 minutos para fazer as refeições em decorrência de um acordo firmado entre o sindicato e o Metrô. Por fim, alguns contaram que têm direito a um intervalo de uma hora graças a uma ação judicial e, por esse motivo, cumprem uma jornada diária de nove horas.

Procurado pela reportagem, Rodrigo Kobori, secretário de Assuntos Jurídicos do Sindicato dos Metroviários, disse que existem somente dois grupos de metroviários: um que cumpre 30 minutos de intervalo para refeição e outro que cumpre uma hora, por determinação judicial.

A Companhia do Metropolitano de São Paulo não tem um bom histórico na Justiça do Trabalho. Em junho deste ano, a autarquia passou a ocupar a 65ª posição no "Ranking das Partes" do Tribunal Superior do Trabalho, somando 559 processos. O índice registra as organizações com mais ações na última instância. Se forem consideradas somente as empresas de transporte, o Metrô sobe para a quarta posição.

Por meio da assessoria de imprensa, o Ministério Público do Trabalho em São Paulo informou que não recebeu até o momento nenhuma denúncia sobre os problemas apontados pela reportagem. O órgão reiterou ainda que apura todas as questões relacionadas ao meio ambiente de trabalho e ao cumprimento das normas regulamentadoras.

Inês Bonduki/UOL Inês Bonduki/UOL

Comer direito é um direito

Para Paulo César Castro, professor do Instituto de Nutrição da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a disponibilidade de alimentos não saudáveis em um equipamento público, como o Metrô, revela uma omissão do Estado em relação ao direito humano à alimentação adequada. "Permitir uma ação da iniciativa privada no setor da alimentação que não converge com políticas públicas mostra o quanto o estado de São Paulo desconhece o que é alimentação adequada e saudável e está levando em consideração apenas o ganho financeiro, desconsiderando todo o custo em saúde que essas iniciativas acabam provocando para a população".

O direito à alimentação adequada está garantido no artigo 6º da Constituição Federal desde 2010. Antes disso, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), sancionada em 2006, tornou a alimentação adequada uma política de Estado. Paulo César aponta que o metrô, como um equipamento gerido pelo governo paulista, deveria cumprir o que é dito na Losan: o poder público é obrigado a adotar políticas para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

Procurado pela reportagem, o Metrô afirmou que "respeita todas as leis e normas que regem a atividade de comércio nas estações, tanto no que se refere à alimentação como aos demais produtos oferecidos nas lojas e observa os princípios aplicáveis da Losan". Questionada, a Companhia não detalhou quais são os "princípios aplicáveis" que observa. Por meio da assessoria de imprensa, o Metrô disse ainda que "60% dos pontos comerciais de alimentos dispõem de opções naturais ou integrais no mix de produtos oferecidos", sem explicar o que significam essas opções.

Os dados são diferentes dos encontrados por Jessica durante a pesquisa para o mestrado. Entre os alimentos classificados como saudáveis, apenas a água mineral estava presente na maioria dos pontos comerciais (63,6%), seguida por hortaliças cruas (7,6%), sucos e frutas (3% cada um).

As informações coletadas por Jessica são alarmantes, principalmente em uma cidade como São Paulo, que sofre com problemas causados, entre outros motivos, pela má alimentação. De acordo com a pesquisa Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) de 2018, do Ministério da Saúde, 56,6% dos adultos da capital paulista estão acima do peso. Dez anos atrás, esse índice era de 45,6%.

Lenita Borba, coordenadora da Comissão de Políticas Públicas do Conselho Regional de Nutricionistas da 3ª Região, que abrange São Paulo e Mato Grosso do Sul, diz que o poder público poderia agir no sistema de transporte de maneira semelhante à que atua em escolas: "Em ambientes escolares existe uma legislação que obriga ao fornecimento de alimentos saudáveis e com composição balanceada", afirma. "Qualquer ambiente público deve ter esse mesmo exemplo e objetivo."

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos trabalhadores.

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