Por que países criaram restrições a medicamentos que melhoram dores terríveis?
O mundo está vivendo uma epidemia de dor. A cada ano, cerca de 60 milhões de pessoas sentem uma dor lancinante, mas que poderia ser evitada com o uso de medicamentos corretos, especialmente opioides como a morfina. São tanto pacientes em fase final de vida ou com doenças que provocam muita dor, como o câncer.
O número foi estimado por uma comissão de cientistas formada pela "Lancet", um importante periódico médico. Só no Brasil, seriam 1,2 milhão de pessoas por ano.
A raiz desse problema é simples. Os opioides, que são os analgésicos mais baratos e mais eficientes conhecidos (ainda que perigosamente viciantes), são muito difíceis de obter em países em desenvolvimento.
Na Índia, por exemplo, os cientistas estimaram que apenas 4% dos doentes que sofrem de dor profunda recebam esses medicamentos. Já no Brasil, seriam 74% --ou seja, cerca de 3 de cada 10 brasileiros que vivenciam dores insuportáveis não têm acesso aos medicamentos adequados para aplacá-las.
Os opioides são medicamentos derivados da papoula --planta que também é a base de produção do ópio. Eles estimulam receptores no cérebro e geram um poderoso alívio da dor. Além disso, reduzem a ansiedade e a depressão que costumam acompanhar episódios de dor intensa.
Por outro lado, os opiáceos também produzem uma sensação de euforia e são altamente viciantes --a ponto de causarem uma epidemia hoje considerada crise de saúde pública nos EUA.
Por isso, há o perigo de que sejam usados de forma irregular. Em todo o mundo, a guerra às drogas tem buscado restringir o fornecimento dessas substâncias para combater os casos de abuso e vício.
O problema, segundo os médicos, é que essas restrições foram muito longe em diversos países e estão prejudicando o acesso a opioides para o alívio da dor, algo lícito e necessário.
A dificuldade de comunicar a escala da dor
Na Índia, o médico MR Rajagopal tem lutado há décadas contra a dificuldade de acesso a opiáceos para tratar a dor. Sua batalha começou há 40 anos, quando conviveu com os gritos de agonia de um vizinho que estava nos estágios finais de um câncer severo.
"A família dele perguntou se eu poderia ajudar", lembra Rajagopal, "mas eu não podia fazer nada, eu era apenas um estudante de medicina na época". A sensação de impotência face a um sofrimento tão grande fez com que o médico se especializasse em anestesia e cuidado paliativo --a prevenção e o tratamento do sofrimento gerado por doenças graves.
Depois de tantos anos de ativismo, o médico indiano reconhece que a dor continua a ser ignorada --não apenas na Índia, mas em todo o mundo. É o que ele descreve como uma epidemia "invisível".
"Se a dor fosse infecciosa, nós não teríamos esse problema", diz o médico. "Nesse momento, a dor só é um problema para quem está sofrendo. Para todos os demais, (a dor) é vista como um problema alheio".
O desafio começa já na hora que o paciente precisa comunicar a escala da dor e do sofrimento para o médico. "Uma mera estudante, quando se apaixona, tem Shakespeare para se expressar", disse certa vez a escritora inglesa Virginia Woolf, "mas quando um paciente tenta descrever uma dor de cabeça para o seu médico, a linguagem de repente se esvai".
Se o desconforto de uma dor de cabeça não pode ser traduzido por uma escritora tão celebrada como Virginia Woolf, imagine a dor aguda de um câncer, diz Rajagopal, caminhando pelo hospital de cuidados palliativos que administra no Estado de Kerala, na Índia.
"A maioria de nós tende a julgar a dor pela nossa própria experiência", diz o médico. "Nós não podemos entender que a dor está além do poder de nossa imaginação. A profundidade da agonia que as pessoas experimentam é inacreditável. Nós não vemos e os hospitais não veem, porque os médicos dizem que não há nada mais que possa ser feito por aquele paciente e mandam ele para casa".
Desigualdade na distribuição de morfina no mundo
Há uma desigualdade no acesso a medicamentos contra a dor no mundo, segundo o estudo publicado na Lancet. Das 300 toneladas de opioides distribuídas por ano, uma quantidade insignificante de 0,1 tonelada vai para países de baixa renda.
"O acesso a uma intervenção médica tão inexpressiva, essencial e efetiva é negado à maioria dos pacientes nos países de renda baixa e média", conclui o estudo. "Esse fato é uma falha médica, de saúde pública e moral". Chama a atenção o linguajar muito crítico, incomum em periódicos médicos.
Assim como os autores do estudo da "Lancet", o médico Rajagopal está revoltado com a grande quantidade de restrições que países como a Índia foram encorajados a adotar contra os opioides. Com regras tão rígidas, se tornou muito raro que pacientes com dor severa recebam esses medicamentos.
De fato, houve alguns avanços. Mas eles foram interrompidos quando o mundo tomou conhecimento da crise no uso de opioides nos Estados Unidos.
Lá, o problema é o oposto. Houve um excesso de prescrição de analgésicos à base de opioides, gerando um grande abuso dessas drogas. Hoje, mais pessoas morrem nos Estados Unidos vítimas de overdose de opioides do que em acidentes de carro.
Rajagopal se diz frustrado pela forma como o debate internacional sobre dor foi sequestrado pela experiência negativa americana. "Precauções básicas não foram tomadas pelos Estados Unidos", afirma.
Por outro lado, há muitos exemplos de regulamentações de opioides que foram bem-sucedidas, diz o médico indiano. "Nós temos a Inglaterra, a França e a Alemanha, onde um equilíbrio foi obtido. Esses países mostraram que nós podemos tornar os opioides disponíveis, ao mesmo tempo em que prevenimos o uso inapropriado".
SUS disponibiliza opioides, mas o acesso é muito difícil
O consumo de morfina no Brasil é muito baixo quando comparado a países tidos como modelos internacionais no cuidado paliativo, como Inglaterra e Alemanha. Seriam 3 mg per capita no Brasil, contra cerca de 20 mg nesses países, segundo a International Narcotics Control Board.
Isso significa que "muita gente tem dor no Brasil e não consegue ser medicada", diz a médica Maria Goretti Sales Maciel, diretora do serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. A maioria delas, pacientes com câncer avançado.
O problema no Brasil não é falta de medicamentos, mas a dificuldade de fazê-los chegar aos pacientes, explica Maria Goretti.
"O SUS disponibiliza opioides, como morfina, metadona e codeína. Só a morfina e metadona resolvem 98% dos problemas da dor. Mas, apesar de serem disponibilizados pelo SUS e de serem muito baratos, o acesso a esses medicamentos é muito difícil. A gente tem a faca e o queijo na mão, mas não sabe cortar".
O médico André Filipe Junqueira dos Santos, vice-presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos e membro do Instituto Oncológico de Ribeirão Preto, lista três motivos que dificultam o acesso aos opioides no Brasil.
Primeiro, o excesso de burocracia. Um médico precisa passar até 20 minutos preenchendo papéis para que os medicamentos sejam liberados. Além disso, a distribuição dos opioides é concentrada em pouquíssimos locais. Na cidade de São Paulo, por exemplo, só é possível retirar morfina em apenas duas unidades de saúde.
Segundo, "não há educação para a dor no Brasil", diz o médico. "Passei cinco anos estudando medicina na USP (Universidade de São Paulo) e nunca precisei receitar morfina. Apenas na residência médica tive contato com esse medicamento".
Como resultado, muitos médicos ainda têm receio de receitar morfina e acabam passando analgésicos mais simples, como dipirona, paracetamol e anti-inflamatórios.
Em terceiro lugar, a população brasileira ainda tem um estigma com relação ao uso de opioides para controlar a dor. A morfina é vista como remédio de quem está morrendo. Em outros casos, as pessoas acham que a dor faz parte da doença. Mas a "dor não é algo que a gente deva aceitar", afirma Junqueira dos Santos.
A BBC Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre as críticas de excesso de burocracia para receitar opioides contra a dor, mas não obteve resposta.
Situação não deve se resolver no curto prazo
O médico indiano Rajagopal reconhece que a mudança ainda vai levar tempo. Já com mais de 70 anos de idade, ele não tem planos de deixar a causa de lado.
"Nós sabemos como tratar a dor. O que nós precisamos agora é advogar em nome daqueles que sofrem de dor", fala o médico. "Quem está com dor não pode levantar sua voz, porque está tão fraco de corpo e espírito. E não há nenhuma associação de mortos que fale com políticos sobre as injustiças que sofreram".
Apesar da "invisibilidade" da dor, é algo que deveria preocupar a todos, diz o médico. "Não espere até que isso ocorra com você, porque pode ser tarde demais", afirma Rajagopal.
(*Com reportagem adicional de Amanda Rossi, da BBC Brasil em São Paulo)
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