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Clínica de saúde mental demite médicos, e pacientes ficam sem atendimento

Entrada do Caism (Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental), na Vila Mariana, SP - Unifesp/Divulgação
Entrada do Caism (Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental), na Vila Mariana, SP Imagem: Unifesp/Divulgação

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL em São Paulo

04/07/2018 04h01

Quem chegou ao Caism (Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental) nos primeiros dias de março tomou um susto. De repente, a recepção da clínica, na zona sul de São Paulo, estava lotada; parte dos psiquiatras, psicólogos e enfermeiros tinha mudado e até ficha de paciente desapareceu.

Eram os primeiros sintomas da troca de direção da clínica, que não é mais administrada pela Santa Casa de Misericórdia. Em 1º de março, o governo do estado de São Paulo passou a responsabilidade da gestão da unidade para a organização social SPDM e para a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

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Com a mudança, 101 profissionais perderam o emprego, dentre eles, dois terços dos psiquiatras (cerca de 25 profissionais), além de enfermeiros e psicólogos. A promessa era que ninguém ficaria sem atendimento, mas não foi o que aconteceu, segundo pacientes que conversaram com o UOL: desde a mudança, consultas foram canceladas sem prévio aviso e o atendimento, quando acontece, "não é mais o mesmo”.

“Eu vi nascer e vi morrer o Caism”, lamenta a aposentada Margarete Vieira, 50. Diagnosticada com Síndrome de Borderline, ela passa por acompanhamento na clínica desde novembro de 1998. Na época, ela enfrentava uma depressão profunda que quase terminou em suicídio.

“Por seis anos eu fiquei em uma semi-internação. De segunda a sexta, ficava ali das 8h às 17h”, relembra. Com o tratamento, ela obteve progressos a ponto de ajudar a criar um grupo de terapia ocupacional que fazia artesanato para venda no bazar do próprio Caism. “Era um jeito de a gente trabalhar, ter autonomia e voltar a conviver com as pessoas", diz.

Pacientes conversam em área de lazer do Caism - Wanderley Preite Sobrinho/UOL - Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Pacientes conversam em área de lazer do Caism
Imagem: Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Com o tempo, a semi-internação acabou e ela passou a receber dois atendimentos semanais: um na psiquiatria e outro na terapia ocupacional. Mas tudo mudou em março. Naquele mês, Margarete foi à clínica pedir seu prontuário para levar a uma perícia do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). “Eles disseram que não sabiam onde estava. Acontece que não é só um prontuário, é a minha vida de 19 anos para cá”, conta a aposentada. “Acharam meu prontuário no final de abril, quase dois meses depois.”

Se antes a aposentada passava por duas consultas semanais, após a mudança, ela ficou um mês e meio sem atendimento, embora já tenha sido internada 18 vezes no Caism por tentativa de suicídio. “Eu perguntava quando podia marcar, mas a recepção não sabia. Pediam para esperar uma ligação.”

“Depois de muito reclamar”, dona Margarete passou a receber atendimentos quinzenais, sem grupo de apoio ou terapia ocupacional. Seu filho, de 11 anos, também é atendido no Caism desde os cinco. Hiperativo e com déficit de atenção, ele passava por consulta mensal e por terapia ocupacional toda semana. Agora, a consulta é só a cada dois meses, e a terapia foi cancelada.

Quando precisou comprar remédios, Margarete tomou outro susto. “Me senti na praça da Sé comprando uma receita médica falsa. Eles me mandaram pedir a receita sem ir à consulta. É uma instituição psiquiátrica, tenho 18 internações por tentativa de suicídio.”

Surto e envenenamento

A dificuldade em agendar consultas quase terminou em tragédia para a dona de casa Vera Lúcia, 61. Depois de 11 anos viciada em cocaína, seus filhos a convenceram a iniciar tratamento no Caism, em 2007. “Foi uma bênção. Nunca mais usei drogas. Quando o tratamento é atencioso, recupera-se a dignidade.”

Ela deixou o vício, mas precisava passar pelo psiquiatra semanalmente. Ela também praticava costura na terapia ocupacional. “Quando mudaram a gestão e demitiram minha médica, fiquei desesperada. Fui lá quatro vezes e não marcavam consulta. Tive um surto em casa. Peguei veneno de rato e tomei. Minha filha chegou a tempo e me levou para o hospital.”

Segundo pacientes, desde a troca de direção, a recepção no Caism está mais cheia, e o atendimento está mais demorado - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Recepção no Caism vem ficando lotada; a espera por um médico pode chegar a quatro horas, afirmam pacientes
Imagem: Arquivo Pessoal
Ela diz que a nova administração tentou tornar bimestral sua consulta semanal. Após reclamar, agora é atendida uma vez por mês, mas continua sem a terapia ocupacional. “Marcaram a primeira consulta para quase dois meses depois de eu ter tomado o veneno.”

Vera diz que no Caism, agora, “está uma loucura, tudo lotado”. “Eu poderia estar morta agora por causa de um mau atendimento. Já tem muito preconceito fora, e agora começa lá dentro. A gente recebia muito apoio. O Caism pôs meus pés no chão, mas agora os pacientes estão ao léu. Os médicos dão remédio, mas não têm o carinho de antes.”

Sobre os casos apurados pela reportagem, a organização social garante que “irá apurar possíveis dificuldades enfrentadas para realizar agendamentos, entrando em contato com as pacientes para esclarecer a situação e viabilizar a continuidade de seus tratamentos”. A instituição diz ainda que a frequência de consultas é variável, de acordo com a necessidade de cada paciente, e nega que haja prescrição de medicamentos sem avaliações médicas prévias.

Corte nos serviços e demissões sob suspeita

Quando fundado em 1998, o Caism foi entregue pelo governo do estado à Santa Casa, que deveria administrá-lo. Com 43 leitos de internação e 60 de observação, a clínica realiza 10 mil consultas ambulatoriais mensais e atende 11 mil pacientes por ano no pronto-socorro psiquiátrico. 

Mas, com uma dívida aproximada de R$ 700 milhões, a Santa Casa justificou sua crise financeira para devolver a unidade. “O prejuízo mensal no Caism ficava entre R$ 700 mil e R$ 900 mil por mês”, disse a assessoria da irmandade. “Tentamos negociações com o governo estadual para renovar este contrato em padrões de equilíbrio de resultado, mas não houve êxito. Desta forma, colocamos a unidade à disposição do Estado, que transferiu o serviço a outra gestora.”

Com a troca de comando, segundo o presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp), Eder Gatti, profissionais de psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM), ligada à Unifesp, foram transferidos para o Caism.

“Antes, a rede de saúde mental contava, entre outros, com dois serviços distintos: o da SPDM e o da Santa Casa de São Paulo. O da Santa Casa foi extinto, e o pronto-socorro e a enfermaria de psiquiatria da SPDM apenas mudaram de endereço. Ou seja, a rede perdeu um serviço de psiquiatria”, diz Gatti. 

Em nota, a SPDM afirma que “a informação não procede”. Segundo a organização social, com a transferência, "foi agregado mais um serviço ao Caism, além das atividades ali desenvolvidas anteriormente, com perspectiva de ampliação dos atendimentos realizados por tais instituições”.

Fachada do prédio do governo do Estado de São Paulo cedido à SPDM - Wanderley Preite Sobrinho/UOL - Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Fachada do prédio do governo do Estado de São Paulo cedido à SPDM
Imagem: Wanderley Preite Sobrinho/UOL
Outro episódio sob suspeita nessa transição é a demissão de 101 profissionais. “Segundo as denúncias que recebemos, a Santa Casa induziu os médicos a assinarem ‘acordo’ para receber menos pelas demissões. Este é um exemplo de perda de direitos provocada pela reforma trabalhista”, afirma Gatti.

Em 28 de fevereiro, a equipe de Recursos Humanos da Santa Casa foi ao Caism com propostas para rescisão do contrato de trabalho com indenizações menores do que o previsto na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). A sugestão era pagar metade do aviso prévio e da multa de 40% sobre o saldo do FGTS; pagamento de apenas 80% do FGTS e orientação para rejeitar o Seguro-Desemprego. As verbas rescisórias também seriam pagas parceladamente. Na ocasião, 78 funcionários assinaram o acordo.

O sindicato fez uma denúncia ao Ministério Público do Trabalho, que abriu uma Ação Civil Pública para apurar as demissões. Para a procuradora regional do Trabalho Luiza Yukiko Kinoshita Amaral, “a fraude está plenamente comprovada pelas denúncias recebidas”. “A ré, além de dispensar os empregados de forma arbitrária, não pagou as verbas rescisórias integralmente, deixando de observar os princípios básicos que devem nortear as relações de trabalho, em especial o da boa-fé objetiva”, escreveu na ação.

Em nota, a SPDM diz “que este é um período sujeito a intercorrências, devido às mudanças estruturais [...] que fazem parte de todo processo de transição”. “A equipe busca solucionar tais situações com a maior agilidade possível”, diz o comunicado.