Como a epidemia de opioides nos EUA deixa a África sofrendo de dor
A dor é apenas o problema mais recente na vida de John Bizimungu.
Nascido em Ruanda, ele vive em Uganda como refugiado desde que sua família foi massacrada, no genocídio de 1994. O sapateiro Bizimungu costumava andar pelas ruas perguntando às pessoas se poderia consertar seus sapatos.
Agora, aos 75 e usando muletas, fica em casa, esperando que os clientes apareçam, mas pelo menos a dor do câncer que deformou seu pé direito está sob controle.
"Oh! Se sou grato à morfina? Extremamente. Sem ela, eu estaria morto", disse ele, acenando com as mãos e se balançando na cadeira.
A morfina de Bizimungu é um opioide, intimamente relacionado aos analgésicos que agora matam 60 mil norte-americanos por ano, situação que o presidente norte-americano Donald Trump recentemente declarou ser uma "emergência de saúde pública".
A necessidade desesperada do sapateiro exemplifica um problema que preocupa profundamente os especialistas em cuidados paliativos: como ajudar 25 milhões de pessoas que morrem em agonia todos os anos em países pobres e de renda média, e como fazê-lo sem o risco de uma epidemia ao estilo norte-americano, sem provocar a oposição dos legisladores e filantropos ocidentais, para quem "opioide" se tornou uma palavra proibida.
A delegação dos Estados Unidos no Conselho Internacional de Controle de Narcóticos, uma agência das Nações Unidas, usa uma retórica assustadora de guerra às drogas, segundo Meg O'Brien, fundadora do Treat the Pain (trate a dor), grupo de defesa dedicado a levar cuidados paliativos aos países pobres.
Isso tem um efeito negativo nos países em desenvolvimento, o que é ridículo, pois os EUA também têm uma epidemia de obesidade, mas ninguém está propondo o fim da ajuda alimentar ao Sudão do Sul."
Uganda elaborou uma solução inovadora. No país africano, a morfina líquida é produzida por uma instituição de caridade privada supervisionada pelo governo. E, com a falta de médicos, a lei permite que até mesmo enfermeiros prescrevam morfina, após passarem por um treinamento especializado.
Mais de 10% dos ugandenses que necessitam da substância conseguem obtê-la. Mesmo que pareça insuficiente, isso faz de Uganda um destaque não só na África, mas no mundo.
Quase não há abuso de opioides aqui; as bebidas alcoólicas, a maconha e o khat (planta local que gera dependência) são problemas muito maiores.
Sem alívio à vista
Um estudo recente, feito por uma comissão do periódico "The Lancet" sobre o acesso global a cuidados paliativos e ao alívio da dor, descreveu um abismo amplo e profundo no acesso a analgésicos em países ricos e pobres.
Os Estados Unidos, segundo o relatório, produzem ou importam 31 vezes mais analgésicos narcóticos do que precisa, legal ou ilegalmente, como morfina, hidrocodeína, heroína, metadona, fentanil e assim por diante.
O Haiti, por outro lado, conta com menos de 1% do que precisa. E a Nigéria, em termos per capita, consegue apenas um quarto do que o Haiti obtém: 0,2% de sua necessidade.
Mesmo em grandes países com indústrias farmacêuticas nacionais, os cidadãos ainda têm pouco acesso a métodos de alívio da dor, disse o relatório. Índia e Indonésia, segundo e quarto países mais populosos do planeta, cada um obtém apenas 4% de suas necessidades. A Rússia está em 8%; a China, com 16%, está pouco à frente de Uganda.
"Cada país tem suas próprias barreiras", disse o dr. James F. Cleary, diretor de estudos de dor e de política da Faculdade de Medicina da Universidade do Wisconsin e membro da comissão que elaborou o estudo da "Lancet".
Em alguns países, os médicos não possuem treinamento de cuidados paliativos; em outros, os legisladores e a polícia se opõem à importação de narcóticos ou deliberadamente dificultam a prescrição por causa do que o relatório chama de "opiofobia".
As empresas farmacêuticas não têm interesse em vender a morfina genérica que os países pobres necessitam porque é barata e gera pouco lucro.
A morfina suficiente para controlar o sofrimento do fim da vida no mundo todo custaria apenas US$ 145 milhões por ano, descobriu o relatório da "Lancet".
Além disso, para incluir todas as crianças com menos de 15 que precisam do tratamento – para queimaduras graves, cirurgias, acidentes de carro, dores resultantes de doença falciforme e tumores cancerosos que comprimem terminações nervosas e assim por diante – apenas US$ 1 milhão seria necessário.
"Isso é uma ninharia em comparação com os US$ 100 bilhões gastos anualmente por vários governos no mundo para impor a proibição total do uso de drogas", escreveram os autores.
Algumas empresas farmacêuticas tentam vender a oxicodona programada patenteada e outros opioides altamente rentáveis em países de renda média, mas os governos costumam ser cautelosos por causa da epidemia que varre os Estados Unidos.
"Basta ver uma capa da revista 'Time', e muitos países dizem: 'Não é isso que queremos'", disse Cleary.
Para Felicia Marie Knaul, economista da saúde da Universidade de Miami e principal autora do relatório da "Lancet", a demanda pelo alívio da dor precisa de um defensor em cada país.
Ninguém quer falar sobre dor e morte. E o que diferencia isso do câncer é que as pessoas que mais necessitam da substância estão de fato prestes a morrer, por isso não conseguem se defender."
O sucesso em Uganda
Uganda tem uma política nacional de alívio da dor desde meados dos anos 1990 que é bem-sucedida por vários motivos:
– Havia defensores locais: a dra. Anne Merriman, ex-freira missionária que, em 1993, fundou o Hospital África Uganda para cuidar de doentes em fase terminal; Rose Kiwanuka, a primeira enfermeira treinada em cuidados paliativos no país, que agora dirige a Associação de Cuidados Paliativos de Uganda; o dr. Jack Jagwe, autoridade do Ministério da Saúde que reconheceu a necessidade.
(Como grande parte da África, Uganda foi tomada por uma epidemia de Aids em 1993 que parecia interminável porque as drogas antirretrovirais custavam então US$ 12 mil por ano por paciente. Muitas vítimas morreram gritando de dor causada pela meningite criptocócica, pelo sarcoma de Kaposi ou por outras infecções oportunistas.)
– O presidente de Uganda, Yoweri Museveni, que está no poder desde 1986, aceitou a importação de opioides depois que Jagwe os endossou. A resposta de Museveni à Aids também foi progressista. Quando outros líderes ainda negavam que seus países viviam essa situação, ele iniciou a "Prevenção ABC", ou seja, com abstenção, fidelidade e preservativos.
– E talvez o mais importante: o único opioide permitido fora dos hospitais são garrafas de morfina diluída em água. A droga é distribuída gratuitamente, à custa do governo, evitando incentivar as empresas farmacêuticas a disputar participação de mercado.
A morfina engarrafada vem em duas dosagens: 0,5 gramas ou 5 gramas por 500 mililitros. Mesmo a concentração mais fraca diminui a dor de Bizimungu, que sucumbe lentamente a uma forma de sarcoma de Kaposi que não é causada pelo HIV.
As garrafas são uma maneira simples e engenhosa de evitar o vício. O uso descontrolado exigiria que a pessoa bebesse litros da solução amarga e um tanto nauseante. Tentar destilar a morfina exigiria a fervura de incontáveis litros.
"Você pode beber uma garrafa inteira e só vai sentir um pouco de náusea, prisão de ventre e sonolência", disse Rinty Kintu, coordenador do Treat the Pain em Uganda.
Na Fundação de Caridade do Câncer, hospital para adultos com câncer em Campala, a morfina líquida alivia o sofrimento dos últimos dias de John Kanakura, 55, cujo câncer de cólon se espalhou para o fígado.
"Desde que o câncer começou, cerca de um ano e meio atrás, nunca tive alívio. Era como se alguém estivesse me cortando com uma faca", disse Hanafusa, que criou três filhos em sua pequena fazenda depois que a esposa foi embora.
"A garrafa diária lhe dá cerca de oito horas de alívio da dor, o que faz com que ele durma", conta o filho, Philip Mutabazi, 18.
A morfina não é prescrita tão livremente em Uganda quanto os opioides foram nos Estados Unidos.
"O problema do vício nos EUA não começou nas enfermarias de câncer; saiu da Ortopedia e da Odontologia. Os países em desenvolvimento não receitam opioides para tornozelos torcidos ou extração de dente do siso", disse O'Brien.
A oposição no início
Em uma entrevista por telefone da Escócia, Merriman, às vezes chamada de a "mãe dos cuidados paliativos" de Uganda, descreveu os primórdios do processo de misturar o pó de morfina importado da Europa em baldes de água fervida no fogão da cozinha.
Depois de esfriar, o produto era distribuído em garrafas vazias de água mineral coletadas em hotéis.
Ela também mencionou a oposição inicial dos médicos mais velhos, que viam o uso da morfina em pacientes terminais como eutanásia.
"Você precisa de alguém que grite e esperneie para que a coisa vá em frente", disse Merriman.
Inicialmente, houve a ajuda de doadores como o Fundo Memorial Diana, Princesa de Gales e o Instituto de George Soros, o Open Society, e os governos dos EUA e do Reino Unido forneceram dinheiro para ajudar pacientes terminais com Aids, mas esses fundos foram desaparecendo lentamente, com a maior disponibilidade de drogas contra o mal.
Alguns hospitais começaram a misturar suas próprias soluções de morfina. Então, houve uma escassez em 2010, depois de uma disputa de preço entre o Ministério da Saúde e atacadistas privados.
Em 2011, o armazém nacional de drogas se tornou o único importador legal de morfina em pó, e o Hospital África Uganda foi escolhido para preparar a solução para todo o país.
O Treat the Pain entrou em cena. Sua fundadora, O'Brien, ex-epidemiologista da Iniciativa Clinton de Acesso à Saúde, disse ter criado a organização sem fins lucrativos após a leitura, em 2007, de uma série de artigos do New York Times que descrevia como milhões de pessoas morriam sem alívio da dor, e depois de ouvir um médico falando sobre os gritos de dor de seus pacientes.
A organização, que agora faz parte da Sociedade Americana do Câncer, pagou cerca de US$ 100 mil por máquinas para esterilizar a água, fazer garrafas de plástico, enchê-las e colar os rótulos.
Porém, é preciso mais mecanização. Em uma visita recente à operação, um farmacêutico misturava pó e água no que parecia ser uma panela de mais de 70 litros, e estudantes de medicina colocavam as tampas nas garrafas.
Essa linha de produção consegue fazer 5.400 garrafas por dia e, segundo o farmacêutico chefe Christopher Ntege, tudo é automatizado exceto a colocação das tampas. "É uma tarefa pequena se comparada ao que enfrentávamos antes."
Apesar das imperfeições, o modelo de Uganda inspira outros.
"Muitos países vêm aqui para aprender como devem mudar suas leis e políticas médicas. Temos uma iniciativa de baixo custo que pode ser usada em todos os lugares", disse o dr. Emmanuel B.K. Luyirika, diretor-executivo da Associação Africana de Cuidados Paliativos, um grupo de defesa.
Os ministérios da saúde de cerca de 20 países agora usam a morfina barata, calculou Merriman, mas, geralmente, ela só está disponível em hospitais da capital.
Esforços como esses na África, Ásia e América Latina abriram caminho para a mudança nos últimos 12 anos, disse a dra. Kathleen M. Foley, especialista em cuidados paliativos do Centro Memorial de Câncer Sloan Kettering.
"Mas não é mais rápido por causa da pobreza, da falta de infraestrutura e do fato de que os cuidados paliativos são um novo campo e não há especialistas trabalhando para o governo."
E acrescentou: "Estou cada vez mais preocupada com o fato de que poderemos perder a batalha devido a esse pânico. Apenas as mortes por overdose recebem atenção".
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.