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Às portas do Ártico, um mundo em desordem

11/10/2022 08h14

David Daley, um criador de cães de trenó, vive às portas do Ártico canadense, em um mundo que cada vez tem dificuldades em reconhecer. "A Mãe Terra vai nos castigar por toda a devastação que estamos causando ao nosso planeta", afirma.

Churchill, a cidade natal de Daley, é um assentamento isolado na costa da Baía de Hudson, onde o aquecimento global é três vezes mais rápido do que em outras partes do mundo e onde o gelo desaparece gradativamente.

Assim como seus antepassados do povo métis, um dos três grupos indígenas do Canadá, este avô de 59 anos vive em comunhão com a natureza, cercado por seus 46 cães, bem onde termina a tundra e começa a floresta boreal.

Mas a cada ano, teme a chegada cada vez mais tardia da neve. "Meus cães estão esperando o inverno, como todos nós", diz. "Isto é comum uma cultura que está morrendo".

Tanto no verão, quanto no inverno, Daley percorre esta região conhecida pela aurora boreal, onde abundam pedras, musgo e bosques de pinheiros negros. Sempre caçou ali e viu de perto flora e fauna mudarem.

"Quando era criança, caçava e pescava aqui e os alces mal apareciam, agora estão por todas as partes", assegura este homem de cabelos compridos, que usa seu conhecimento indígena como guia turístico. "O mesmo acontece com a perdiz-de-cauda-afiada e com as martas", acrescenta.

Suas observações fazem eco do que dizem os estudos científicos: o aquecimento global está pondo em risco as espécies do Ártico, especialmente ao abrir as portas a outros animais do sul.

Para Daley, os humanos "não têm outra opção": devem "se adaptar" como os animais são obrigados a fazer.

- Ursos polares na cidade -

A adaptação implica, em particular, em reinventar a convivência com o animal emblemático da região: o urso polar.

Durante a Guerra Fria, a localidade, que abrigava uma instalação militar americano-canadense, agora deserta, devia estar pronta para repelir um eventual ataque soviético a partir do Polo Norte. Hoje, seus moradores temem, sobretudo, o grande predador do Ártico.

O aquecimento global está reduzindo o tempo de congelamento da Baía de Hudson e obrigando os ursos polares da região a ficar em terra mais tempo do que antes durante o verão. Frequentemente famintos e fracos, os ursos vagam cada vez mais perto dos centros urbanos.

Aventurar-se em Churchill exige certas precauções: um rifle, repelente de ursos e a necessidade de caminhar em grupo após o anoitecer ou quando há pouca visibilidade.

Ali todos têm uma história para contar sobre os ursos polares.

"Não lembro, quando menina, de me sentir em risco durante o verão. Hoje é diferente, meus filhos não podem brincar nas pedras, ao longo da costa, como eu fazia", diz a filha de Daley, Danielle, de 33 anos.

A jovem relata o susto que tomou ao ver um urso correndo em frente à sua casa, em julho, seguido a poucos metros pela patrulha dos Oficiais de Conservação da Vida Selvagem de Manitoba, com sirenes sonoras.

É ainda mais complicado no outono, quando os ursos estão mortos de fome depois de meses de jejum em terra, sem uma foca à vista.

"Estamos no começo da época com mais trabalho do ano, quando os ursos passam por Churchill em seu caminho para o norte", diz Ian Van Nest, agente de proteção da vida selvagem.

Para a noite de Halloween (Dia das Bruxas), em 31 de outubro, será instalado um dispositivo especial, afirma. Esse dia, usando coletes à prova de balas, rifles pendurados nos ombros e walkie-talkies na cintura, as patrulhas vão se multiplicar.

Até mesmo helicópteros vão decolar para detectar ursos vagando e permitir que as crianças saiam atrás de 'travessuras ou gostosuras'. "Podemos usar artefatos explosivos, isso produz um forte estouro e um clarão que afugenta o urso", explica Van Nest.

A cidade tem novos radares capazes de detectar ursos a dois quilômetros das casas mais afastadas, inclusive de noite e com neblina. No entorno de Churchill, a população de ursos polares, embora esteja em declínio desde a década de 1980, é estimada em 800 indivíduos: são tantos quanto os humanos na cidade.

- "Buscar aspectos positivos" -

Nem todo mundo vê com maus olhos estas mudanças relacionadas ao clima.

"É preciso buscar os aspectos positivos em tudo isto", afirma o prefeito de Churchill, Michael Spence, membro do povo indígena Cree.

O aumento do turismo e o desenvolvimento do porto, graças à elevação das temperaturas, "também são oportunidades de crescimento econômico para a população local", avalia Spence, que cresceu aqui.

A presença maior de ursos polares agora atrai alguns poucos milhares de turistas a cada ano para este recanto remoto da província de Manitoba, inacessível de carro.

E o derretimento do gelo marinho permite que os barcos acessem o porto da cidade, o único de águas profundas no Ártico canadense, durante mais meses a cada ano do que antes.

O prefeito sonha em transformar Churchill em um porto para o cultivo de grãos em áreas cada vez mais ao norte e, eventualmente minerais, que poderiam ser extraídos no extremo norte canadense, em particular graças ao degelo.

Grande parte do potencial mineiro do Canadá está nos territórios do extremo norte, onde há depósitos de diamantes, ouro, tungstênio, urânio e elementos de terras raras.

Mas o degelo do solo também pode dificultar as perspectivas mineiras.

Em 2017, inundações provocadas pelo degelo danificaram as ferrovias e o transporte ferroviário foi interrompido por mais de 18 meses. Desde então, o porto ficou em grande parte inativo. Por trás dos silos gigantescos, vagões antigos enferrujam sobre o capim.

- Pobreza -

Para muitos moradores de Churchill, a pobreza coloca em segundo plano as preocupações com as mudanças climáticas.

Entre a estação limpa e o grafite gigante de ursos polares, veem-se muitas casas em ruínas, consertadas às pressas. Frequentemente, são simples construções pré-fabricadas colocadas sobre blocos de cimento, que parecem inadequadas para as temperaturas rigorosas do inverno, que com frequência caem a -40 °C.

Nas ruas desta cidade, conhecida nos primeiros tempos da colonização europeia por seu comércio de peles, veículos numerosos, motos de neve, quadriciclos e vans, estão abandonados, às vezes parcialmente desmontados.

Sessenta por centro da população é indígena (inuíte, cree, dene, métis), enquanto no total, o número no Canadá seja de apenas 5% e em Manitoba, de 18%. Prevalecem o desemprego, a habitação precária e a discriminação.

Em Churchill, 64% das crianças vivem abaixo da linha da pobreza.

Em seu boletim de março, os especialistas em clima da ONU já diziam que o conhecimento da realidade destes povos deve ser levado em conta no combate às mudanças climáticas.

No mês que vem, durante a COP27, a cúpula sobre o clima da ONU no Egito, alguns ativistas vão pressionar por políticas que levem em conta práticas ancestrais indígenas, pois suas terras abrigam 80% da biodiversidade do mundo.

Daley sonha com um novo começo. "Devemos, como povos indígenas, liderar a reconciliação com nossa mãe, a Terra", diz.

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© Agence France-Presse