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Sopa de urso e venda de pele: como é a vida do caçador que resiste ao degelo do Ártico

O caçador Hjelmer Hammeken, vestindo um traje camuflado branco, mira uma foca que avistou a 300 metros de distância Imagem: Oliver Morin/AFP

17/06/2024 06h11

Em uma banquisa no Ártico, Hjelmer Hammeken avista uma foca perto de seu buraco no gelo. Vestido de branco, o caçador inuíte avança a passos lentos sobre a neve, deita-se e espera. Ao bater no chão com os pés, o animal ergue a cabeça e ele atira.

Em meio a esta paisagem lunar, Hjelmer destroça imediatamente sua presa e engole um pedaço de fígado ainda quente - é a recompensa do caçador.

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A cena é rotineira em Ittoqqortoormitt, perto do estreito de Scoresby, o maior fiorde na costa leste da Groenlândia, nos confins do Ártico.

Nesta aldeia de casas coloridas de 350 habitantes, todos os homens caçam: ursos se forem profissionais; focas, narvais ou bois-almiscarados se forem amadores. Trata-se de um estilo de vida ancestral, passado de geração a geração.

Mas, há cerca de vinte anos, as mudanças climáticas e as cotas de caça ameaçam uma tradição que garante a sobrevivência das famílias inuítes.

Para retratar sua vida cotidiana, uma cinegrafista e um fotógrafo da AFP conviveram durante vários dias no fim de abril com caçadores profissionais de Ittoqqortoormitt.

O caçador Hjelmer Hammeken, vestindo um traje de camuflagem branco, e Martin Madsen comem o fígado de uma foca que acabaram de matar Imagem: Olivier Mori/ AFP

"O que vai acontecer nos próximos 50 anos?"

Considerado uma lenda viva entre os seus, Hjelmer Hammeken é testemunha ocular das mudanças climáticas.

Quando chega com seu trenó puxado por cães na banquisa ao lado do mar, este caçador veterano de 66 anos impõe respeito. Ele é o maior caçador de ursos-polares da Groenlândia: 319 abatidos em cinquenta anos, sete este ano.

Sua fama remonta aos anos 1980. Ele saía apenas com seus cães rumo aos glaciares do fiorde, equipado apenas com uma tenda e poucas provisões. Depois de várias semanas de expedição, podia voltar com até três ursos.

Era a época dourada para os caçadores profissionais, que vendiam as peles dos ursos para o exterior.

Em 2005 foram estabelecidas cotas de caça para frear a queda da população de ursos-polares. Este ano, limita-se a 35 exemplares, alcançada no fim de abril.

Por isso, neste dia, Hjelmer optou por caçar uma foca, que não é limitada por cotas.

Desde o começo do século, ele viu as mudanças climáticas afetarem lenta, mas forma irreversível, o Ártico, que se aquece quatro vezes mais rápido que a média mundial.

"Antes, podíamos caçar durante todo o ano", conta. "No inverno, o gelo era mais duro (...) e o fiorde não derretia nunca", acrescenta. Hoje, o gelo é menos espesso, a banquisa, menos extensa, e o estreito fica completamente aberto de meados de julho até o começo de setembro.

Enquanto observa o horizonte ao lado do jovem caçador Martin Madsen, o vento vai acordando, assim como o mar. O gelo, mais fino na borda da banquisa, fica instável. O risco é se desprender. É hora de partir.

"Em agosto, toda a banquisa estará derretida, restará apenas o mar, um mar agitado", o que complicará a caça de focas ou narvais (também submetidos a cotas), prossegue Hjelmer.

Quanto aos ursos polares, ele se pergunta como vão sobreviver, pois caçam na banquisa. Durante o verão, presos em terra firme e famintos, se aproximam do povoado. É provável que no futuro migrem mais para o norte, afirmam os cientistas.

"O que vai acontecer nos próximos 50 anos?", pergunta-se Hjelmer. "A caça é fundamental para a nossa sobrevivência, precisamos dela para sobreviver, para comer, para levar dinheiro para casa. É importante para o povoado, para nosso futuro", afirma.

Sopa de urso-polar

Como faz todas as manhãs, Martin Madsen, de 28 anos, observa o horizonte de sua janela. Em seguida, consulta as previsões meteorológicas no celular. Hoje faz muito sol e não há neblina. Condições ideais para caçar. Ele pega seus rifles e se dirige para a borda da banquisa.

Outros caçadores já estão em posição e esquadrinham a paisagem. A dois quilômetros deles, três ursos-polares estão à espreita.

Para atrair as focas, os inuítes raspam o gelo com seu "tooq", um longo pedaço de pau com o qual imitam o som destes animais pinípedes quando cavam um buraco no gelo para respirar.

Quando um caçador encontra uma, grita "Aanavaa!" (pronuncia-se "Anaua", "Aqui tem uma foca!") e assobia para atrair o animal. Se ele errar, outros podem atirar.

Naquele dia, Martin erra o alvo. Mas no seguinte, ele mata uma foca-barbuda dentro d'água a mais de 200 metros de distância com seu rifle calibre 222 mm. Ele está orgulhoso e se apressa em recuperar a presa antes que ela mergulhe. "Os cães vão poder comer", comemora.

Assim como Hjelmer, Martin é um dos dez caçadores profissionais de Ittoqqortoormitt. Eles são os únicos autorizados a abater ursos-polares, um título atribuído se 100% de sua renda vier da caça.

"Caço desde criança. Cresci entre caçadores, meu pai, meu avô", conta. As condições, no entanto, mudaram. Não tanto na forma de fazer - com o aparecimento de celulares, satélites ou motos para a neve -, mas nas condições de viver disso.

"Hoje não há muito o que caçar", diz Martin. "As cotas impostas aos caçadores não funcionam".

As peles de urso, que só podem ser comercializadas na Groenlândia desde o embargo imposto em 2008 pela União Europeia, chegam a custar 2.000 euros (cerca de R$ 11.500, na cotação atual); as de foca, a 40 euros (R$ 230), menos da metade do que valia antes de uma proibição imposta em 2009, que acabou sendo suspensa para os inuítes.

Martin volta para casa. Sua esposa, Charlotte Pike, cozinha sopa de urso-polar com tomates, cenouras, cebola e curry vermelho.

"Como ganhamos pouco com a caça (...), a vida é muito difícil", diz a mulher de 40 anos, que busca uma alternativa econômica recebendo turistas em casa.

"Isso para não falar" - continua - "de tudo o que ouvimos no mundo sobre matar animais, não comer carne (...) É duro para nós".

Martin, que nunca frequentou a escola, espera que seu filho, Noah, de 8 anos, tenha um futuro diferente, longe da caça.

De geração em geração

Peter, o pai de Nukappiaaluk Hammeken, de 11 anos, não é caçador profissional.

Ele gerencia uma loja de comestíveis neste povoado no fim do mundo, a 800 km do assentamento humano mais próximo na Groenlândia, abastecida por barco de carga uma ou duas vezes por ano.

No entanto, Nukappiaaluk Hammeken sonha em fazer parte desta elite que caça presas, embora seu número tenha diminuído com o passar dos anos.

Na juventude de Hjelmer - seu tio-avô - "quase todos os homens do povoado" eram caçadores profissionais.

Nukappiaaluk terá que esperar até os 12 anos para poder caçar pela primeira vez. Para se tornar um profissional, deverá passar por um longo aprendizado com os anciãos.

O requisito é ter cães de trenó, obrigatórios para a caça profissional.

Hoje, o menino tímido prepara a mão as coleiras de seus nove cães. "Ele quer ser caçador profissional, assim eu lhe explico como fazê-lo", diz seu pai, de 38 anos.

Em dois meses, seus cães poderão começar a trabalhar. Nukappiaaluk terá que aprender a adestrá-los, dirigi-los pela voz para que alcancem 30 km/h e ganhar seu respeito: o menor erro pode ser fatal neste ambiente hostil.

Ele também terá que aprender a entender suas futuras presas: sua dieta, seu hábitat e seus deslocamentos que mudam por influência do clima, assim como fizeram gerações de caçadores antes dele.

"Se você não conhece seus ancestrais, não sabe quem é", resume seu irmão, Marti, de 22 anos.

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