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Incêndios ameaçam os modos de vida dos 'guardiões' do Pantanal

Às margens do rio Paraguai, uma comunidade tradicional na zona rural de Ladário, Mato Grosso do Sul, escapou por pouco dos incêndios que desde meados de junho castigam o Pantanal. Mas a sequência de queimadas ameaça os modos de vida dos "guardiões" do bioma.

A 7 km de Corumbá (MS), 28 famílias sobrevivem da exploração sustentável dos recursos naturais na Área de Proteção Ambiental (APA) Baía Negra, que guarda as cicatrizes dos incêndios que afetaram a região há duas semanas e reavivaram a lembrança do fogo que queimou mais de 50% da área há quatro anos.

"A gente estava tentando se recuperar do incêndio de 2020, que devastou nosso Pantanal. Não estávamos totalmente recuperados e agora enfrentamos isso de novo", lamenta Virgínia Paes, 53 anos, presidente da Associação de Mulheres Produtoras da APA Baía Negra.

A APA é a primeira unidade de conservação de uso sustentável do Pantanal, maior planície inundável do mundo, rica em biodiversidade, onde a preservação ambiental se associa à sobrevivência dos ribeirinhos.

No Pantanal, ao sul da Amazônia, as queimadas, que as autoridades atribuem à ação humana, bateram um recorde com 3.538 focos entre janeiro e junho deste ano.

No mês passado, um enorme incêndio devastou a ilha do Bracinho, em frente à Baía Negra.

"A única coisa que separava a gente era o rio. O fogo estava do outro lado, devastando tudo", acrescenta Virgínia, brigadista voluntária treinada pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo)/Ibama para atuar na comunidade, que tem 11 brigadistas.

Felizmente, este ano as chamas não cruzaram o rio. Mas a fumaça afetou a saúde e a rotina da comunidade.

"A gente não conseguia respirar direito", relata Virgínia.

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Criada em 2010, a APA Baía Negra se estende por aproximadamente 5.420 hectares e abrange as vizinhas baías Negra e do Arrozal, onde a população vive de pesca, artesanato, extrativismo sustentável e turismo de base comunitária.

A área é hábitat de várias espécies: de dezenas de aves como o maracanã-de-colar (Primolius auricollis) a outras como o jacaré-do-pantanal (Caiman yacare), a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) e a onça-pintada (Panthera onca).

- "Guardiões" ameaçados -

Segundo a ONG Ecoa, que atua há mais de 30 anos no Pantanal, e a secretaria municipal de assistência social de Corumbá, em 2020 viviam 651 famílias ribeirinhas em Corumbá e Ladário, na planície pantaneira.

"Povos e comunidades tradicionais no Pantanal são os verdadeiros guardiões dos ecossistemas que manejam. Eles são os mais impactados (pelos incêndios). Preocupa-me que em poucos anos possamos ter deslocados pelo clima no bioma", alerta André Luiz Siqueira, diretor-geral de Programas e Projetos da Ecoa.

Com as queimadas, o próprio sustento dos ribeirinhos ficou comprometido. Às margens da ilha do Bracinho, três pescadores tentam a sorte em um dos poucos barcos vistos na região. A pesca, contam, ficou escassa pelos incêndios que intoxicam os peixes e atrapalham a atividade. Além disso, o nível dos rios baixou pela estiagem que castiga a região desde outubro.

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"Está mais difícil pescar. Sumiu tudo, o peixe, a isca", protesta Marcelo Henrique, 33 anos. "Eu vivia da pesca antigamente, mas agora sou forneiro" (operador de forno industrial) na cidade de Ladário. Ele mudou de atividade há um ano porque "as baías secaram... Antigamente havia 30, 40 barcos rodando por aqui. Agora são poucos".

- Toque de recolher -

Em um casebre às margens da rodovia MS 428, dentro da APA, Renato Andrade, 52 anos, lembra do tempo em que peixe e caça, dos quais depende para sobreviver, eram fartos. Agora, a escassez afeta pessoas e animais.

"Depois daquela queimada grande (de 2020), animais perigosos vieram para cá. Por exemplo: a gente convive com a onça. Antigamente não se ouvia falar de ataque de onça aqui perto. Agora, escuto esturros em volta da casa. Não posso criar cachorro. Já perdemos a conta de quantos a onça comeu", conta.

Temendo ataques, os ribeirinhos mudaram sua rotina.

"À noite, você tem que ficar dentro de casa, não pode sair. Deu 18h30, ninguém quer ficar do lado de fora, com medo. Hoje está mais perigoso morar na região porque as presas naturais da onça (como a capivara) estão escassas", explica.

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Por isso, ele deixou de pescar à noite sozinho, como costumava fazer. "Não posso porque vou virar a janta da onça. Não é bom facilitar".

mvv/aa/tmo

© Agence France-Presse

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Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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