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"Parece que a gente está numa fila esperando nossa vez", diz cabo carioca

Flávia Louzada, 36, ela não esconde o medo de sair para trabalhar todo dia - Daniel Milazzo/UOL
Flávia Louzada, 36, ela não esconde o medo de sair para trabalhar todo dia Imagem: Daniel Milazzo/UOL

Constança Rezende, Roberta Pennafort e Thaise Constâncio

No Rio de Janeiro

27/08/2017 08h01

Morreu ontem de manhã em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, o sargento Fábio José Cavalcante e Sá. Foi atingido na cabeça em frente à loja dos pais. É o 100.º policial militar morto no Rio neste ano - três por semana ou um a cada 57 horas. Em cenário de escalada da violência, a categoria reclama da falta de apoio do Estado - desde a má condição dos equipamentos até o escasso suporte para agentes feridos.

Segundo um amigo da família, os bandidos dispararam mais de 30 vezes contra a vítima - o que faz ele questionar a hipótese de tentativa de assalto. O pai do PM de 39 anos - mais de 15 de corporação - estava presente no momento do crime e tentou salvá-lo, pedindo para que não atirassem. Em choque, o pai teve de ser internado. Morador de Magé, também na Baixada, Cavalcante e Sá deixa mulher e um filho de sete anos.

"Parece que a gente está numa fila esperando nossa vez", diz a cabo Flávia Louzada, 36. Conhecida por ser a única PM na ocupação de 2010 do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, ela não esconde o medo de sair para trabalhar todo dia. Há 10 anos na corporação, ninguém em sua casa dorme até que chegue. "A gente sai de casa como se fosse a ultima vez." Sua relação próxima com a violência começou cedo, aos 11 anos, quando sua mãe, professora, foi morta por um aluno.

Flávia criou, há seis anos, a ONG A Vida do Policial é Sagrada como Toda Vida É, que auxilia famílias de PMs mortos e agentes feridos em serviço. Dos cem neste ano, a maioria não estava no trabalho - 59 de folga e outros 20 eram reformados. Em todo 2016, foram 146.

"Damos assistência a essas pessoas que, por causa da burocracia, ficam abandonadas à própria sorte", diz. A ajuda envolve doação de insumos hospitalares, próteses e até ajuda em funerais. "Este ano mesmo, um policial teve a perna amputada no Alemão, em serviço na UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). Jogaram granada nele, e o Estado não teve nem como pagar a prótese. Nós pagamos com doação", afirma Flávia.

"Costumam dizer que a polícia é o braço armado do Estado. Somos o braço amputado do Estado, porque ele nos virou as costas. Antes mesmo da crise não tínhamos a assistência que merecíamos", desabafa.

Para Flávia, a PM "está sucateada", sem viaturas e armamentos em boas condições. "Para ser ter ideia da contradição, a cabine da PM em Copacabana, na sem zona sul, é blindada e as de dentro das UPPs não são, não têm janela nem banheiro."

Na semana passada, ela foi ao enterro de uma colega, morta em assalto. "Pensei: será que amanhã sou eu neste caixão?

Outro motivo de queixa é o baixo salário, além de atrasos. O sargento Edson (nome fictício), de 44 anos, acredita que a PM não tem "um pingo de valor" para Estado ou sociedade.

"Venho de família de quatro irmãos policiais. Perdi um deles há 20 anos, e mesmo assim fiz concurso, escondido da minha mãe. Agora, o caçula também fez concurso - mais uma vez escondido. Passou, mas não foi chamado ainda por causa da crise. Tomara que não entre. Minha mãe tem os joelhos marcados. É o dia inteiro ajoelhada fazendo novena por nós", conta.

Há 19 anos na corporação, ele atua em uma UPP e já foi baleado na perna. "Os traficantes fazem ‘tiro ao pato’ com a gente. As Forças Armadas vêm e não resolvem, porque não têm prática alguma de guerrilha urbana."

Em julho, o governo federal enviou 8,5 mil militares para o Estado. Eles têm ajudado as polícias Civil e Militar em operações, com foco em apreensão de armas e na prisão de líderes de facções de tráfico de droga.

Reações

Ontem, o governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB), lamentou o 100.º morto, em nota. "Um criminoso que porta fuzil e mata policial deve ser tratado como terrorista, e o Estado defende o endurecimento da legislação penal."

O comandante-geral da PM, coronel Wolney Dias, também se manifestou em nota. "Não somos números. Somos cidadãos e heróis". Procurada sobre as críticas dos agentes ouvidos pelo Estado, a Secretaria de Segurança Pública não respondeu.