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'Cidade de beldades' desmente boato internacional de 'campanha por homens'

Pelo Facebook, mulheres da comunidade divulgam fotos de eventos como coral e festas de Halloween - Reprodução
Pelo Facebook, mulheres da comunidade divulgam fotos de eventos como coral e festas de Halloween Imagem: Reprodução

Ricardo Senra

Da BBC Brasil, em São Paulo

29/08/2014 04h27Atualizada em 29/08/2014 18h34

O pequeno distrito de Noiva do Cordeiro, a 100 km de Belo Horizonte (Minas Gerais), andou causando frisson na imprensa estrangeira --mas as reportagens não falavam sobre a criação de gado ou a produção artesanal de roupas pela cooperativa local.

Em pelo menos três jornais britânicos, sites de notícias em inglês, além de veículos turcos, tailandeses, norte-americanos, italianos e indianos, o vilarejo foi descrito como terra natal de "600 mulheres exóticas e solteiras", todas entre "20 e 25 anos", que teriam criado uma campanha para atrair homens e reverter a escassez masculina na região.

"Cidade no Brasil composta inteiramente por mulheres fez apelo por solteiros (mas só os que querem seguir regras femininas!)", diz manchete do Mail Online - Reprodução - Reprodução
"Cidade no Brasil composta inteiramente por mulheres fez apelo por solteiros (mas só os que querem seguir regras femininas!)", diz manchete do Mail Online
Imagem: Reprodução

Manchetes como "Habitat de Beldades em Busca de Homens" e "Lugar Exclusivamente Ocupado por Garotas de Extrema Beleza Quer Atrair Maridos" deixaram alguns leitores estrangeiros curiosos --a ponto de chegar ao topo da lista de mais lidas do jornal britânico "The Telegraph".

Um dos jornalistas internacionais por trás das reportagens insistiu no Twitter que seu texto foi baseado em uma entrevista feita por ele em pessoa.

Mas a BBC Brasil conversou com três moradores do povoado, e eles garantiram que as reportagens publicadas no exterior não têm fundamento.

A população de Noiva do Cordeiro, segundo eles, não é composta por "600 solteiras", mas por aproximadamente 300 pessoas, homens e mulheres, em proporção similar.

Elas não têm "entre 20 e 25 anos" --são crianças, adolescentes, mães e idosas. E principalmente: não há campanha alguma em busca de maridos.

Contexto

Quem desmente é Rosalee Fernandes, de 49 anos, moradora do local desde a infância. Ela é uma das "entrevistadas" que aparecem em jornais como os britânicos "Daily Mail" e o "Metro", e em websites como o "Huffington Post".

"Com certeza não tem campanha nenhuma. Não dei entrevista. Colocar a gente nessa situação é um absurdo."

Noiva do Cordeiro fica numa área rural na região metropolitana de Belo Horizonte. "O que acontece é que os nossos maridos trabalham em BH durante a semana. Mas ninguém aqui está desesperada, não, senhor, somos trabalhadoras", diz.

Na capital, os homens costumam trabalhar como operários em fábricas.

Um das reportagens publicadas no exterior mostra como a cooperativa local criada pelas mulheres se tornou exemplo de organização entre as moradoras e cita uma das entrevistadas, que diz que há poucos homens solteiros e que boa parte deles são parentes.

O que não significa que haja uma "campanha em busca de maridos".

"A internet aqui é do governo e caiu há uns dias. A gente está sem acesso a nada e não faz ideia do que está saindo sobre nós", disse Rosalee. Em pelo menos uma dessas reportagens foram usadas fotos que mostram as mulheres em poses e trajes provocantes. As fotos foram tiradas numa festa à fantasia e publicadas na página da associação local no Facebook.

Em 2010, reportagem mostrou rotina de Noiva do Cordeiro

Respeito

O vilarejo é composto por pessoas de origem humilde, na maioria sem ensino médio completo, que se organizam numa cooperativa --onde tudo é decidido coletivamente.

Diariamente, elas trabalham na lavoura ou na produção de peças de artesanato, como tapetes, colchas e lingeries, e produtos rurais, derivados do leite e da pecuária.

Na ausência de homens nos dias úteis, a associação local foi o caminho encontrado pelas mulheres para se ajudar mutuamente e enfrentar o preconceito dos vilarejos do entorno.

É que, no passado, moradores das cidades vizinhas chegaram a taxar as moradoras como prostitutas --pelo simples fato de estarem desacompanhadas.

Juntas, elas dizem ter conseguido complementar a renda familiar por meio do trabalho coletivo, além de se ocupar nos períodos de ausência dos maridos.

Principalmente, dizem, acham que conseguiram impor respeito.

"Por favor, vocês precisam nos ajudar a desmentir esse boato, moço", pede Rosalee. "Isso aqui é terra de gente digna."