"Entregar restos mortais a família de desaparecido foi emocionante", diz Dallari
Professor da USP, onde também é diretor do Instituto de Relações Internacionais, o ex-deputado estadual Pedro Dallari é um dos mais experientes juristas do país, além de ser ex-presidente do Tribunal Administrativo do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e atual membro do Conselho Diretor do Centro de Estudo de Justiça das Américas, órgão da OEA (Organização dos Estados Americanos).
Nos últimos dois anos e meio, Dallari coordenou os trabalhos da CNV (Comissão Nacional da Verdade) que reabriu os porões da ditadura militar brasileira, experiência que lhe garantiu momentos desafiadores e de forte emoção.
Nomeado pela presidente Dilma Rousseff para substituir o comissionário Claudio Fonteles, que renunciou ao cargo, Dallari juntou-se aos outros seis membros em setembro de 2013, quase um ano e meio após o início dos trabalhos, em maio de 2012, e acabou sendo sucessivamente eleito por eles como chefe do grupo até a conclusão dos trabalhos, nesta quarta-feira, quando Dilma recebeu em mãos o relatório final elaborado pela CNV.
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- http://noticias.uol.com.br/enquetes/2014/12/09/o-brasil-deve-punir-quem-cometeu-crimes-na-ditadura.js
Em conversa com a "BBC Brasil", Dallari relembrou bastidores do trabalho da comissão, elencando alguns dos momentos mais marcantes, e comentou aspectos importantes do aguardado relatório final da CNV, entre eles a Lei da Anistia, a Guerrilha do Araguaia, os processos contra os indicados como autores das graves violações de direitos humanos e as "heranças da ditadura" ainda presentes no país, sobretudo na área de segurança pública.
BBC Brasil - De todo o tempo em que atuou como membro da Comissão Nacional da Verdade, tendo contato com documentos importantes, vítimas de tortura, ex-presos políticos, e torturadores, o que você destacaria como mais emocionante em sua experiência pessoal?
Pedro Dallari - Eu diria que de uma maneira geral as visitas às unidades militares onde houve tortura foram momentos muito importantes, porque foram feitas na companhia de vítimas que foram identificando os locais onde tinham sido torturadas, e isso diante de militares, e tudo foi registrado em vídeo. Elas iam descrevendo para mim ou outro membro da comissão tudo o que tinha acontecido ali. Foram relatos muito impactantes, e em geral essas pessoas estavam muito emocionadas, mas sem agressividade ou ódio. A maioria estava muito realizada pela possibilidade de contar as histórias e resgatar aquilo que tinha sido tão doloroso para elas.
Ao longo de dois anos e sete meses de trabalho a comissão também ouviu depoimentos de muitos militares que atuaram entre 1964 e 1985. Algum trouxe revelações mais marcantes?
O depoimento mais impressionante para nós certamente foi o do coronel Paulo Malhães, que foi muito longo, e incluiu detalhes e descrições de como ele torturava e como desaparecia com os corpos. E a situação acabou sendo mais impactante ainda porque um mês depois do depoimento, que foi em março deste ano, ele foi assassinado [de acordo com a Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense o coronel foi morto por asfixia e a polícia trabalha com a hipótese de queima de arquivo].
O trabalho à frente da comissão lhe possibilitou uma série de encontros com familiares de mortos e desaparecidos durante o regime. Alguma história foi mais emblemática?
Talvez o mais emocionante desses encontros tenha sido o momento em que pudemos entregar os restos mortais de um desaparecido localizados pela própria comissão, o Epaminondas de Oliveira. Isso foi realmente insuperável, do ponto de vista de satisfação, de dever cumprido. Ele era do Maranhão, havia sido levado para Brasília, e o corpo foi enterrado em Brasília, mas num local diferente do que constava nos registros. A comissão conseguiu localizar, e em agosto deste ano acompanhou a família até o Maranhão, onde o corpo foi enterrado. Foi um momento de dor, mas também de alegria pela possibilidade que a família teve de enterrar o seu ente querido, algo que queria fazer há décadas.
Pode haver frustração de setores da sociedade que esperavam recomendações mais radicais da CNV quanto à Lei da Anistia?
Nós não entramos no mérito da Lei da Anistia. Não abordamos a discussão sobre revogação nem acerca de diferentes interpretações por parte do Judiciário. O que entendemos é que a Lei da Anistia não pode ser um impedimento à responsabilização das violações apontadas, mas os poderes competentes é que vão decidir.
O grande mérito do relatório não está nem nas recomendações, mas nos dados que ele apresenta. E veja, do ponto de vista da sociedade, a resposta da comissão foi a melhor possível, porque ao afirmar que o que é indispensável é a responsabilização criminal, civil e administrativa de todos os que deram causa às graves violações de direitos humanos, contornando a situação jurídica, a comissão foi de uma radicalidade extrema. A mensagem é que não podemos cair na discussão jurídica, e sabemos que o que a sociedade espera é que não haja impunidade.
Há quem pense que o mais radical seria pedir a revogação da Lei da Anistia, mas isso depende do Legislativo. Então seria uma bobagem recomendar algo que poderia nem acontecer, ou levaria anos para se concretizar. É aparentemente radical, mas é uma burrice, sobretudo levando em conta que a Justiça já vem começando a interpretar que a anistia não se aplica aos torturadores. Então para que eu vou dizer que a lei precisa ser revogada, quando há a possibilidade de o Judiciário entender que já pode começar a julgar?
Quanto aos processos judiciais e a expansão das políticas de reparação, incluindo indenizações, como o país pode avançar, a exemplo do que já aconteceu na Argentina e no Chile?
No nosso caso fizemos um caminho inverso àquele dos países vizinhos. Desde 1995 a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos já vem indenizando os familiares das vítimas, e a Comissão da Anistia já fez a mesma coisa. Tem que haver cuidado ao comparar. No Brasil, as políticas de reparação foram dadas, e o que ainda não se fez foi a responsabilização dos autores dos atos criminosos.
O relatório final da CNV nomeia 377 pessoas como autores de graves violações de direitos humanos no período entre 1964 e 1985. Sabe-se quantos estão vivos ou na ativa?
Nós temos uma ideia, porque não se tem no Brasil um banco de dados que disponibilize informações sobre óbitos. Calculamos que cerca de cem pessoas possam estar vivas. Então nós fizemos uma pesquisa extensa, e você vai ver que a maior parte dos nomes da lista contempla uma data de nascimento e falecimento, mas nem todos. Nós não temos um número exato, deve haver uma verificação caso a caso.
Sobre quais casos específicos houve maior avanço dos trabalhos da comissão?
Em específico avançou-se muito nos casos Rubens Paiva, Riocentro, da Casa da Morte de Petrópolis, do caso Stuart Angel, e fomos divulgando ao longo do ano os relatórios preliminares das pesquisas. Agora, talvez o que seja mais significativo, do ponto de vista estrutural, seja a demonstração, absolutamente inequívoca, de que as graves violações de direitos humanos foram uma política de Estado, e que não foram produto de psicopatas que agiram isoladamente ou que se trataram de "excessos", como gostavam de dizer os militares. Foram políticas de Estado operacionalizadas por cadeias de comando que iam até a Presidência da República, o que para nós é algo muito contundente e relevante.
É possível identificar "heranças da ditadura" ainda em prática no Brasil? Como as recomendações da CNV podem impactar neste cenário?
Uma das conclusões da CNV é de que exatamente porque não foram combatidas adequadamente, essas práticas de violações continuam muito presentes no aparelho de Estado brasileiro. Principalmente na área de segurança pública. Ainda tortura-se muito no Brasil, não mais por razões políticas, mas a tortura continua. E aí você vai ver que uma parte das recomendações da comissão é justamente lidar com os efeitos que ainda permanecem dessa cultura de violência que a ditadura implementou no país. Então há recomendações contra a tortura, o combate à arbitrariedade policial, e para a melhoria do sistema prisional. Também queremos que a desmilitarização da polícia ganhe peso como discussão.
Clique aqui para acessar o relatório final da Comissão Nacional da Verdade na íntegra
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