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'Tancredo fez política com o próprio corpo', diz ex-porta-voz

Jefferson Puff

Da BBC Brasil, no Rio de Janeiro

15/03/2015 15h25Atualizada em 15/03/2015 18h25

O ano era 1985 e o Brasil ansiava, finalmente, pelo início do governo do primeiro presidente civil após 20 anos de ditadura militar.

Eleito de forma indireta por um colégio eleitoral, Tancredo Neves foi o nome escolhido para conduzir o país rumo à redemocratização.

Já doente, o político mineiro adiou a procura de tratamento para as fortes dores abdominais que vinha sentindo e preferiu, entre janeiro e março de 1985, fazer um giro pela Europa em busca de apoio internacional para sua posse, sob o temor de que os generais linha-dura pudessem dificultar a transição.

O maior medo de Tancredo era de que, na sua ausência, os militares impedissem seu vice de assumir a Presidência. José Sarney, no entanto, acabou sendo empossado presidente no 15 de março de 1985, com a internação às pressas de Tancredo para uma cirurgia de emergência.

Peça-chave nos 38 dias que se seguiriam até a morte de Tancredo no dia 21 de abril do mesmo ano, o porta-voz do presidente eleito, Antonio Britto, recebeu a missão de emitir boletins médicos diários.

"Todos nós temos experiências na família da gente, de acompanhamento de um sofrimento relativo a alguma pessoa doente, mas neste caso a família tinha 140 milhões de pessoas", diz.

Trampolim para o início de uma carreira política que o levou aos cargos de ministro da Previdência Social no governo Itamar Franco e governador do Rio Grande do Sul, o episódio deixou marcas profundas na memória de Britto, que resume a experiência como "um grande sofrimento".

Veja os principais trechos da entrevista concedida à BBC Brasil por telefone:

BBC Brasil – O que foi mais marcante da experiência de trazer ao país as notícias sobre o estado de saúde de Tancredo Neves durante os de 38 dias em que o ex-presidente esteve internado em 1985?

Antonio Britto – Ali havia a soma do sofrimento com a doença e o fato de que esse ser humano era quem era, gerando uma comoção nacional.

A palavra para o período é sofrimento, por acompanhar aquela agonia e por viver muito de perto a tensão e a tristeza de um país inteiro. Todos nós temos experiências na família da gente, de acompanhamento de alguma pessoa doente, mas neste caso a família tinha 140 milhões de pessoas.

"Todos temos experiências na família de acompar a alguma pessoa doente, mas neste caso a família tinha 140 milhões de pessoas", diz Antonio Britto

Quando ele foi transferido para São Paulo, a situação tinha se agravado, e à medida que as coisas tornavam-se mais graves, ficavam também mais tensas, e geravam mais comoção. Porque ao invés de caminhar para um desfecho favorável, com a recuperação do Tancredo, caminhava para um desfecho no mínimo de muita incerteza sobre a capacidade dele de sobreviver, e de muita angústia sobre o que aconteceria com o país na eventual ausência dele. O que estava em risco era o destino do país numa transição que perderia o seu fiador.

Era uma atividade profissional. Por mais que houvesse um envolvimento emocional eu estava ali cumprindo um papel profissional, de servir ao governo, servir ao Tancredo, infelizmente servindo com informações sobre seu estado de saúde e não sobre o seu governo.

E eu sempre procurei, embora pessoalmente afetado do ponto de vista emocional, não esquecer de tentar fazer a ligação entre o que estava acontecendo e a população do país.

Inicialmente divulgou-se que Tancredo teria morrido vítima de uma diverticulite. Depois, soube-se que ele tinha um tumor benigno, um leimioma, infeccionado. Por que houve essa diferença? Foi uma decisão conjunta, política, ou da equipe médica?

Qualquer informação sobre questões médicas você vai ter que buscar, obviamente, com os médicos. Todo o processo de diagnosticar e de informar sobre saúde só poderia ter sido feito pelos médicos. E eles depois foram responsabilizados pela inexatidão da informação inicial. Havia uma definição muito clara e muito óbvia de responsabilidades. A gente informava aquilo que os médicos informavam. Imagina se eu, jornalista, começasse a elaborar diagnóstico.

Havia um temor de que os militares pudessem dificultar a posse de Sarney caso Tancredo tivesse que se ausentar ou se internar para tratamentos. Após o resultado da eleição, ele faz um giro pela Europa e mantém uma agenda intensa, apesar de já se queixar de dores abdominais. Como este temor impactou o tratamento?

Não é nenhum mistério que ele tinha problemas de saúde mesmo antes de se eleger, e que ele, preocupado com as circunstâncias políticas, seguramente adiou e sacrificou o tratamento ao qual deveria se submeter, por um raciocínio de ordem política.

Ele na verdade fez política com o próprio corpo, no sentido de que sabia da importância da presença dele para consumar a transição do regime militar para a nova república e tentou adiar ao máximo possível o tratamento da própria doença.

Como se soube depois, isso causou um gravíssimo prejuízo à saúde e à sobrevivência dele. O raciocínio político dele não podia ser combinado com a saúde e aí se criou essa situação absolutamente surpreendente da internação na noite que antecedia a posse.

Por que Tancredo ficou internado 12 dias no Hospital de Base do Distrito Federal se o local estava supostamente com a UTI em reformas e não estaria apto a oferecer o melhor tratamento num caso como o dele?

Ele havia acabado de passar por uma cirurgia de emergência e não podia ser transferido. E não havia a convicção de que o quadro evoluiria para uma situação tão dramática. Então não foi, primeiro, porque não podia, e segundo, porque no juízo inicial dos médicos não era necessário. Inicialmente os médicos achavam que ele poderia ser tratado lá.

Como o senhor vê as iniciativas da família de buscar registros médicos para uma maior compreensão do que aconteceu na época?

Trinta anos depois da morte do Tancredo, não tenho interesse ou razões para ficar mexendo nesses aspectos, porque eu acho que essa é uma história já contada.

O que o senhor acha das teorias de conspiração sobre envenenamento ou tentativas externas de matá-lo?

Este é um assunto que nos últimos 30 anos já foi re-re-re-visitado. Isso aí é bom para quem está pensando em escrever uma novela. O que existe é a verdade. Uma pessoa idosa, doente, que adiou o momento de se tratar, e que enfrentou, segundo médicos, problemas na forma como foi tratado e que apesar de todo o esforço feito, não sobreviveu. Essa foi a conclusão de comissões médicas dos Conselhos de Medicina de São Paulo e de Brasília, de que houve problemas.

Tendo feito parte de um momento tão importante da nossa redemocratização, como o senhor avalia a "saúde" da democracia brasileira e a trajetória trilhada nos últimos 30 anos, sobretudo em meio à crise de corrupção atual?

O país só melhorou nos últimos 30 anos, do ponto de vista democrático. O que está acontecendo agora é consequência do fortalecimento das instituições.

Imagine pensar se há 30 anos a imprensa, o Ministério Público e os órgãos de controle e auditoria poderiam fazer o que está sendo feito agora. As dificuldades que estamos enfrentando são a maior prova da força que a democracia conquistou no Brasil.

E ao mesmo tempo essa democracia é a única saída para aquilo que está se enfrentando. Estamos numa trajetória positiva do desenvolvimento da nossa democracia, apesar de tudo.