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Guarani-kaiowá x ruralistas: o que provoca "guerra" que matou um índio no MS

Índio guarani-kaiowá mostra balas encontradas na área onde ocorreu o conflito entre índiosi e ruralistas no interior do Mato Grosso do Sul - Hélio Freitas/CampoGrandeNews - Hélio Freitas/CampoGrandeNews
Índio guarani-kaiowá mostra balas encontradas na área onde ocorreu o conflito entre índiosi e ruralistas no interior do Mato Grosso do Sul
Imagem: Hélio Freitas/CampoGrandeNews

Thiago Guimarães

Em Londres

15/06/2016 17h52

"É praticamente uma guerra. As estradas estão fechadas, carros da Polícia Militar queimados, fazendeiros rondando os índios."

O relato do indígena Eliel Benites à BBC Brasil descreve a situação na manhã desta quarta-feira (13) na fazenda Ivu, a 20 km de Caarapó (MS), cenário de conflito entre ruralistas e indígenas que deixou um índio morto e ao menos seis feridos.

Índios guarani-kaiowá entraram na fazenda no último domingo - eles reivindicam a área como terra tradicional indígena.

Dois dias depois, cerca de 70 produtores rurais e funcionários cercaram o local e atacaram o acampamento montado pelos índios, que somava cerca de cem pessoas.

Em resposta ao que apontam como cobertura da Polícia Militar ao ataque, os índios dominaram uma equipe da PM que foi até o local após o confronto, incendiaram um carro, agrediram policiais e tomaram suas armas.

Índio guarani-kaiowá mostra ferimento de bala que teria sido provocado por ruralistas no Mato Grosso do Sul - Cimi/Divulgação - Cimi/Divulgação
Índio guarani-kaiowá mostra ferimento de bala que teria sido provocado por ruralistas no Mato Grosso do Sul
Imagem: Cimi/Divulgação
Segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio) e ONGs de defesa da causa indígena, o confronto causou a morte do agente de saúde Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, 26, e ferimentos em outros cinco índios adultos e uma criança.

Ruralistas de Caarapó confirmam que produtores participaram da ação contra os índios, mas negaram o uso de armas de fogo.

"Esse indígena não morreu durante o conflito, e não houve tiros. Acreditamos que ele tenha morrido dentro da própria aldeia", disse à BBC Brasil Sílvia Ferraro, diretora do Sindicato Rural de Caarapó.
Estopim do conflito

A fazenda Ivu é uma das propriedades que formam a chamada Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I, área de 55,6 mil hectares (cerca de um terço da cidade de São Paulo) no sul de Mato Grosso do Sul.

A terra indígena é uma das que tiveram o processo de homologação acelerado pela presidente afastada Dilma Rousseff nas últimas semanas antes da votação do impeachment na Câmara - medida que setores da imprensa interpretaram a medida como gesto em busca de apoio de movimentos sociais.

Fica também localizada no entorno da aldeia Caarapó-Te'ýikue, área de 3,5 mil hectares em que os guarani-kaiowá foram realocados pelo extinto SPI (Serviço de Proteção ao Índio) no início do século 20.

Ocupantes históricos da região, os índios passaram a ser expulsos no século 19, com o avanço da colonização. Após a Constituição de 1988, que reconheceu os direitos dos índios sobre terras tradicionalmente ocupadas por eles, passaram a se mobilizar pela demarcação.

Para produtores rurais da região, a medida de Dilma acirrou os ânimos em uma área já conturbada. "É um clima de desespero e total insegurança. são terras escrituradas", disse Ferraro.

A antropóloga Tatiane Klein, do ISA (Instituto Socioambiental), acompanha o conflito na região e diz que o governo não pode ser responsabilizado por cumprir seu papel de dar sequência a processos de demarcação de terras indígenas.
"E a estratégia dos guarani-kaiowá de realizar retomadas é histórica, porque simplesmente não aguentam mais esperar", afirmou Klein.

No caso da Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I, o despacho do presidente da Funai publicado um dia após o afastamento de Dilma seria ainda parte da primeira fase do processo de homologação, formado por identificação, declaração e homologação propriamente dita.

Cenário de guerra

"O caso de Caarapó representa, em escala dramática, conflitos idênticos que ocorrem de outras formas na região", disse a antropóloga do ISA.

Em agosto do ano passado, por exemplo, um índio guarani-kaiowá de 24 anos foi morto no momento em que proprietários rurais tentavam retomar uma fazenda na cidade de Antônio João.

Em 2013, o corpo de um adolescente guarani de 15 anos foi localizado em uma estrada no entorno da aldeia Caarapó - um fazendeiro confessou o crime, segundo a Polícia Civil do Estado.

No confronto recente, a tensão se agravou porque os índios dominaram e agrediram uma equipe da Polícia Militar que chegou ao lugar após o conflito.

Segundo a Secretaria da Segurança do Estado, três PMs foram rendidos, agredidos e tiveram três pistolas calibre .40, uma escopeta calibre 12 e três coletes roubados.

A secretaria nega que a PM tenha dado cobertura à ação dos fazendeiros. Diante do agravamento da situação, o governo de Mato Grosso pediu apoio da Força Nacional de Segurança.

A Polícia Federal está na área conflagrada nesta quarta-feira e tenta negociar com os índios a devolução das armas.
"Os índios estão com uma arma que pode derrubar até helicóptero e querem que a morte no conflito seja investigada, mas a PF quer as armas, por isso está tudo muito tenso", afirmou à BBC o guarani-kaiowá Eliel Benites, que vive na aldeia Caarapó e é professor na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).

A ONG Survival International disse ver o ataque desta semana como parte de uma "escalada de tentativas de poderosos interesses do agronegócio local - fortemente ligados ao recém-estabelecido governo (federal) interino - para expulsar ilegalmente os guarani de sua terra ancestral e intimidá-los com violência genocida e racismo".

"O governo tem que fazer mais para acabar com essa onda de violência. Está levando a assassinatos", disse, em nota, o diretor da ONG, Stephen Corry.

A reportagem entrou em contato com a Funai, mas até a publicação desta reportagem ainda não havia obtido resposta a questionamentos sobre o conflito em Mato Grosso do Sul.