"Como assim Kãgfér não é brasileiro?": a luta de pais por nomes indígenas e africanos
Nas duas vezes em que foi registrar seus filhos, o engenheiro agrônomo Julio Cezar Inácio ouviu o mesmo argumento: Kasóhn (pronuncia-se Kaxói) e Kãgfér (pronuncia-se Konfer) não eram nomes brasileiros. Criou-se um problema, pois Inácio não só é brasileiro, como é indígena da tribo kaingang. Na língua de seus ancestrais, o nome do mais velho, hoje com 11 anos, significa árvore de espinhos. O do segundo, de dois anos, significa orvalho.
"Como podem dizer que não é um nome brasileiro? Eu sou índio, essa é a língua dos meus pais, e eu também sou brasileiro. Justamente porque me chamo Julio Cezar quero que meus filhos tenham apenas nomes indígenas, para valorizar essa identidade", diz o agrônomo, que vivia na terra indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul, e há oito anos mudou-se para a cidade catarinense de Xanxerê.
Inácio insistiu e registrou os meninos com o nome tribal, direito garantido aos indígenas pela resolução 3/2012, emitida pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Conselho Nacional do Ministério Público.
De acordo com essa norma, o indígena, viva em aldeia ou cidade, pode ser registrado, se desejar, com seu nome de origem. A etnia pode ser lançada como sobrenome, se a família assim quiser. Por exigência do cartório, o nome do segundo filho de Inácio perdeu o acento agudo no "e", para se adequar ao padrão do português. "Descaracterizou um pouco, mas tudo bem", conforma-se Inácio, que terá de retirar o acento no registro feito na Funai. Segundo ele, problemas assim ainda são comuns na região.
Dúvidas
Criador do Instituto Kame, organização não-governamental que trabalha com projetos de habitação para povos indígenas, Inácio é casado com uma italiana. Ela aceitou bem os nomes kaingang para as crianças, que têm também o sobrenome materno.
Inácio quer agora incluir em seu registro no cartório o nome indígena pelo qual é chamado em família, M?g No (pronuncia-se Man Do e significa um tipo de abelha). No Rio de Janeiro, o casal Cizinho Afreeka (nome adotado pelo funcionário público Moacir Carlos da Silva) e Jéssica Juliana de Paula da Silva teve de recorrer à Justiça para registrar a filha como Makeda (pronuncia-se Makêda) Foluke.
Segundo pesquisa feita pelos pais, Makeda vem do amárico, língua adotada na Etiópia, e era como se chamava a rainha de Sabá, figura mítica mencionada na Torá, no Velho Testamento e no Alcorão. Foluke, em iorubá, significa "colocada aos cuidados de Deus".
O Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais do 2º Distrito de São João de Meriti entendeu que o nome Makeda suscitava dúvidas, de acordo com o previsto na Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos). Em seu artigo 55, a lei afirma que os oficiais do registro civil não registrarão "prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores". Caso os pais não aceitem a recusa, o assunto deve ser levado ao juiz competente.
"Não houve preconceito. Entendemos que o nome poderia dar margem a uma leitura errada, má queda, por exemplo. Suscitou dúvida, seguimos o que diz a lei, consultamos o juiz", afirmou à BBC Brasil Luiz Fernando Eleutério Mestriner, titular do cartório.
O Ministério Público sugeriu que fosse agregado outro prenome. A decisão judicial indeferiu o registro de Makeda Foluke, permitindo que ele fosse usado desde que houvesse outro prenome.
Os pais não cederam. O advogado Hédio Silva Júnior, especializado na questão racial, recorreu ao Conselho de Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Argumentou que o nome resultava do desejo dos pais e, embora incomum, nada trazia de ilícito, grotesco, aberrante ou vexatório. O Conselho deu ganho de causa à família. Em 16 de junho, três meses depois de seu nascimento, Makeda Foluke foi registrada com o nome escolhido pelos pais.
Estudiosa do tema, Maria Celina Bodin de Moraes, professora de direito Civil na PUC-Rio e na Uerj, entende que não há preconceito na reação do cartório ao nome Makeda. Ao contrário, percebe preocupação em seguir a lei para evitar a repetição de casos que, no passado, transformavam as crianças em alvo de chacota.
"Considero importante que haja algum tipo de controle legal sobre isso, e foi essa a intenção do legislador: evitar casos absurdos e proteger a criança, que não pode ser entendida como propriedade dos pais", afirma.
Homenagem
A advogada Makeda Soares, de 26 anos, ainda se lembra do tempo em que, na escola, os professores estranhavam e usavam seu outro prenome, Luanna. Hoje quem manda no próprio nome é ela, que só se apresenta como Makeda. "Meu pai conta que queria homenagear a mãe África. Adoro esse nome", diz a advogada, que foi procurada pela família da recém-chegada Makeda.
A homenagem à rainha de Sabá também motivou as empresárias negras Shirley e Sheila Oliveira a batizarem como Makeda Cosméticos sua empresa de produtos para cabelos crespos. Sheila até incorporou Makeda a seu nome social.
"O que ficou flagrante nesse caso foi a associação do nome africano como algo distante da brasilidade, nesse país que tem a maioria de sua população negra. É uma flagrante negação da nossa identidade. Também destaco a associação do nome de origem africana à molecagem, às coisas ruins, como má queda, ou até de duplo sentido", argumenta Silva Júnior, que citou em seu recurso o direito dos indígenas de usarem nomes de sua etnia. Militante do movimento negro, Silva Júnior também teve dificuldades para registrar o filho como Kayodê - que, em iorubá, significa "aquele que traz honra e alegria". Mas conseguiu.
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