Britânica abandonada quando bebê descobre suas origens aos 80 anos após jornada genealógica
No verão de 1937, um bebê de nove meses foi encontrado com as mãos amarradas em um arbusto no sul da Inglaterra. Uma família de turistas acabou salvando a menina, que nunca soube quem eram seus pais biológicos. Agora, 80 anos depois, Anthea Ring conseguiu algumas respostas sobre as razões pelas quais ela foi abandonada daquele jeito, ainda tão pequena - tudo graças a um avanço na genealogia genética. Confira sua história:
Jane Dodd estava cansada. A garota de 11 anos de idade estava andando havia muito tempo com a família em mais um dia das férias de verão deles no sul da Inglaterra. Na sua frente, estavam os pais, Arthur e Margaret, e a irmã mais velha, Elizabeth. Eles viajavam todos os anos para a região, e seu pai insistia em fazer longas caminhadas durante a tarde. Ainda estava muito quente, mesmo às 18h. Não havia qualquer sombra ali, apenas gramado e arbustos. Até que a mãe dela parou, assustada.
"Tem um bebê aqui", disse.
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O pai se virou. "Impossível, não tem ninguém aqui", respondeu.
"Eu tive cinco filhos e sei bem como identificar o som de um bebê", retrucou a mãe.
A família começou a procurar no mato. Minutos depois, encontraram uma criança loira escondida em um arbusto. Ela estava usando um vestido rosa e parecia não ter nem um ano de vida. Tinha arranhões e picadas de insetos, e suas mãos estavam amarradas à frente de seu corpo.
A descoberta
Nove anos depois, Anthea Ring estava brincando com o amigo Peter na rua quando os dois começaram a discutir. A menina então ameaçou ir para casa e contar tudo para a mãe. "Ela não é sua mãe. Você é adotada", ele retrucou.
Chocada, Anthea correu para casa. Naquela noite, seus pais se sentaram com ela para conversar.
"Eles me contaram que eu fui deixada na porta de um hospital quando ainda era recém-nascida", disse Anthea.
"Eles tinham perdido uma filha, Veronica, três anos antes, e eles decidiram me adotar."
Anthea ficou animada com a notícia. Crianças adotadas geralmente eram heroínas nos livros que ela lia sobre escolas suíças.
"Eu lembro que fiquei entusiasmada para contar para os meus amigos no dia seguinte", relata.
"Não me veio à cabeça pensar em quem seriam meus pais de verdade."
Ela se sentia segura naquela casa. Seu pai adotivo, Douglas Shannan, trabalhava no Ministério da Agricultura e ela lembra de viajar com ele para inspecionar a fabricação de ovos.
"Ele era um homem muito gentil e carinhoso, eu amava sair com ele", conta.
Anthea descreve sua mãe, Margaret, como uma mulher companheira e amiga, mas que ficava nervosa quando falava da perda de sua primeira filha. Ela era inteligente, mas não conseguiu acompanhar a irmã, que foi estudar no Girton College, em Cambridge, porque a família não tinha dinheiro para bancá-la.
Margaret queria que Anthea fosse professora, mas a jovem preferiu procurar um emprego na primeira oportunidade que tivesse. Quando tinha 15 anos, conseguiu trabalhar em uma loja de departamentos na Oxford Street, em Londres. Anos depois, foi estudar para ser enfermeira e acabou conhecendo seu marido, Francis. Eles tiveram dois filhos, Jonathan e Christine.
Um dia, em 1961, ela levou fotos de Christine quando bebê para a casa de seus pais. Eles disseram que a menina era a cara de Anthea quando bebê.
"Aí meu pai disse para minha mãe: 'Você terá que mostrar para ela agora, Peggy', e ela foi lá para cima", relembra Anthea.
Margaret voltou com uma série de jornais com a foto de um bebê. Anthea perguntou quem era, e sua mãe respondeu: "É você".
Dor escondida na memória
Naquele momento, Anthea descobriu que havia sido encontrada pela família de Arthur e Margaret Dodd em um monte perto de Worthing em 26 de agosto de 1937.
Houve uma investigação sobre a tentativa de assassinato do bebê e um apelo nacional por informações, mas ninguém nunca descobriu como ela foi parar no local onde foi achada pela família de turistas. Várias pessoas se ofereceram para cuidar da criança, incluindo um diplomata belga, mas os Douglas e Margaret Shannan foram escolhidos porque tinham experiência cuidando de uma menina - sua filha Veronica, que morreu aos 7 anos, após ser atropelada.
Depois de ter recebido a notícia chocante, Anthea foi para casa e chorou. Ela disse ao marido o que havia descoberto, mas eles decidiram que não iriam contar aos filhos - e ela deixou o assunto morrer em sua memória.
Décadas se passaram, e os filhos de Anthea também tiveram filhos. Seu neto, Aaron, também era bem parecido com a avó quando bebê, e trouxe a ela de volta as lembranças sobre sua infância e sua origem.
Em 1994, ela se juntou a um grupo chamado Norcap, que ajudava adultos adotados a encontrarem mais informações sobre o passado.
Um membro do grupo sugeriu que ela escrevesse para a polícia em Worthing, cidade litorânea no sul da Inglaterra, para descobrir se havia qualquer registro de sua história ali. E mesmo 57 anos depois, um superintendente da polícia do condado de West Sussex conseguiu colocá-la em contato com um policial aposentado que havia cuidado do caso, conhecido como Mac.
"Ele disse que carregou minha foto na carteira por anos e mostrava quando achava que alguém pudesse me conhecer, mas ninguém conhecia."
Mac ficou convencido de que Anthea não era uma criança local, já que teria sido impossível manter um segredo desses em uma comunidade tão pequena. Ele achava que provavelmente ela tinha sido trazida de um trem vindo de Londres.
O encontro dos dois chegou a ser notícia em um jornal local, já que Mac havia comentado sobre o caso com a associação de policiais aposentados. A partir daí, a imprensa britânica ouviu falar da história e a repercussão foi ainda maior - Anthea estava no foco do noticiário do país de novo.
Novas peças
Semanas depois de falar com o policial, ela recebeu uma carta endereçada à "Anthea", acompanhada do nome de um programa de TV local onde havia aparecido. Era de Elizabeth Dodd, a filha mais velha da família que a encontrou nos arbustos.
"Ela disse que isso havia estragado as férias da família, pois havia pedido aos pais dela para me adotarem, mas eles não quiseram", diz.
Elizabeth contou que a família estava voltando de uma caminhada quando a mãe ouviu a menina chorando. Eles a levaram para a casa mais próxima, mas como não havia telefone, ficaram com ela até chegarem a uma fazenda enorme na vila de Sompting, vizinha a Worthing.
"Uma das filhas do fazendeiro então ligou para a polícia, e eu fui levada para um hospital."
Elizabeth já morreu, mas sua irmã mais nova, Jane, que tem 92 anos hoje, ainda se lembra daquele dia.
"Minha mãe e minha irmã fizeram tudo, e eu segurava a mão do meu pai. Fiquei muito assustada naquela noite, porque achei que a gente estava levando o bebê de alguém que iria nos procurar depois", afirma.
Jane se lembra de seus pais ligando para o hospital no dia seguinte, quando souberam que o bebê estava sendo chamado de Ann.
Anthea recebeu também uma carta de Betty, uma enfermeira que havia cuidado dela no hospital.
"Aparentemente fui colocada em um berço na sala dela. Quando foi passar seu turno para a próxima enfermeira, Betty percebeu que eu precisava de um nome, e aí escolheu Ann, que era seu nome favorito", conta Anthea.
A menina permaneceu no hospital por seis meses, enquanto a polícia investigava o caso. Suas feridas se concentravam principalmente nos pulsos, que estavam amarrados quando ela foi encontrada.
Ajuda da ciência
Apesar de Anthea ter descoberto mais sobre como foi achada pelos Dodd, estava muito longe de encontrar seus pais. Sua única pista era a suposição de Mac - de que ela teria vindo de Londres.
Não houve nenhum grande avanço até 2012, quando ela, que já tinha 75 anos na época, decidiu fazer um teste de DNA. Isso revelou que sua origem étnica era 92% irlandesa, e que ela tinha primos distantes nos Estados Unidos e na Irlanda.
Uma prima se chamava Joan, vivia na Carolina do Norte, e pediu para familiares da sua árvore genealógica fazerem o teste. Com isso, mais um pedaço da história foi revelado: a relação de Joan com Anthea vinha de seu lado materno. Eles vinham do Condado de Mayo, na Irlanda.
"Eu conheci Joan em 2013. Ela foi a primeira parente de sangue que conheci, então foi algo muito importante pra mim", diz Anthea.
Dois anos depois, ela conheceu Ann, que trabalhava na Universidade de Dublin e também tinha registros genéticos comuns. Como os genes de Ann eram diferentes dos de Joan, tudo indicava que ela fosse uma parente do lado paterno. Sua família era do Condado de Galway.
Nessa época, Anthea começou a participar de comunidades de pessoas adotadas na internet e, em abril de 2016, recebeu uma ligação da genealogista Julia Bell, que se ofereceu para ajudar.
Bell conseguiu encontrar o avô americano de Anthea usando DNA e pesquisa genealógica. Depois, passou a ajudar outras pessoas a encontrarem seus parentes no seu tempo livre. "Acredito que todo mundo merece saber de onde veio", diz a especialista.
As duas se conheceram na estação de Paddington, em Londres, onde Anthea contou a ela tudo o que sabia até o momento.
A genealogista então a ajudou a fazer mais testes de DNA em diferentes laboratórios, considerando que milhões de outras pessoas poderiam ter entrado no banco de informações de DNA desde que ela havia feito o exame pela última vez, em 2012. Isso fez com que ela encontrasse outros primos.
"Nós usamos a genealogia para construir árvores possíveis com as informações que tínhamos de ancestrais comuns e depois trouxemos as linhas para baixo. Foi bastante trabalhoso, porque as famílias poderiam ter até 12 crianças, e houve vários (primos) que casaram entre si. Isso fazia com que as pessoas parecessem mais próximas do que efetivamente eram na linha genealógica", disse.
Enfim, respostas
Depois de meses de trabalho - com a ajuda de outra genealogista, Angie Bush -, Julia Bell conseguiu decifrar toda a busca. Ela estava confiante de que o pai era da família Coyne, do Condado de Galway, e a mãe era uma O'Donnell, do Condado de Mayo.
A genealogista estava analisando as sete filhas de um homem chamado John O'Donnell quando as coisas começaram a se encaixar. "Eu estava considerando a possibilidade de a mãe ser sua filha mais nova, Ellen O'Donnell, que nasceu em 1911", conta.
Uma historiadora irlandesa amadora, Catherine Corless, revelou então a Bell que o nome oficial de Ellen era, na verdade, o nome de uma santa. Os registros batismais revelaram qual era: Helena.
Aí veio o momento "eureka".
"Antes, eu tinha organizado registros de nascimentos não legítimos na Inglaterra e na Irlanda em 1936. Até que encontrei uma mãe solteira chamada Lena O'Donnell. E aí, depois de um tempo, pensei: 'Claro! Lena pode ser Helena!'"
Corless descobriu que Lena O'Donnell havia se casado na Irlanda em 1945, sete anos depois que Anthea havia sido encontrada, e teve outros quatro filhos. Ela encontrou, então, um deles, que concordou em fazer um teste de DNA. Em abril de 2017, o teste confirmou o que Bell desconfiava: ele era meio-irmão de Anthea.
"Eu estava sentada no sol quando Julia ligou. Ela me contou sobre minha mãe biológica. Fiquei muito feliz."
A certidão de nascimento de Anthea revelou que ela nasceu em 20 de novembro de 1936, apenas cinco dias depois que seus pais escolheram para ser sua data de nascimento. Seu nome de registro era Mary Veronica.
Lena vinha se mudando de um lugar para outro em Cricklewood, no noroeste de Londres, quando Anthea nasceu no hospital St Mary Abbots, no bairro de Kensington. Ela definiu sua ocupação como operadora de máquinas em uma fábrica de telefones e foi levada para uma instituição de caridade para mães solteiras chamada "Casa para Anjos da Guarda" após sair do hospital, no dia 7 de dezembro.
No entanto, não ficou muito tempo por lá. O registro de batismo de 18 de dezembro revela que Lena se mudou com o bebê para outro lugar chamado Devon Nook, no bairro de Chiswick. Tratava-se de um lar católico pouco comum na época, que estimulava as mães solteiras a cuidarem de seus bebês e a permanecerem com eles.
Esse é o último registro que se tem de Lena O'Donnell até ela aparecer no cadastro eleitoral de Cricklewood, já em 1939. Mary Veronica O'Donnell também desapareceu.
"O que aconteceu depois que Lena deixou Devon Nook?", Bell pergunta, de maneira retórica. "Eu não acho que tenha sido ela quem abandonou Anthea. Acho que ela foi corajosa e tentou manter o bebê."
Dúvidas e certezas
Se Lena quisesse ter abandonado o bebê, a forma mais fácil de fazer isso teria sido na cidade grande. Um artigo no Daily Herald de 28 de agosto de 1937 citou 12 bebês abandonados que estavam no hospital de Londres.
"Todos eles haviam sido encontrados nas últimas dez semanas, em igrejas, locais de espera nas estações ou parque públicos, ou ainda na porta de casas particulares."
Uma busca pelas mães de 15 crianças recentemente abandonadas só teve dois casos bem-sucedidos, conforme o texto conta.
Então como Anthea acabou ali? Uma das teorias seria que Lena deixou Anthea com uma mãe adotiva enquanto saiu para trabalhar.
Segundo jornais da época, havia mulheres que se ofereciam para cuidar de crianças em suas casas cobrando um valor. Depois, vendiam a criança para um casal ou outro intermediário.
Um texto de 1932 na publicação Gloucester Citizen conta que o tráfico de bebês estava virando um dos "grandes males em Londres".
Há uma frase de um diretor da Associação Nacional para Crianças, que teria dito à época: "Americanos estão dispostos a pagar preços altos por bebês saudáveis, especialmente com cabelos cacheados. Eles chamam esses bebês de anglo-saxões puros. São mais negociados do que carros hoje em dia."
É possível que a "venda" de Anthea tenha sido planejada para acontecer perto de Worthing e que, de alguma forma, algo tenha dado errado naquele dia.
"Talvez eu nunca saiba o que realmente aconteceu comigo, mas cheguei perto disso", diz ela.
Em busca do pai
Naquele momento, seu pai ainda não havia sido identificado, mas Bell conseguiu reduzir a busca para seis irmãos. Quatro deles - Michael, Martin, Patrick e Coyne - haviam trabalhado como operários em Londres em 1936.
A filha de Martin concordou em fazer o teste, e os resultados comprovaram que ela era prima de primeiro grau de Anthea. Isso confirmou que um dos outros três deveria ser o pai dela. A neta de Michael, Anne Marie, também fez o teste, e o resultado comprovou que ele estava fora das possibilidades.
Isso fez com que restassem como opções apenas Patrick e Phillip, mas, como nenhum deles tinha descendentes diretos, a única coisa que poderia provar a paternidade seria uma amostra do DNA - difícil de encontrar anos após sua morte.
Mas Anthea também estava em contato com uma prima de primeiro grau chamada Dot, que era filha de uma das irmãs de Patrick e Phillip.
"Eu estava conversando com Dot sobre o problema quando ela disse: 'Bom, nós ainda temos as cartas que Patrick me escreveu'", conta Anthea.
As cartas, ainda guardadas nos envelopes originais com selo, haviam sido enviadas da Inglaterra para os Estados Unidos cerca de 30 anos antes.
Bell conversou com David Nicholson, da empresa Living DNA, que afirmou poder usar um teste forense que desenvolveu recentemente para captar o DNA de Patrick da saliva deixada quando ele lambeu os selos e o envelope.
No ano passado, eles enfim pegaram uma amostra de saliva de Anthea e compararam-na com pequenos fragmentos encontrados nas cartas.
O DNA contido nas três primeiras amostras estava muito degradado para poder ser aproveitado. Mas na quarta, Nicholson disse: "atingimos a quantidade de DNA mais do que suficiente".
O teste, que Nicholson afirma ter "um grau de precisão aceito pela Justiça do Reino Unido", provou que Patrick Coyne era o pai biológico de Anthea.
"Eu estava muito feliz, busquei pelo meu pai por 29 anos", diz ela.
Anthea não manteve contato com os parentes de sua mãe, mas se aproximou bem do seu lado paterno da família.
"Eles me disseram que Patrick era um homem para cima, era a alma das festas", conta.
"Nós não sabemos se Patrick sabia da minha existência. Ele nunca se casou, e uma vez disse à Dot que não quis fazê-lo porque gostava da sua independência, não queria 'se amarrar' a ninguém."
Agora com 80 anos, Anthea diz que é grata a Lena e Patrick pelo DNA que herdou deles, já que ela sempre foi muito saudável para alguém de sua idade.
Mas sua longa jornada para descobrir suas origens não mudou a maneira como ela cultiva as memórias de seus pais adotivos.
No último verão, ela fez uma festa de família com os filhos, netos e primos.
"Eu disse a eles: 'Minha mãe era Helena McDonnell, mas minha família é Margaret e Douglas Shannan."
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