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A história por trás do cancelamento da cúpula entre Trump e Kim Jong-un

Donald Trump decidiu cancelar a reunião histórica marcada inicialmente para 12 de junho  - AFP
Donald Trump decidiu cancelar a reunião histórica marcada inicialmente para 12 de junho Imagem: AFP

25/05/2018 10h39

O anúncio surpreendente do presidente Donald Trump de que estava cancelando a reunião planejada com Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte, foi feito após semanas de troca de farpas. O especialista Ankit Panda analisa o que aconteceu.

Em uma carta divulgada na manhã desta quinta-feira, 24, o presidente Trump declarou que o encontro de cúpula marcado para 12 de junho em Cingapura, entre ele e Kim Jong-un - uma reunião que seria a primeira do tipo - não aconteceria mais.

Trump justificou sua decisão com base na "enorme raiva e hostilidade declarada" mostrada em um comunicado divulgado pela Agência Central de Notícias da Coreia do Norte nesta semana.

Choe Son-hui, vice-ministro do Ministério das Relações Exteriores da Coreia do Norte, chamou o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, de "boneco político" por repetir os comentários de Trump feitos uma semana antes, ameaçando atacar Kim Jong-un caso ele não aceitasse na reunião um acordo nos termos ditados pelos Estados Unidos.

A história do cancelamento da cúpula, no entanto, começou com o conselheiro de segurança nacional de Trump, John Bolton, que havia trabalhado para aumentar a níveis estratosféricos a expectativa em relação a quais concessões os EUA deveriam esperar da Coreia do Norte.

Bolton traçou um objetivo maximalista de "desnuclearização", buscando um acordo na reunião de Cingapura em que a Coreia do Norte entregaria todas as suas armas de destruição em massa - não apenas as nucleares, mas também as químicas e biológicas.

Mas, provavelmente, Bolton nunca esteve realmente interessado num processo diplomático em que a Coreia do Norte saísse bem-sucedida.

Semanas antes de se tornar conselheiro de segurança nacional do presidente Trump, ainda como um cidadão comum, Bolton disse que objetivo do encontro de Trump com Kim Jong-un seria "reduzir a quantidade de tempo que vamos desperdiçar em negociações que nunca produzirão o resultado que queremos".

Comparação com a Líbia

Sua concepção maximalista sobre o que os Estados Unidos deveriam buscar no encontro ficou conhecida como "modelo da Líbia", em referência ao processo de desarmamento em 2003, em que o falecido líder líbio, Muammar Gaddafi, se viu privado de seu programa nuclear nascente.

Pyongyang temia há muito tempo as comparações com a Líbia e o governo norte-coreano externou isso em declarações recentes. O vice-minsitro Son-hui atacou essa comparação com o processo líbio, observando que a Coreia do Norte era uma potência nuclear de pleno direito, com mísseis balísticos de alcance intercontinental e armas termonucleares, enquanto a Líbia seria um Estado nuclear pária, que "instalou apenas alguns equipamentos e brincou com eles".

O momento em que a reunião de cúpula foi condenada ao fracasso foi quando o presidente Trump, falando de improviso, confundiu o "modelo Líbia" de desarmamento com a intervenção liderada pelos EUA em 2011 naquele país - uma medida que levou diretamente à morte de Muammar Gaddafi.

Isto é o que Kim Jong-un aprendeu com a experiência da Líbia: que concordar em se desarmar a mando dos Estados Unidos levará, mais cedo ou mais tarde, ao seu fim.

A Coreia do Norte efetivamente viu o comentário de Trump como uma ameaça. A decisão do vice-presidente norte-americano, Mike Pence, de apoiar a interpretação de Trump em uma entrevista separada fez parecer que o comentário do presidente fosse considerado uma posição política dos EUA - que Kim deveria ir a Cingapura e não fazer qualquer coisa além de se submeter a exigências dos EUA, senão enfrentaria a ação militar americana.

Falha diplomática

O governo Trump falhou por não dar crédito às declarações da Coreia do Norte sobre negociar seriamente sua posição. Mesmo antes da declaração de Son-hui - a tal que, segundo a própria carta de Trump, derrubou a cúpula - a Coreia do Norte comunicou seu descontentamento aos EUA pela retórica de John Bolton e pelos planos dos americanos e da Coreia do Sul de realizarem um exercício militar aéreo envolvendo bombardeiros com capacidade nuclear, algo que Pyongyang há muito considera ameaçador.

A decisão de Trump de cancelar a cúpula parece ter sido tomada sem considerar Seul, criando certo desgaste numa importante aliança dos EUA em um momento crucial.

A decisão de cancelar o encontro poucas horas depois de a Coreia do Norte aparentemente ter desmantelado o seu local de testes nucleares colabora para criar uma visão internacional desfavorável.

Washington sai como a parte recalcitrante, disposta a abandonar um promissor processo diplomático por nada mais que uma declaração redigida com certo rigor por um funcionário do Ministério de Relações Exteriores da Coreia do Norte.

Olhando para o futuro, há uma possibilidade real de o presidente Trump preferir culpar os norte-coreanos pela duplicidade - por puxar o tapete debaixo de seus pés e por ter acabado com suas chances de ganhar o Prêmio Nobel da Paz.

A posição de negociação da Coreia do Norte nunca mudou; não mudou depois das duas reuniões de Kim Jong-un com o presidente chinês, Xi Jinping, e foi mantida após a reunião com a Coreia do Sul em 27 de abril.

A carta do presidente Trump parece deixar caminho aberto para Kim Jong-un trabalhar com ele para restaurar a cúpula. Ela termina com um convite para o líder norte-coreano, a quem se dirigiu protocolarmente como "Vossa Excelência", para que ele "não hesite em me ligar ou me escrever".

Kim não estará ansioso para aceitar a oferta de Trump. Embora a Coreia do Norte tivesse muito a ganhar com a cúpula, provavelmente ficou claro para Pyongyang que caso decidisse se reunir com Donald Trump, não teria muita ideia do que poderia esperar.

Essa suposição parece ser bem fundamentada; o governo americano não tem uma ideia clara dos objetivos que procura atingir com a diplomacia de alto risco com a Coreia do Norte.

*Ankit Panda é um membro sênior- adjunto da Federação de Cientistas Americanos e editor-sênior do The Diplomat.