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A 'prisão da Fifa' em porão de estádio que recebe bêbados, brigões e torcedores com identidades falsas

Ricardo Senra - Enviado especial da BBC News Brasil a Moscou

04/07/2018 08h29

"Nunca, nunca mexa com a Fifa." É essa a lição que a americana Molly Zuckerman, de 24 anos, aprendeu na primeira semana da Copa do Mundo da Rússia, depois de ser levada a um dos espaços mais surreais que diz ter conhecido na vida.

No porão do estádio de São Petersburgo, sob os pés de uma horda de torcedores que lotavam a arquibancada e vibravam na partida entre Rússia e Egito, Molly e outras seis pessoas foram mantidas em cárcere por cinco horas, acompanhadas pelo olhar atento de dezenas de seguranças contratados pela Fifa.

O jogo começou às 21h do horário local, terminou com uma vitória por 3 a 1 para os donos da casa por volta das 23h, e Molly e seus companheiros desconhecidos continuaram presos no subsolo.

A passagem pela surpreendente "prisão da Fifa", como ela descreve, ocorreu após a americana ser flagrada tentando entrar no estádio com a identidade de uma amiga.

Grávida e sem disposição para ir à partida, a dona do ingresso ofereceu o bilhete a Zuckerman. Amigos sugeriram que ela usasse a Fan ID (identificação oficial emitida pela Fifa para o torneio) da amiga.

"Fui a vários jogos. Eles só olham a Fan ID e o ingresso. Você passa o ingresso pelo leitor digital e entra. Simples assim", disse um colega.

Zuckerman se lembrou do final da adolescência, quando entrava em festas que serviam bebidas alcoólicas com documentos falsos. "O pior que pode acontecer é me mandarem de volta para casa", supôs.

Mas a Fifa é bem diferente das matinês da cidade natal de Zuckerman na Califórnia.

Celas gradeadas

À BBC News Brasil, a Fifa confirmou a existência de áreas de detenção e celas nas arenas.

"Como parte dos arranjos gerais de segurança e padrões que se aplicam na Rússia para grandes áreas como arenas esportivas, a maioria dos estádios de futebol em nosso país é equipada com salas de detenção temporárias", disse, em nota, o Comitê Local de Organização dos Jogos.

"Estes (locais) são previstos para a possível detenção de pessoas ou torcedores indisciplinados. Pelo que sabemos, esta é também uma prática normal em muitos países ao redor do mundo", afirma o comitê, por meio de sua assessoria de imprensa.

"Minha bochecha me entregou", diz a jovem jornalista freelancer à BBC News Brasil.

Uma das seguranças na entrada do estádio notou que Zuckerman era diferente da foto que aparecia no documento de identificação da Fifa e chamou um colega.

"Logo eram pelo menos 30 seguranças, 30, sem exagero, em volta de mim. Isso levou em torno de 20 minutos. Foi quando um deles revistou minha bolsa e encontrou minha identidade real."

Aí começou o périplo pelos porões da arena, uma das mais avançadas da Rússia, construída em uma ilha no mar Báltico. A obra levou 10 anos até ser concluída, em 2017, após investimentos de 1,1 bilhão de dólares, algo em torno de R$ 4 bilhões (a reforma do Maracanã, para efeito de comparação, custou por volta de R$ 1,3 bi).

"Não era um espaço grande", conta Zuckerman sobre a prisão no subsolo do estádio. "Eram muitos policiais e eu, uma mexicana que passou (o ingresso) da filha para sua guia turística, também presa, dois homens muito bêbados, um mais jovem e outro mais velho. Sete, no total."

O espaço claustrofóbico tinha três celas fechadas por barras de ferro, como nas prisões comuns. Nestas celas foram colocados dois homens alcoolizados, isolados dos demais.

O restante, incluindo a americana, ficou sentado em cadeiras dobráveis de metal ou em pé, em área isolada junto às celas. Em uma sala separada, guardas discutiam, em russo, o futuro dos detentos. Sentado em uma mesa junto aos presos, um oficial colhia depoimentos.

A Fifa confirma que a torcedora americana aguardou na área de detenção, do lado de fora das celas.

"De acordo com as informações recebidas pelo Comitê Organizador Local das autoridades policiais locais, ela não foi colocada em uma destas salas e foi apenas solicitada a aguardar enquanto informações sobre ela eram verificadas e o relatório necessário era preparado", disse o órgão.

"Como a própria senhora afirmou, ela estava ciente de que infringiu as regras relativas ao uso do Fan ID", prossegue o comitê da Fifa.

Zuckerman vive entre a Rússia e os Estados Unidos e aprendeu o idioma de Dostoiévski na escola - o que, ela conta, ajudou na comunicação com os guardas e na interlocução dos demais presos.

"Ouvi um dos seguranças cochichando com outro que eu poderia ser uma espiã dos EUA tramando algo", lembra Zuckerman. "Que tipo de espiã usaria a identidade de uma mulher totalmente diferente um jogo de futebol hipercontrolado e, pior, traria sua identidade real dentro da bolsa?"

Apelo da Fifa

Questionada, a Fifa não respondeu se a existência de celas nos estádios está descrita em algum documento oficial da entidade.

Apesar da privação de liberdade, Zuckerman e os demais não tiveram seus telefones celulares confiscados - foi com o aparelho que ela tirou as fotos que ilustram esta reportagem.

"Fora o homem que encontrou minha identidade na bolsa e foi bastante ríspido, os demais seguranças foram amigáveis o tempo todo comigo. Riram e brincaram enquanto eu aguardava o que aconteceria", diz ela à reportagem.

Após depor aos seguranças, reconhecer o erro e ser encaminhada a um posto policial, onde pagou uma multa administrativa de 50 dólares (aproximadamente R$ 200), a americana foi liberada e não teve problemas com seu passaporte.

"O que mais me preocupava era o fato de eu ter um visto de 3 anos e o medo de não poder mais voltar. Eu venho aqui para a Rússia, tenho muitos amigos e trabalhos aqui", disse.

Foram, no total, pouco mais de 5 horas presa no porão do estádio.

À BBC News Brasil, o Comitê Organizador Local fez um apelo para que os torcedores na Rússia não infrinjam regras locais usando identidades alheias.

"O comitê gostaria de mais uma vez chamar a atenção de todos os torcedores para as regras e pedir para que as cumpram em todos os momentos, para sua própria segurança e também em prol de todas as pessoas presentes na Copa do Mundo de 2018."

A torcedora parece ter aprendido.

"Fui muito ingénua de achar que a Fifa não poderia fazer o que fez e me prender. Não vou fazer nada do tipo nunca mais", diz a jovem após a experiência.

"Eles são uma das organizações mais corruptas do mundo, mas parece que quando se trata de segurança, eles cumprem o trabalho com muita seriedade."