Topo

Por que a crise na Nicarágua divide a esquerda na América Latina

Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, e sua mulher e vice-presidente Rosario Murillo - Inti Ocon/AFP
Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, e sua mulher e vice-presidente Rosario Murillo Imagem: Inti Ocon/AFP

Gerardo Lissardy - Da BBC News Mundo

04/08/2018 15h07

Uma geração atrás, a esquerda da América Latina se sentia inspirada pela Revolução Sandinista e vibrava ao ritmo de Canção Urgente da Nicarágua, do músico cubano Silvio Rodriguez.

Mas, agora esse país da América Central, em crise por causa da repressão que deixou centenas de mortos em protestos contra o presidente Daniel Ortega - que lutou na Revolução Sandinista - passou a dividir a esquerda da região.

As posições variam de um firme apoio a Ortega, expressado pelos presidentes Nicolás Maduro, da Venezuela, e Evo Morales, da Bolívia, à defesa de que ele renuncie, manifestada pelo ex-presidente do Uruguai José Mujica.

No Brasil, o PT divulgou nota dizendo que as manifestações na Nicarágua atingem um "governo legítimo e democraticamente eleito" e comparou os protestos com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Enquanto o Foro de São Paulo, organização que reúne entidades de esquerda latino-americanas, acusou os Estados Unidos e a "direita golpista" de tentar desestabilizar a Nicarágua, o Partido Socialista chileno expressou "indignação pela violenta repressão no país".

Ortega "está polarizando a esquerda até mais que a Venezuela", disse Javier Corrales, professor de Ciência Política no Amherst College, nos Estados Unidos.

Por trás deste fenômeno, há várias explicações.

'Um sonho que se desviou rumo à autocracia'

Parte da esquerda deixou de ver Ortega como a continuação de uma guerrilha que derrubou o governo Somoza (aliado dos Estados Unidos na Nicarágua) no final dos anos 1970 e instalou um amplo governo democrático, depois de enfrentar a ação armada dos "contras" financiada pelos Estados Unidos, na década de 1980.

Ortega é acusado agora de impulsionar as ações repressivas da polícia e de paramilitares contra manifestantes desarmados, muitos dos quais são jovens. Os enfrentamentos deixaram mais de 300 mortos desde abril.

"Sinto que algo que foi um sonho se desvia e cai na autocracia e entendo que os que no passado foram revolucionários perderam a noção de que na vida há momentos em que é preciso dizer: 'vou embora'", disse Mujica em julho, no Senado uruguaio.

O teólogo brasileiro adepto da teologia da libertação Leonardo Boff, que já foi aliado dos sandinistas, divulgou uma carta dizendo estar "perplexo que o mesmo governo que conduziu a libertação da Nicarágua possa estar imitando as práticas do antigo ditador".

"O processo de desencanto com Ortega tem sido difícil e lento, mas chegamos ao ponto de provocar um racha na esquerda", afirma Corrales.

Para parte da esquerda, Ortega é considerado traidor da causa desde que se aliou a empresários e à Igreja Católica. Agora, o presidente da Nicarágua acusa bispos católicos de apoiar os "golpistas".

Na verdade, Ortega tem gerado divergências dentro do próprio sandinismo, com alguns expoentes da revolução tendo de afastado do presidente antes da crise atual.

Qual será a posição do presidente do México?

Uma questão para a qual ainda não se sabe a resposta é se o recém-eleito presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, que é de esquerda, vai ou não apoiar o governo de Ortega. Ele assume em dezembro.

O atual governo do México tem sido ativo, a nível regional, em condenar a violência na Nicarágua, mas Mercelo Ebrard, indicado pelo futuro presidente para ministro de Relações Exteriores, anunciou que "vai adotar uma política externa respeitosa de não-intervenção" nos assuntos internos da Nicarágua e de outros países, como a Venezuela.

Um dos principais respaldos que Ortega tem hoje vem do Foro de São Paulo, que se reuniu em meados de julho, com a presença de Maduro, Morales e o presidente de El Salvador, Salvador Sánchez Céren.

"Denunciamos que os graves atos de barbárie e violação dos direitos humanos cometidos pela direita golpista e terrorista nicaraguenses", declarou o Foro, que também afirmou que o governo de Ortega tem o "legítimo direito de se defender".

A ex-presidente Dilma Rousseff também participou do encontro. "Na Nicarágua, existe uma institucionalidade democrática estabelecida e que deve ser respeitada. Cabe ao seu governo e aos grupos de oposição preservá-la para assegurar que a segurança e os interesses da população sejam garantidos e que as divergências sejam resolvidas politicamente", disse o PT, em nota divulgada no final de julho.

O ex-presidente cubano Raúl Castro expressou na semana passada "solidariedade" à Nicarágua.

Maduro enviou no sábado saudações ao "hermano" Ortega e sua esposa, a vice-presidente da Nicarágua, Rosario Murillo, dizendo acreditar que o governo nicaraguense está sendo "atacado pelo império".

"A Venezuela está firme com vocês. Estamos com a Nicarágua", disse Maduro.

Críticos da Nicarágua fazem paralelo com 'autoritarismo venezuelano'

As críticas a Ortega geraram rachas na esquerda latino-americana difíceis de imaginar pouco tempo atrás.

Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional Constituinte venezuelana, respondeu publicamente a Mujica: "Ele está pensando em ser candidato outra vez no Uruguai. Os egos se inflamam".

Mas quem se opõe a Ortega tem traçado semelhanças entre a Nicarágua e a Venezuela, cujo governo também é acusado de autoritarismo e repressão violenta a opositores.

"Na Venezuela, assim como na Nicarágua, não há um socialismo, o que existe lá é o uso de uma retórica de esquerda do século 20, para encobrir uma oligarquia que rouba do Estado", tuitou o ex-guerrilheiro colombiano de esquerda Gustavo Petro, na semana passada.

No entanto, Nicarágua e Venezuela parecem gerar sentimentos conflitantes em relação às diferentes referências esquerdistas da América Latina.

Uma diferença apontada por alguns deles é que, enquanto o líder da revolução venezuelana- Hugo Chávez- está morto, na Nicarágua os protagonistas estão vivos.

"Nunca se gerou na Venezuela essa mística que surgiu com o sandinismo", disse o cientista político uruguaio Adolfo Garcé à BBC News Mundo, o serviço espanhol da BBC.

Mas ele afirma que, para a esquerda regional, parece difícil questionar a Venezuela, porque o chavismo teceu laços políticos e econômicos mais recentes com outros países.

"É como se o amor da esquerda pela Nicarágua tenha sido mais intenso, mas também muito mais longínquo e distante", diz Garcé. "E (esse amor) tem sido muito menos constante e vocal nos últimos anos."