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Conheça a linguagem secreta das seitas - e como ela penetrou em áreas inesperadas do nosso cotidiano

24/10/2021 13h26

Como os cultos atraem e retêm fiéis? Com uma linguagem que se infiltrou em atividades que vão desde negócios a fitness.

Para quem está do lado de fora e observa seu comportamento e crescimento, a pergunta costuma vir à cabeça: como as seitas, afinal, promovem suas ideologias para conseguir atrair seguidores e depois convencer quem as questiona a ficar no grupo?

Outra pergunta, menos comum, revela ainda mais sobre a eficácia dessa comunicação: quanto das suas estratégias acaba sendo incorporado por outras áreas da nossa vida cotidiana?

Uma das ferramentas mais poderosas das seitas é a palavra, e elas a utilizam de uma maneira tão sedutora que o formato penetrou, de forma inesperada, em muitas atividades comuns, do mundo dos negócios à indústria de saúde e bem-estar.

Como sabemos, entretanto, a palavra depende do contexto.

"Seita", especialmente, é um exemplo vivo disso. A palavra começou sendo um termo para dar nome a comunidades de membros que compartilham ideologias ou crenças que os diferenciavam de outros grupos maiores, talvez novas ou pouco ortodoxas, mas não necessariamente nefastas.

Somente em meados do século 20 essa palavra começou a ganhar sua reputação mais obscura. O surgimento de tantas religiões alternativas assustou os conservadores, e as seitas foram associadas a charlatões, hereges e pecadores.

Mais tarde, com os assassinatos cometidos pelo grupo liderado por Charles Manson em 1969, na Califórnia (EUA), e o massacre de Jonestown, na Guiana, em 1978, "seita" passou a representar uma ameaça social e a provocar medo.

Para diferenciar certas minorias de doutrinas religiosas ou ideológicas concretas e evitar sua perseguição, na década de 1980 surgiu o conceito de "novos movimentos religiosos" e, por outro lado, o das chamadas "seitas destrutivas".

Palavras-chave

Embora a linguagem utilizada pelas seitas seja a chave para atrair novos integrantes, ela não é suficiente para "lavar o cérebro" de uma pessoa para que se ela se junte ao grupo, esclarece a especialista em idiomas Amanda Montell, autora do livro Cultish: The Language of Fanatism (Como num culto: a Linguagem do Fanatismo).

O termo "lavagem cerebral", explica ela, é apenas uma metáfora, não um fenômeno real ou comprovável. Não se pode convencer alguém de que ela deve acreditar numa coisa sem que a pessoa tenha ao menos um pouco de vontade.

Mas, uma vez que essa vontade existe, a linguagem torna-se um ponto chave, disse a especialista à série da Radio 4 da BBC "Word of Mouth".

"É necessária uma linguagem para obscurecer as verdades, para construir a solidariedade, para plantar uma ideologia, para dividir as pessoas em 'nós' e 'eles', para plantar a filosofia de que 'os fins justificam os meios' e para fazer todo o necessário para ganhar e manter o poder."

Sentir-se especial

Em primeiro lugar, uma seita precisa converter a pessoa. E isso é alcançado fazendo com que ela se sinta especial e compreendida.

Muitos estudiosos desse fenômeno usam o termo "bombardeio de amor" para descrever o processo de preencher alguém a atenção personalizada e elogios, de maneira que o objeto dessa atenção sinta-se notado.

O objetivo dessa atenção pode estar buscando há muito tempo respostas para seus problemas, para os problemas do mundo, e é então convencido de que se unir à seita lhe dará acesso a essas preciosas soluções.

Outro método de "conversão, condicionamento e coerção" é o uso de uma "linguagem de código inclusivo", afirma Montell.

"Um líder da seita introduz lentamente essas palavras carregadas de muita emoção e uma terminologia especial que separa os que estão dentro desse grupo dos que estão fora", explica.

Além disso, eles podem usar um glossário de carimbos "nós, eles", "para animar os que estão dentro do grupo e criticar os que estão fora dele".

Termos carregados e cooptados

Em 1978, 918 pessoas morreram num assentamento na Guiana (país da América do Sul que faz fronteira com os Estados brasileiros de Roraima e Pará). A tragédia ficou conhecida como o "Massacre de Jonestown".

A mídia descreveu os acontecimentos como um suicídio coletivo, em que os participantes beberam cianeto intencionalmente, para acabar com a própria vida.

A verdade foi que o líder da seita, Jim Jones, não deu a seus seguidores nenhuma alternativa: eles estavam rodeados de guardas armados. Se não ingerissem eles mesmos o veneno, a substância seria injetada em seus corpos, ou os seguranças atirariam.

Jones utilizou termos e metáforas carregados para convencer as pessoas a seguir sua orientação. Um dos termos que ele usava repetidamente foi "suicídio revolucionário".

O dia do massacre marcou o "suicídio revolucionário" como uma declaração política contra os "governantes ocultos" - termo de Jones para descrever uma estrutura de poder, algo que hoje em dia muitos descrevem como "Estado profundo".

O termo "suicídio revolucionário" Jones havia incorporado do movimento radical afro-americano Panteras Negras.

"Isso é o que fazem muitos líderes de seitas", diz Montell. "Eles dotam a linguagem de ideologias que eles respeitam." Jim Jones tomou emprestado muitos desses termos políticos para indicar que sua ideologia era politicamente radical.

De forma parecida, a cientologia - movimento surgido nos anos 1950 nos Estados Unidos - adotou palavras científicas como "engrama" (um registro duradouro de percepções sensoriais deixado nas células humanas) e lhes deu novos significados específicos em seu sistema de práticas e crenças religiosas.

Eufemismos para a morte

Marshall Herff Applewhite, cujo grupo dos anos 1990 era um culto inspirado em ficção científica e na crença em vida alienígena, chamado Heaven's Gate (Portal do Céu), tinha um repertório linguístico diferente.

Segundo a especialista, Applewhite usava "largas cadeias de fala espacial esotérica e uma sintaxe derivada do latim para fazer com que seu pequeno grupo de seguidores pseudointelectuais se sentissem como uma elite".

Da mesma forma que Jim Jones, ele utilizava eufemismos para a morte - a seita de Applewhite também terminou tragicamente, em suicídio coletivo -, mas com uma combinação dos estilos de linguagem de ficção científica e do Antigo Testamento.

Com esse discurso, ele dizia coisas do tipo: seus seguidores tinha que "superar suas vibrações genéticas como uma forma de sair de seus veículos para que seus espíritos pudessem ressurgir a bordo de uma nave espacial e encontrar o próximo nível evolutivo, acima do humano".

Ele se referia a nossos corpo como "contêineres" que podiam ser descartados para uma existência superior.

"Nos anos 1990, quando muitos recorriam à tecnologia digital em busca de respostas às perguntas mais antigas do mundo, essa linguagem realmente causava uma identificação, pelo menos para certas pessoas", disse Montell.

Clichês contra o raciocínio

Mas o líder de uma seita não é capaz de ser um "gênio iluminado" 24 horas por ia, sete dias por semana, então precisa rapidamente conseguir eliminar o pensamento independente e os questionamentos.

Uma das formas com que eles fazem isso é por meio de "clichês que colocam um fim ao pensamento". O termo, cunhado no início da década de 1960 pelo psicólogo Robert Jay Lifton, "descreve como uma expressão comum que é memorizada e repetida facilmente e tem como objetivo acabar com o questionamento ou o pensamento ou análise independente", observa Montell.

O líder do grupo NXVIM, um "grupo metafísico de superação pessoal" da Nova Era, por exemplo, dizia coisas como "não se deixe governar pelo medo" para descartar qualquer preocupação válida sobre o que estava acontecendo. Também minava questionamentos descrevendo-os como "crenças limitantes".

"Esse tipo de expressão é realmente convincente porque lida com a dissonância cognitiva, ou ao menos alivia essa discórdia incômoda que você sente quando tem duas ideias conflitantes em sua mente ao mesmo tempo."

Esse estilo de expressão comum manifesta-se em nossa vida cotidiana, afirma Montell, em forma de frases como "tudo está como Deus planejou" ou "tudo acontece por um motivo".

Nas grandes empresas

Em sua investigação, Montell detectou um tipo de linguagem de seita em corporações tão grandes quanto a Amazon.

A companhia tem sua própria versão dos Dez Mandamentos que chama de "Princípios de Liderança" - e que os novos funcionários devem memorizar. Eles incluem trivialidades como "Pense grande" e "Seja firme".

"No mercado transitório e muito cético de hoje, onde existe tão pouca lealdade à marca, as empresas necessitam daquilo que se chamam ideologias organizacionais", diz a especialista.

Essas são ideologias que implicam que os consumidores e empregados não apenas se inscrevem para um trabalho, um produto ou um serviço, mas sim para obter uma identidade.

À medida que nos mudamos cada vez mais dos lugares tradicionais de comunidade e conexão com as igrejas, "buscamos marcas e empresas, quase para desempenhar um papel espiritual e religioso em nossas vidas", explica.

No mundo fitness

Um lugar moderno e secular que pode cumprir um propósito espiritual é a academia de ginástica.

"Aspirar e inspirar", "inspiramos intenção e expiramos expectativa" e "mude seu corpo, comece sua jornada" são apenas alguns dos fragmentos da declaração escrita na parede de qualquer sucursal da empresa de fitness SoulCycle, visível logo na entrada.

Vários estudiosos mostraram que, quando lhes perguntam como e onde satisfazem sua espiritualidade, os jovens respondem que é nos ambientes onde fazem exercícios físicos.

Faz sentido, quando se considera o quanto amamos o progresso, a produtividade e sermos atraentes, diz Montell. "A superação pessoal é nossa religião suprema."


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