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Fizemos vários alertas sobre os yanomamis ao governo, mas resposta foi insuficiente, diz representante da ONU

Comunidades que fazem parte da Reserva Yanomami enfrentam crise humanitária que tem como principal causa a expansão do garimpo ilegal - GETTY IMAGES
Comunidades que fazem parte da Reserva Yanomami enfrentam crise humanitária que tem como principal causa a expansão do garimpo ilegal Imagem: GETTY IMAGES

Julia Braun

Da BBC News Brasil em Londres

03/02/2023 15h27

'Que é difícil não tenho dúvidas. Mas a situação é verdadeiramente muito grave e as medidas tomadas foram claramente insuficientes', diz representante na América do Sul do ACNUDH sobre ações do Estado

Após vários alertas feitos ao governo brasileiro sobre a grave situação humanitária enfrentada pelos indígenas yanomami que vivem em comunidades no norte do Brasil, "as medidas tomadas foram claramente insuficientes".

É o que diz o representante na América do Sul do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), Jan Jarab.

Para o tcheco que assumiu o posto em Santiago do Chile em 2019, a resposta do governo federal às denúncias feitas não só pelo ACNUDH, mas também por organizações nacionais e defensores dos direitos indígenas, ficou longe do ideal.

Fizemos vários alertas, tanto por meio da própria Alta Comissária dos Direitos Humanos à época, Michelle Bachelet (...), quanto também expondo a grave situação para o Conselho dos Direitos Humanos", afirmou Jarab à BBC News Brasil.

O representante, que trabalha com Argentina, Brasil, Chile, Equador, Paraguai e Uruguai, visitou comunidades yanomami na Amazônia em maio de 2022.

Depois de sua viagem, afirma ter se reunido com representantes dos Três Poderes em Brasília para compartilhar sua preocupação diante dos relatos de invasão de garimpeiros, violência, desnutrição e péssimas condições de saúde que ouviu das lideranças indígenas. Mas, segundo ele, os encontros não surtiram muito efeito.

Segundo Jan Jarab, a história do Brasil e de toda a América Latina carrega o peso do genocídio contra os povos originários perpetrado pelos colonizadores europeus. Ele lembra também do episódio em que quatro garimpeiros foram condenados por genocídio por matar ao menos 16 indígenas em 1993, no que ficou conhecido como o Massacre de Haximu.

Desde o fim de semana passado, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e uma comitiva de ministros visitaram a terra indígena dos yanomami em Roraima, as imagens de crianças e adultos em estado grave de desnutrição, e com doenças como malária e verminoses, causaram consternação no mundo.

Diante da possibilidade de um caso de omissão, parcial ou total, por parte de autoridades federais, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a abertura de uma investigação de autoridades do governo Jair Bolsonaro (PL) pela suposta prática de genocídio de indígenas yanomami.

Polícia Federal também abriu inquérito para apurar se houve crime de genocídio e omissão de socorro ao povo yanomami pelo governo Bolsonaro. Outras duas denúncias estão em avaliação preliminar no Tribunal Penal Internacional, localizado em Haia, nos Países Baixos.

A questão, porém, ainda gera muita controvérsia, com juristas e especialistas que afirmam não haver evidências suficientes do crime de genocídio.

A BBC News Brasil tentou, durante esta reportagem e em outras ocasiões, o contato com Bolsonaro e seus assessores para que pudessem dar um posicionamento a respeito de todos os pontos e alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação deste material.

Mas assim que a emergência de saúde veio à tona nos últimos dias, o ex-presidente fez postagens no aplicativo de mensagens Telegram.

Ele classificou a denúncia sobre a crise yanomami como "farsa da esquerda" e disse que seu governo realizou 20 ações de saúde entre 2020 e 2022 que levaram atenção especializada para dentro dos territórios indígenas, especialmente em locais remotos e com acesso limitado.

Segundo o ex-presidente, foram beneficiados mais de 449 mil indígenas, com 60 mil atendimentos. Ainda na mensagem, ele afirmou que o governo federal encaminhou 971,2 mil unidades de medicamentos e 586,2 mil unidades de equipamentos de proteção individual, totalizando 1,5 milhão de insumos enviados para essas operações.

A reportagem ainda procurou o ex-presidente da Funai entre julho de 2019 e dezembro de 2022, Marcelo Augusto Xavier, mas também não obteve resposta.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista de Jan Jarab à BBC News Brasil:

BBC News Brasil - Desde quando o senhor acompanha a situação dos yanomamis?

Jan Jarab - Em maio de 2022 visitei o território com uma delegação. Mas mesmo antes disso, em setembro de 2021, organizamos uma reunião virtual com a então Alta Comissária dos Direitos Humanos, Michelle Bachelet, e líderes yanomamis e ativistas que defendem os direitos dessa comunidade.

Já nessa ocasião se falou da questão dos garimpeiros, que cada vez mais invadiam o território demarcado, da contaminação por mercúrio e da situação frágil da saúde na região, em especial das crianças.

A Alta Comissária Bachelet foi convidada a visitar o local e ela se comprometeu a me enviar como representante. Fiz a visita em maio de 2022, quando o Instituto Socioambiental organizou uma comemoração dos 30 anos da demarcação do território. Lá ouvimos testemunhos tanto do passado como da situação atual.

BBC News Brasil - Qual foi a situação encontrada lá?

Jarab - As aldeias que visitamos não são as mais expostas à pressão dos garimpeiros, por motivos de segurança. Mas tivemos a oportunidade de escutar os testemunhos dos líderes yanomamis de muitas partes do vasto território, particularmente das áreas onde o garimpo está crescendo de maneira muito perigosa, como no rio Mucajaí.

Os testemunhos foram, por exemplo, de contaminação por mercúrio - algo que já está comprovado por estudos científicos e fica evidente também na contaminação dos peixes, que são a principal fonte de alimentação das comunidades.

Citaram também outros problemas trazidos pelos garimpeiros, como a malária. Nos poços onde eles desenvolvem sua atividade se formam zonas de água parada, que favorecem a multiplicação dos mosquitos que trazem a doença.

Há relatos também de violência dos garimpeiros e violência sexual contra as mulheres das aldeias. Há ainda outros fatores de disrupção da vida tradicional do povo indígena, porque os garimpeiros levam uma visão de mundo diferente, levam álcool e às vezes até recrutam jovens yanomamis.

BBC News Brasil - Após a visita e constatação de todas essas questões, o Alto Comissariado fez algum tipo de alerta ao governo federal sobre a situação dos Yanomami?

Jarab - Fizemos vários alertas, tanto por meio da própria Alta Comissária dos Direitos Humanos à época, Michelle Bachelet, que sempre incluiu o tema dos yanomami em seus discursos, quanto também expondo a grave situação para o Conselho dos Direitos Humanos.

Quando voltei da Amazônia fui para Brasília e me encontrei com representantes dos Três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

O que mais surtiu efeito naquele momento foi a reunião com os ministros do Supremo Tribunal Federal, e particularmente com o ministro [Luís Roberto] Barroso, que depois de nosso encontro emitiu uma ordem para que o Estado informasse sobre as medidas que estava tomando para proteger os yanomami.

Meses depois tivemos informação sobre algumas ações policiais para proteger o território ou atuar contra os garimpeiros. Mas claramente não foi suficiente, porque hoje estima-se que existam 20 mil garimpeiros no território.

BBC News Brasil - Em algum momento o Executivo chegou a responder ao Alto Comissariado?

Jarab - O Executivo sempre nos respondeu dizendo que estavam fazendo tudo o que era possível. Que a polícia e os órgãos do Estado estavam atuando para proteger esse território do garimpo.

Às vezes explicavam que era uma situação difícil, que não tinham pessoal suficiente. Pode ser verdade, pois que é difícil não tenho dúvidas. Mas a situação é verdadeiramente muito grave e as medidas tomadas foram claramente insuficientes.

BBC News Brasil - Exatamente quais direitos humanos dos yanomami o senhor acredita que estão sendo violados neste momento, considerando a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os demais tratados da área?

Jarab - São vários direitos sendo violados. Evidentemente em casos de violência, podemos falar até no direito mais básico, o direito à vida. Quando se trata da contaminação por mercúrio, falamos sobre o direito à saúde e a um meio-ambiente saudável. Mas também podemos falar especificamente dos direitos das mulheres, no contexto das ameaças e agressões sexuais. Ou ainda dos direitos das crianças, que são as mais afetadas pela desnutrição.

Nosso Escritório acredita que a emergência de saúde e nutrição deve ser a primeira a ser abordada. Se constatou que o nível no apoio à saúde estava em situação desfavorável nos últimos anos. Os yanomami estavam praticamente abandonados, a cobertura de saúde era muito insuficiente.

BBC News Brasil - Há um entendimento distinto ou direitos excepcionais quando falamos de direitos humanos de povos indígenas?

Jarab - Sim. Há, por exemplo, a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], que protege particularmente os direitos dos povos indígenas, ou então a Declaração dos Povos Indígenas, na qual o elemento mais importante é o direito à consulta e ao consentimento, sobretudo à respeito daquilo que pode afetar a vida na comunidade.

Isso é muito importante quando falamos dos direitos coletivos dos povos indígenas, pois antes de qualquer projeto que pode afetá-los, inclusive projetos legislativos, tem que haver uma consulta prévia que seja livre, informada, culturalmente adequada e de boa fé.

BBC News Brasil - Há uma discussão no Brasil atualmente sobre a possibilidade de ter havido o crime de genocídio contra os yanomami pelo governo de Jair Bolsonaro. Houve genocídio, na sua visão?

Jarab - Eu não posso me pronunciar sobre a responsabilidade individual dos envolvidos. Mas faço duas observações. A primeira é que o governo atual convidou a Assessora Especial do Secretário-Geral da ONU para a Prevenção do Genocídio a visitar o Brasil. Ela é a funcionária que pode abordar esses temas, não da perspectiva do processamento dos indivíduos, mas para a prevenção do genocídio.

A segunda observação é que claramente, a história não só do Brasil, mas também de toda a América Latina e continente americano, carrega o peso do genocídio dos povos indígenas e originários. A situação dos Yanomami entre os anos 70 e 80 poderia se classificar como pelo menos risco de genocídios e, inclusive, alguns perpetradores individuais foram condenados neste contexto.

Agora, chegamos a esse grau hoje? Espero que não. Mas a situação em si é muito grave e tem que ser avaliada também sob essa perspectiva.

BBC News Brasil - O que deve ser feito agora, para reverter a situação?

Jarab - A coisa mais urgente é resolver a emergência de saúde e desnutrição. Depois, a médio e longo prazo é preciso construir políticas públicas culturalmente sensíveis para garantir que o Estado brasileiro vá ajudar e não vá prejudicar os indígenas. Ou seja, escutar os próprios povos indígenas e também buscar conhecimento dos especialistas da área, como indigenistas, antropólogos, nutricionistas e outros.

Combater o garimpo também será um grande desafio, especialmente porque estamos falando de um negócio que não é mais artesanal como no passado, mas está vinculado a empresas supostamente legítimas e com o crime organizado.

Precisamos de uma Funai comprometida, mas também do controle aéreo, para monitorar os pequenos aviões dos garimpeiros que operam por ali. Também seria importante dar um jeito nas fazendas e postos de combustível nas margens do território yanomami que servem como base para o garimpo.

Mas preciso dizer que a visita do presidente Lula e as medidas de emergência nos deram muita esperança. Apesar da situação dramática, ver que o novo governo chega com energia e vontade política para resolver essa situação grave dos yanomami e de outros povos indígenas é uma boa notícia para nosso Escritório.

BBC News Brasil - Existe uma ideia defendida por alguns de que a Floresta Amazônica deveria ser mais utilizada para o desenvolvimento econômico e que a demarcação de terras prejudica esse dito "progresso". Como o senhor enxerga esse ponto de vista?

Jarab - É uma narrativa frequente e temos que admitir que ela tem raízes profundas desde o início da colonização. Vêm da percepção da época da colonização de que a natureza e a floresta existiam para que os europeus pudessem ficar ricos e que os indígenas eram apenas um obstáculo.

Ainda temos o desafio de convencer as pessoas de grande parte das Américas que a proteção à Amazônia é muito importante não só para os povos indígenas, mas também para a humanidade e planeta como um todo. A floresta representa uma riqueza incrível em termos de biodiversidade e de combate à mudança climática.

Enxergá-la apenas sob uma perspectiva econômica e como forma de crescer a curto prazo economicamente pode levar a perdas irreversíveis. Não devemos permitir que isso aconteça, devemos aprender com as lições dos séculos passados.