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Crise catalã e o mito do segundo golpe de Estado na Espanha

Cristina Burack (av)

27/10/2017 14h02

Governos regional da Catalunha e central em Madri se acusam mutuamente de "putsch". Separatistas veem retorno da repressão ditatorial franquista. Mas, segundo especialista, diferenças entre 1981 e 2017 superam paralelos.Quando, em 23 de fevereiro de 1981, a câmara baixa do Parlamento espanhol começou a votação aberta para eleger um novo primeiro-ministro, 200 membros armados da Guarda Civil irromperam no recinto. Os franquistas fiéis atiraram para o ar e tomaram os deputados reféns. Sua intenção era instaurar um governo militar de "todos pela Espanha", como disse o líder do golpe, Antonio Tejero.

Depois de conversas telefônicas de bastidores com assessores e líderes militares, à 1h15 o rei Juan Carlos 1º fez um pronunciamento televisivo, convocando à defesa da Constituição nacional por todos os meios legais necessários. O golpe se esvaziou, e todos os seus cabeças foram presos no mesmo dia.

Para muitos, esse fracasso provava que a Espanha havia se afastado firmemente do sistema autoritário do ditador Francisco Franco, já que, segundo Sebastian Balfour, professor emérito de estudos espanhóis na London School of Economics, tratara-se de "um golpe fracassado contra a democracia como um todo".



Pró ou contra a democracia, eis a questão

No contexto da atual crise gerada pelas aspirações separatistas dos catalães, Balfour rechaça acusações como a do ministro do Exterior, Alfonso Dastis, segundo o qual "um golpe de Estado é o que o senhor Puigdemont [chefe do governo da Catalunha] e seu governo fizeram".

Passados 36 anos, o atual movimento independentista da Catalunha procura expandir a democracia, especifica o especialista. Trata-se de "um questionamento do quadro constitucional" posto em vigor no país desde a transição pós-Franco, pois a atual crise se deve à natureza rígida da Constituição espanhola.

"Ela não é capaz de refletir identidades e alianças cambiantes", diz Balfour, enfatizando que muitas das atuais identidades regionais do país emergiram nas décadas seguintes à proclamação da Constituição, em 1978: o princípio "café para todos", contido nela, garantia às diferentes regiões graus variáveis de autonomia.

O anseio catalão de independência se intensificou quando o estatuto de autonomia reformulado da região foi derrubado pelo Tribunal Constitucional, em 2010. Parte do problema se deveu ao uso, no preâmbulo, do termo "nação" para definir a Catalunha, lembra Balfour. "Autonomia é uma coisa, outra é quando uma autonomia como a Catalunha alega ser mais do que apenas nacionalidade."

Segundo o professor da London School of Economics, essa tem se mostrado uma formulação historicamente "incômoda" para a direita espanhola. Entre as possíveis motivações para o golpe de 1981, especula-se que os oficiais militares direitistas linha-dura temessem que as regiões autônomas fossem causar a dissolução do Estado espanhol. A Catalunha recebera seu primeiro estatuto de autonomia dois anos antes do putsch.



Assunto incômodo para a direita

Hoje, o mal-estar conservador quanto ao estado da unidade nacional se manifesta dentro do Partido Popular (PP), do presidente do governo espanhol, Mariano Rajoy, que abrange uma boa porção da direita política e tem uma opinião rígida sobre a indivisibilidade da Espanha, explica Balfour.

O fato de a outra grande legenda do país, o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), apoiar Rajoy sem restrições é tão mais surpreendente por anteriormente ela ter defendido emendas constitucionais no sentido de transformar a Espanha num Estado federal.

Ao contrário de 1981, prossegue Balfour, ninguém espera que o rei Felipe 6º venha a distender a crise. Em todos os seus discursos, ele criticou inequivocamente os líderes catalães pela iniciativa independentista e deu o seu aval à implementação do Artigo 155.

Este autoriza o governo central a intervir nas autoridades públicas regionais em caso de descumprimento das leis nacionais pelas comunidades autônomas. Portanto, o rei "está comprometido com a Constituição em sua forma atual, sob a qual não é possível qualquer direito de autodeterminação".



Guarda Civil, no passado e hoje

Enquanto Juan Carlos foi elogiado por seu equânime comunicado à nação espanhola em 1981, Felipe 6º foi criticado por ter deixado de mencionar, no discurso televisivo de 3 de outubro, a violência de membros da Guarda Civil contra catalães, durante o referendo sobre a independência, dois dias antes.

O líder regional, Carles Puigdemont, declarou que não se via tamanha violência desde o regime de Francisco Franco. O ditador empregava as forças de segurança na repressão política em todo o país; na Catalunha e em outras regiões, os cidadãos também sofriam repressão cultural e linguística.

O papel da Guarda Civil no golpe fracassado de 1981 certamente contribui para que ela carregue a marca do legado franquista. No entanto, Balfour rejeita a narrativa de secessionistas catalães que denunciam nas ações da corporação uma extensão do franquismo. Ele considera a mobilização da Guarda, antes, um exemplo de "Madri usando a lei e a ordem em vez da política" para encarar a crise catalã.

Mais do que rebelião versus repressão

Na opinião do especialista espanhol, "o problema é a própria Constituição e sua interpretação pelo governo espanhol, em termos de política".

Toda desescalada de curto prazo implicaria os catalães abandonarem suas pretensões de independência, o que ele considera improvável. Uma solução de longo prazo, contudo, é outra história. Balfour acredita que, 36 anos depois de a Espanha ter resistido a uma tentativa de golpe militar, está na hora de revisar o acordo constitucional da nação, pois as sociedades mudam. "As Constituições não são capazes de refletir eternamente o equilíbrio ideológico, político e cultural dentro de uma sociedade."

Uma emenda da Constituição de 1978 garantindo o direito de autodeterminação poderá resolver a questão. Atualmente, muitos apoiam o direito de votar pela independência, mas não advogam a independência em si. O necessário, frisa Balfour, é tais questões entrarem no discurso público, o qual tem sido reduzido a uma rebelião, de um lado, e à repressão, do outro.