'Suíça do Oriente Médio': o pequeno país que costurou a trégua entre Hamas e Israel
O anúncio de uma possível "pausa humanitária" na Faixa de Gaza pode ser considerado um triunfo para uma pequena nação do Golfo Pérsico, o Qatar.
Na manhã de quarta-feira (22), o Ministério das Relações Exteriores do emirado divulgou um comunicado anunciando a "trégua" de quatro dias durante a qual todos os lados - os militares israelenses, o grupo terrorista Hamas e o braço armado do Hezbollah no Líbano - concordaram em parar os combates. Isto permitiria a libertação de 50 reféns detidos pelo Hamas em Gaza, em troca da libertação de cerca de 150 prisioneiros palestinos das prisões israelenses. Também permitiria que a ajuda humanitária desesperadamente necessária entrasse na Faixa de Gaza.
Os reféns em poder do Hamas a serem libertados seriam mulheres e crianças, e os prisioneiros palestinos que seriam postos em liberdade também seriam principalmente mulheres e crianças - isto é, prisioneiros nas prisões israelenses com menos de 18 anos.
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As negociações em torno dos reféns duraram semanas. A certa altura, o governo israelense recusou uma oferta semelhante, para poder continuar sua ofensiva terrestre em Gaza. Contudo, a pressão aumentou - por parte da comunidade internacional, do principal aliado de Israel, os EUA, e das famílias dos reféns, que exigiram que o seu governo se concentre na libertação dos sequestrados.
O Egito, que assinou um acordo de paz com Israel em 1979 e faz fronteira com Israel e Gaza, também ajudou nas negociações. Mas foi o Qatar que foi visto como tendo liderado as conversações.
Agradecimentos pela 'parceria crítica'
Como resultado do anúncio do Qatar, o presidente dos EUA, Joe Biden, e o principal diplomata dos EUA, Antony Blinken, publicaram mensagens no X (antigo Twitter) agradecendo ao Egito e ao Qatar pela "parceria crítica" nas negociações.
Antes, até o conselheiro de segurança nacional de Israel, Tzachi Hanegbi, elogiou o papel do Qatar, escrevendo nas redes sociais que "os esforços diplomáticos do Qatar são cruciais neste momento".
Mas nem todos estiveram tão satisfeitos com o Qatar. Alguns comentaristas disseram que o Qatar deveria ter se esforçado mais para libertar mais reféns. Outros argumentaram que, como o pequeno Estado do Golfo é o lar da liderança política do Hamas desde 2012, foi de alguma forma cúmplice dos ataques do grupo.
O Qatar tem afirmado regularmente que apoia a igualdade de direitos para os palestinos.
Na corda bamba da diplomacia
Basicamente, os analistas concordam que o Qatar caminha numa linha tênue quando se trata da sua política externa, bancando a "Suíça do Oriente Médio" e mantendo as portas abertas a todos os que chegam.
"O papel do Qatar é particularmente sensível, porque o emirado depende de ser um intermediário há mais de duas décadas", disse à DW Guido Steinberg, especialista do Instituto Alemão de Relações Internacionais e Segurança (SWP, na sigla em alemão).
O Qatar já atuou anteriormente como interlocutor entre a comunidade internacional e os talibãs no Afeganistão (que também têm escritórios políticos em Doha), entre os EUA e o Irã, e até mesmo a Rússia e a Ucrânia. Também acolhe o maior quartel-general militar dos EUA no Oriente Médio, a base aérea de al-Udeid, que desempenhou um papel significativo na retirada do Afeganistão em 2021. Isso levou o Qatar a ser descrito pelos americanos como o "grande aliado não pertencente à Otan".
O país também já mediou entre Israel e o Hamas - como durante a Guerra Israel-Gaza de 2014. O Qatar congelou relações com Israel em 2009, mas alegadamente mantém uma relação nos bastidores. Por exemplo, quando outros países da região se opunham firmemente a quaisquer laços com Israel, o Qatar permitiu que Israel abrisse uma missão comercial em Doha em 1996.
"O Qatar tem tido há muito tempo uma relação pragmática onde utiliza incentivos financeiros para gerir e acalmar várias rondas de tensões e guerras entre Israel e o Hamas", disse à DW no mês passado Sanam Vakil, diretor do Programa para o Oriente Médio e Norte da África do think tank britânico Chatham House. Vakil vê o Qatar como "um intermediário natural para proteger os reféns e encontrar pontos de entrada para acalmar e proteger as pessoas no terreno, à medida que a questão humanitária piora".
"O Qatar opera numa espécie de zona cinzenta", escreveu semana passada na revista New Yorker o jornalista americano Joel Simon, autor do livro We Want to Negotiate: The Secret World of Kidnapping, Hostages and Ransom ("Queremos negociar: o mundo secreto do sequestro, dos reféns e do resgate", em tradução livre).
"Embora as autoridades do país digam que são guiadas por princípios humanitários e pelo desejo de reduzir conflitos e promover a estabilidade, usaram claramente do poder que têm para ganhar influência e visibilidade, uma postura que, acreditam, aumenta a segurança deles numa região volátil", explicou. "Jogar em ambos os lados faz do Qatar um aliado valioso, e o Qatar sabe disso", concluiu.
Grande fomentador em Gaza
No passado recente, o Qatar vinha gastando cerca de 30 milhões de dólares por mês em Gaza. Mas as discussões em torno desse dinheiro são mais um exemplo do quão difícil é o papel do Qatar quando se trata dos palestinos e do Hamas.
Alguns sugeriram que o dinheiro do Qatar subsidia a ala terrorista do Hamas e é utilizado para fins nefastos. Mas o Hamas governa o enclave desde 2007 e também gere os pagamentos à administração civil de Gaza.
Respondendo no mês passado às perguntas da agência de notícias Reuters sobre o dinheiro para Gaza, um funcionário do governo do Qatar afirmou que a verba se destinava a famílias necessitadas e ao pagamento de salários de funcionários públicos, incluindo médicos e professores. A ONU afirma que 80% dos habitantes da Faixa de Gaza dependiam da ajuda internacional ainda antes da crise atual, devido ao bloqueio que Israel estabeleceu após ter se retirado da Faixa de Gaza em 2007.
E o dinheiro do Qatar na verdade passa por Israel, segundo explicou o funcionário do Qatar à Reuters. O dinheiro é transferido eletronicamente para Israel, que depois o repassa às autoridades de Gaza, administradas pelo Hamas, e todos os pagamentos são "totalmente coordenados com Israel, a ONU e os EUA", afirmou.
As autoridades americanas observam que o sistema de angariação de fundos do Hamas é amplo, variado e complexo. Parte do dinheiro, incluindo o proveniente do Qatar, está provavelmente sendo usado de forma ilegítima, sugeriram os americanos, juntamente com outros fundos, como os provenientes do Irã, país que desempenha papel importante no apoio ao Hamas - tal como outros intermediários financeiros em todo o mundo. Por exemplo, após o ataque de 7 de outubro, os EUA sancionaram outras entidades que Washington associa ao financiamento do Hamas, incluindo um intermediário no Qatar, assim como outros no Sudão, na Turquia e na Argélia.
O papel do Qatar mudará agora?
Apesar do sucesso do Qatar nesta rodada de negociações, um dos resultados do atual conflito parece ser um acordo entre o Qatar e o seu aliado, os EUA, segundo o qual o Estado do Golfo terá de se distanciar ainda mais do Hamas depois que o atual conflito se acalmar.
Em meados de outubro, mais de 100 políticos dos EUA exigiram que o Qatar expulsasse os responsáveis do Hamas do país. "As ligações do país com o Hamas são simplesmente inaceitáveis", dizia a carta endereçada ao presidente dos EUA.
Ao mesmo tempo, a liderança do Qatar afirmou que pensa que mais diplomacia é a resposta para trazer a paz.
"O acordo negociado pelo Qatar entre Israel e o Hamas marca o primeiro sucesso diplomático importante desde o início da guerra", confirmou Hugh Lovatt, especialista do think tank Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR, na sigla em inglês). "Esta é uma oportunidade de abrir espaço para um cessar-fogo total baseado num caminho diplomático mais amplo", disse à DW.
Mas, como outros salientaram, se o Qatar expulsar completamente os responsáveis do Hamas, os representantes do grupo islâmico poderão muito bem acabar em outro país muito menos disposto a ajudar, caso seja necessária mais diplomacia. Antes de 2012, a liderança política do Hamas estava baseada na Síria.