OPINIÃO
Quem lê tanta notícia?, perguntava Caetano Veloso há 55 anos. E agora?
Ricardo Kotscho
Especial para o UOL
27/08/2023 04h00Atualizada em 31/08/2023 12h59
Caminhando contra o vento/Sem lenço e sem documento/ No sol de quase dezembro/ Eu vou
O sol se reparte em crimes/Espaçonaves, guerrilhas/Em cardinales bonitas/Eu vou
Em caras de presidentes/Em grandes beijos de amor/Em dentes, pernas, bandeiras/Bomba e Brigitte Bardot
O Sol nas bancas de revista/Me enche de alegria e preguiça/Quem lê tanta notícia/ Eu vou
Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, 1967
1968, para quem não se lembra ou não viveu aquela época, foi o icônico ano da rebelião de maio em que os estudantes ocuparam as ruas de Paris, que se espalhou pelo mundo afora e afetou as relações de poder no planeta. No Brasil, terminou com a decretação do Ato Institucional nº 5, o golpe dentro do golpe que aprofundou a ditadura militar (1964-1985).
Relacionadas
Podia-se cantar "Alegria, Alegria", uma ode à liberdade em plena ditadura, o marco inaugural do tropicalismo, lançada no ano anterior e que revolucionou a nossa música? Sim, tudo só ficou bem pior a partir do dia 13 de dezembro, quando os militares fecharam o Congresso Nacional e implantaram a censura prévia, cassando mandatos e lotando as cadeias de adversários do regime. A canção premonitória de Caetano acabou censurada.
Nesses mais de 55 anos passados desde então, muita gente nasceu e muita gente morreu, Brigitte e Cardinale se aposentaram, o homem chegou à lua e outras revoluções vieram —entre elas, a da internet, que mudou de vez as comunicações humanas, com o poder assumido pelas redes sociais, democratizando o fluxo de informações e opiniões, ao mesmo tempo em que abriam as portas para os bárbaros cachorros loucos de todos os matizes, que perderam a modéstia e assumiram o proscênio.
Bancas de jornais e revistas, como aquelas coloridas e vistosas dos anos 1960 estão desaparecendo, já quase não vendem mais jornais nem revistas. Viraram lojas de conveniência, mas nunca se consumiu tanta notícia como agora, uma selva informativa em que o leitor fica muitas vezes perdido, sem saber por onde começar nem no que deve ou não acreditar, tantas são as versões, reais ou inventadas, sobre os mesmos fatos. A freguesia apenas trocou o papel pelas telas do celular e do computador. Não temos mais só meia dúzia de "formadores de opinião" em cada área: todo mundo virou emissor e receptor de informações e opiniões. As conversas de mesa de bar ou reuniões de família foram transformadas em bilhões de tuites e zaps, que os satélites levam de um lado para outro do mundo, às vezes até elegendo ou derrubando governos, e criando modas, tendências.
Nas redações ou nos home office, os jornalistas cada vez mais atarantados em seu labirinto, se perguntam o que, afinal, é notícia hoje, sobre o que o seu público quer ser mais bem informado. Não há, porém, pesquisa no mundo capaz de dar as respostas porque entre o que o pesquisado diz e o que ele faz na vida real vai uma enorme distância. Ele é capaz de responder que prefere ver na TV programas educativos, culturais, personagens e histórias edificantes, mas acaba dando audiência para o Ratinho. A TV Cultura seria uma campeã de audiência, mas...
Antes de mais nada, precisaríamos nos perguntar de qual notícia estamos falando. Se da notícia propriamente dita, a mera descrição de um fato ou evento, a não-noticia que fica especulando em torno do que ainda não aconteceu, mas pode acontecer, ou as notícias enguiçadas, que ficam dando voltas em torno do próprio rabo, como estamos vendo agora com a discussão sobre a reforma ministerial e a reforma tributária. No imbroglio geral do noticiário, o que acaba diferenciando um veículo do outro são as reportagens especiais ou exclusivas, que se aprofundam nos assuntos e trazem revelações sobre temas quentes, além dos colunistas exclusivos de cada um. Há mais colunas em nossa imprensa hoje do que havia na Grécia Antiga...
Notícia enguiçada é uma imortal criação do jornalista carioca Alfredo Ribeiro, o Tutty Vasques, que escreve sobre coisas sérias sem perder o humor. Se fosse fácil acertar a fórmula do sucesso no cinema, no teatro, na música, na televisão e também no jornalismo, por que não?, não teríamos tantas experiências fracassadas.
No nosso caso, acho que o fator principal se resume na credibilidade do profissional que escreve a matéria e da empresa que a publica _ de preferência, de ambos. É isso que dá prestigio e valor a uma publicação em qualquer plataforma, ainda que a medição das audiências não coincida com a qualidade do produto. Por isso, é preciso balancear o cardápio para atender a todas as freguesias, como num supermercado.
Nos últimos anos, a credibilidade da imprensa em geral foi abalada várias vezes, tanto por profissionais como por empresas, que se recusam a fazer autocrítica e reconhecer seus erros de apuração e avaliação, algo que só cobram dos outros. Na linha do tempo, isso vai se refletir mais adiante em audiência e faturamento. A única forma de enfrentar esse desafio é ser sempre absolutamente honesto e transparente com nosso público, que é quem, afinal de contas, garante o nosso salário. Empresas de comunicação, por irônico que pareça, geralmente se comunicam mal com sua clientela, que acaba criando todo tipo de teorias da conspiração.
Na conturbada relação entre Mídia & Poder, costumam estar os gargalos que dificultam um diálogo mais franco entre emissores e receptores de informação e opinião, um terreno em que todos querem ter razão, ser os donos da verdade, pontificar. Eu, da minha parte, prefiro apenas ser feliz.
Que diria mestre Caetano hoje de tudo isso? Como seria agora uma nova letra de "Alegria, Alegria"? Ou não há clima para isso? Estou aqui só refletindo em voz alta sobre meu ofício, mas gostaria de saber o que pensam ele e outros criadores e gestores da nossa arte. O jornalismo também não deveria deixar de ser uma arte, aliada, é claro, à técnica e à necessidade de produzir receita, e não em oposição a elas, como qualquer outra arte. Certamente, não é uma ciência exata.
Agora, com a inteligência artificial, a coisa fica ainda mais complicada. É hora de repensar nossas verdades absolutas, que envelhecem cada vez mais rápido.
Em tempo: Esse pode ter sido um dos últimos artigos meus escritos sem o uso da inteligência artificial. Está tudo mudando muito rápido. Só falta aprender a usar...
Vida que segue.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL