Agro x ciência: indústria faz lobby por agrotóxico letal a abelhas
O governo está prestes a decidir se restringe ou não o uso de um dos piores inimigos das abelhas no Brasil, o tiametoxam. Esse agrotóxico é considerado por ambientalistas e cientistas uma ameaça à biodiversidade, razão pela qual foi proibido na Europa e restringido no Canadá.
As fabricantes, porém, deixam de lado pesquisas científicas sobre o impacto às abelhas e pressionam órgãos reguladores para manter o uso no Brasil, alegando riscos econômicos ao agronegócio.
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Aplicado para o controle de pragas em diversas lavouras, o tiametoxam está em reavaliação no país há dez anos. Esse período ficou marcado pelo lobby das fabricantes em várias frentes em Brasília, e também pelas discussões sobre a nova lei dos agrotóxicos, que pode mudar as regras do jogo e reduzir o peso do Ibama nas decisões sobre pesticidas.
A pressão é liderada pelas duas fabricantes no país, a multinacional de origem suíça Syngenta e a brasileira Ourofino, com apoio de associações do agronegócio e da Frente Parlamentar da Agropecuária, a chamada "bancada ruralista" do Congresso.
Só a Syngenta anexou mais de 30 estudos ao processo de reavaliação, na tentativa de comprovar a segurança do produto. A empresa argumenta que o tiametoxam não representa risco se aplicado conforme a bula, e diz que as fabricantes têm se empenhado na capacitação de aplicadores.
Mas o Ibama diz que esses estudos não afastaram todas as suspeitas envolvendo o tiametoxam. Para o órgão ambiental, os treinamentos e as orientações contidas em bula são insuficientes para proteger as abelhas
Em dezembro, o Ibama se manifestou a favor de restringir o tiametoxam em 25 cultivos diferentes, pois a substância "representa um alto nível de preocupação aos polinizadores", sendo "400 vezes mais tóxico do que o limite necessário para enquadrar esse agente como altamente tóxico às abelhas".
A decisão final fica a cargo de uma comissão formada por Ibama, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e Anvisa. Os três órgãos têm até 22 de fevereiro para bater o martelo.
Abelhas desorientadas
A defesa do tiametoxam pela indústria vai na contramão do que vem sendo decidido em outros países. Em 2018, a substância foi proibida na União Europeia, após pesquisas comprovarem sua letalidade para as abelhas. Esses insetos atuam como agentes polinizadores e são essenciais à reprodução de diversas espécies de plantas.
A proibição na Europa tornou o Brasil um dos principais mercados para a Syngenta, a maior fabricante mundial. Só em 2021, mais de 6.000 toneladas de tiametoxam chegaram ao país.
No Brasil, os efeitos dos pesticidas são considerados ainda piores. De acordo com um estudo feito por três universidades brasileiras - Ufscar, Unicamp e Unesp -, as abelhas nativas brasileiras são mais sensíveis ao tiametoxam do que as espécies adotadas nas pesquisas encomendadas pela indústria.
"A agricultura é uma riqueza brasileira, mas a biodiversidade também. É preciso harmonizar isso", defende a bióloga Roberta Nocelli, pesquisadora da Ufscar e uma das responsáveis pelo estudo. "As restrições [ao tiametoxam] são adequadas, porque esse é um produto tóxico", afirma.
O tiametoxam faz parte de um grupo de inseticidas à base de nicotina, conhecidos como neonicotinóides. Segundo Nocelli, a substância atinge o sistema nervoso central das abelhas, fazendo com que elas fiquem desorientadas. Causa também sequelas ao sistema imunológico, digestivo e de aprendizagem das abelhas, em muitos casos levando à morte.
A substância é suspeita também de causar problemas no sistema reprodutivo humano e no desenvolvimento de fetos, segundo a Agência Europeia dos Produtos Químicos.
Impactos ao agro
A indústria defende como solução o treinamento para aplicadores de agrotóxicos, além da criação de zonas de segurança onde o produto não poderia ser aplicado.
"Acreditamos que, por meio de treinamentos realizados no campo e de cursos online gratuitos, é possível disseminar boas práticas e orientar sobre a adequada utilização dos produtos", diz a Syngenta, em nota à Repórter Brasil.
A empresa diz também que "gerou e aportou no processo de reavaliação do tiametoxam resultados de anos de estudos, que tiveram a participação de diversos pesquisadores que trouxeram bases científicas sólidas para demonstrar a segurança do produto". Leia a resposta completa.
A Ourofino foi procurada, mas não respondeu.
Para o Ibama, "as informações em bula podem não ser suficientes para o uso seguro dos produtos, tanto pela ausência de especificações detalhadas, como por possível dificuldade dos aplicadores em compreender seu conteúdo".
Culpar os agricultores pelos efeitos dos agrotóxicos é uma estratégia da indústria para minimizar sua responsabilidade, avalia a pesquisadora Vitoria Moraes, analista da ACT Promoção da Saúde. "O que elas mais fazem é tentar colocar a culpa no indivíduo, usando estudos que não representam a vida real", diz ela, a respeito das condições de aplicação de agrotóxicos no dia a dia dos agricultores.
Embora a análise do Ibama se concentre nas abelhas, o principal argumento das empresas é o impacto econômico de uma eventual proibição. Elas dizem que o agronegócio sofreria uma queda de até 30% na produtividade.
A restrição acarretaria também aumento de custos para agricultores, perda de empregos no campo e queda na arrecadação de impostos da ordem de R$ 44 bilhões por ano, segundo as empresas.
O roteiro foi o mesmo utilizado nos debates envolvendo o paraquate — agrotóxico proibido pela Anvisa em 2020 pelo risco de causar mutações genéticas.
Na época, a indústria apresentou estimativas de queda na produção de soja. Mas a realidade foi outra, com a safra batendo recordes.
Nova Lei dos Agrotóxicos
A reavaliação do tiametoxam pode ser uma das últimas seguindo as regras atuais. O Congresso aprovou em novembro a nova Lei dos Agrotóxicos, que ganhou de ambientalistas o apelido de "PL do Veneno". O texto concede ao Ministério da Agricultura a palavra final no que se refere à aprovação de pesticidas.
Historicamente liderada por empresários do agronegócio, a pasta é vista como complacente aos argumentos da indústria e, por isso, tende a se manifestar favoravelmente ao setor.
Ao sancionar a nova lei, o presidente Lula vetou o trecho que concede ao Mapa a palavra final, restituindo o poder do Ibama e da Anvisa. Mas a bancada ruralista já afirmou ter os votos necessários para reverter a decisão.
Caso isso aconteça, o Ibama e a Anvisa, que fazem análises técnicas do ponto de vista ambiental e de saúde, perderiam poder de influência nas decisões. E as abelhas ficariam sem aliados importantes para sua proteção.