Sudeste asiático é a "bola da vez" dos investimentos no mundo pós-Covid: Brasil terá de mostrar credibilidade
A pandemia de Covid-19 fez empresas multinacionais repensarem sua dependência a produtos e insumos chineses. De acordo com agências de desenvolvimento de novos negócios, que trabalham para mapear o rumo do dinheiro e as oportunidades num mundo pós-coronavírus, países como Indonésia, Vietnã, Tailândia, Filipinas e Camboja são a bola da vez. A RFI investigou o que deverá atrair os investidores para o sudeste asiático e as chances do Brasil na economia do futuro.
Especializada em desenvolver contratos em mercados emergentes, a francesa Relecom & Partners aposta na redução do volume de investimentos direcionados à China no futuro próximo. Preocupação quanto à transparência e divergências em relação a um modelo de economia chinês centrado no Estado estão entre os motivos que levariam a essa diversificação.
"A China é um país ultracentralizado, onde o poder decide e a economia executa. Eles têm uma cultura do Estado", explica Pierre-Marrie Relecom, sócio-diretor da empresa. "Há 40, 50 anos, não havia quase industrialização na China, mas eles recuperaram o atraso fazendo alianças com grupos estrangeiros. Hoje são inovadores e estão ganhando o mundo", reitera.
Rolo compressor chinês
Relecom destaca que, enquanto o mundo ocidental trabalha num paradigma de curto prazo, rentabilidade e lucro, os chineses planejam a longo termo, buscando garantias de corredores estratégicos. "Além disso, os chineses trabalham até 12 horas por dia, por um salário médio de US$ 300 mensais, um quarto do mínimo pago na França", compara.
"Porém, quando eu tenho só uma fonte de fornecedores, a Covid-19 me coloca em risco", alerta. "Veja, por exemplo, o que acontece no setor aeronáutico, já que muitas peças de motores são fabricadas na China, ainda que depois sejam acabadas na Europa. Tudo teve de parar porque houve uma ruptura de fornecimento. A Apple, que tem 80% dos componentes do iPhone produzidos na China, também já começa a diversificar seus fornecedores", cita.
A escassez de máscaras de proteção, respiradores e medicamentos durante a epidemia de Covid-19 fez a França repensar sua subordinação à indústria chinesa no ramo medical. O medo de novas epidemias também pode afastar investidores.
"Essa dependência da China, numa situação de crise sanitária, preocupa. Pois, na China, por razões de higiene e cultura alimentar, há regularmente uma emergência de vírus respiratórios, os famosos SARS", lembra Pierre-Marrie Relecom.
Mas apesar das promessas do governo de Emmanuel Macron de relocalização da produção em território francês, os obstáculos são enormes.
"A relocalização na Europa é uma grande utopia, porque os grupos europeus são majoritariamente controlados por fundos de investimentos, com uma visão puramente financeira. E uma vez que a crise da Covid-19 passar, eles vão voltar a pensar em rentabilidade e lucro. E onde poderemos ter isso? Se não é na China, será na Ásia do Sudeste, onde há profissionais competentes, indústria local, gente que trabalha duro e onde há muito dinheiro em circulação", diz Relecom.
Atrativos do sudeste asiático
Quando se pensa em sudeste asiático, contudo, logo vem à lembrança a crise monetária de 1997, que começou na Tailândia e se espalhou pela região, contagiando diversos países. Porém, desde a primeira grande crise dos mercados globalizados, muita coisa mudou.
"A Indonésia de hoje não se parece com o país que os europeus conheceram no fim da crise asiática, em 1997 e 1998", compara Pierre-Marrie Relecom. "Hoje, é um país muito menos corrupto, onde o presidente colocou em prática um plano de US$ 1.500 bilhões para infraestrutura, incluindo rodovias, portos, aeroportos e estradas", destaca.
Outro êxito citado pelo especialista é o Vietnã, cujo crescimento anual da economia passou de 6% na última década e que vem recebendo cada vez mais grupos internacionais, especialmente americanos, alemães e italianos. A Tailândia, por sua vez, se destaca por ter uma forte indústria local, com grande lucro para grupos nacionais, em diversos setores.
"Esses países do sudeste da Ásia tem grandes conglomerados com forte atuação na agricultura, em projetos imobiliários, além de bancos, serviços de seguro e indústria de transformação. E que começam a se diversificar, em parceria com grupos europeus, especialmente no ramo da mobilidade e através das privatizações", observa Relecom.
África não deve atrair investidores
Diante do novo cenário internacional, seria a África uma opção? O conselheiro empresarial duvida.
"Não podemos ir à África porque os africanos não são operadores de seus recursos, o que é feito por grupos estrangeiros", explica Relecom. "Os africanos têm uma cultura totalmente diferente dos europeus ou dos asiáticos em relação ao trabalho", além da informalidade, que representa entre 70 e 90% da economia", completa.
Chances do Brasil
Números de investimentos diretos produtivos no Brasil (IDP) mostram que o país se encontrava numa situação confortável até março de 2020, com entradas de US$ 6 a 7 bilhões mensais. O Brasil fechou 2019 com US$ 76 bilhões em IDP, volume que o colocava na quarta posição mundial, com alta de 28% em relação a 2018.
Contudo, em abril de 2020, os investimentos caíram para US$ 234 milhões, o menor valor desde abril de 1995. O acumulado de janeiro a abril de 2020 fechou 23% mais baixo, comparado a 2019 (US$ 18 bilhões versus US$ 23,4 bilhões). Contudo, o acumulado de 12 meses continua em US$ 73,2 bilhões.
Pesquisa Focus publicada em junho revela que a expectativa para 2020 é de US$ 60 bilhões de investimentos diretos produtivos no Brasil, US$ 75 bilhões para 2021 e US$ 80 bilhões para 2022, portanto, em linha com os dados do 1º quadrimestre.
Menos soft power
Frédéric Donier, diretor da empresa de consultoria Crescendo e membro da Câmara de Comércio França-Brasil, explica que duas variáveis do IDP são bastante impactadas no Brasil atualmente: estabilidade política e macroeconômica.
"Porém, na sua maioria, os investidores têm um perfil de longo prazo, e sabem que há oscilações fortes ao longo do tempo. A novidade para quem frequenta o Brasil desde os anos 1980 é a perda significativa do chamado soft power do país, [poder de convencimento], o que vai afetar setores como o turismo, a educação e a cultura. Mas, o impacto em outras indústrias tende a ser relativizado", afirma.
Donier ainda destaca que o tamanho do mercado brasileiro, o dinamismo de seus empreendedores, a disponibilidade de talentos, a infraestrutura e o ambiente regulatório no país sofrem pouco ou nenhum impacto relativo atualmente, em comparação com a Ásia.
"Nossos clientes fazem uma pausa para reflexões estratégicas em relação a definição de próximos passos no Brasil pós-Covid-19. Contudo, não tivemos até o momento nenhum refluxo intenso. Ao contrário, muitos estão analisando opções de reforçar o seu posicionamento estratégico no Brasil ao que poderá ser o 'novo normal' brasileiro, por exemplo, nos setores de saúde e mobilidade", revela.
"A transformação digital, que estava indo muito bem no Brasil, está acelerando ainda mais durante a pandemia: novas fronteiras foram abertas para o trabalho remoto, canais de vendas digitais, digitalização de processos e a perda do medo dos usuários," destaca.
Brasil recebe duas vezes mais investimentos franceses do que a China
Em entrevista à RFI, o atual embaixador do Brasil na França, diplomata Luís Fernando Serra, dá uma ideia do peso dos investimentos franceses no Brasil. O assunto foi tratado no seminário "Futuro das migrações internacionais e as perspectivas sobre a circulação de pessoas, bens e serviços no mundo pós-pandemia", na terça-feira (16), promovido pela Câmara de Comércio França-Brasil e Hussein KS.
"Os investimentos franceses no Brasil são da ordem de US$ 37 bilhões, e só para dar uma ideia, eles são o dobro dos investimentos franceses na China. Daí a importância que o Brasil tem para a França, que investiu tanto no nosso país", afirma o embaixador.
Instabilidade
Seria, então, o Brasil uma opção para os investidores estrangeiros no futuro pós-Covid? Para a Relecom & Partners, a situação do país não é tão confortável assim.
"Infelizmente, os investidores hoje não querem ir ao Brasil. Se eles anunciam investimentos no Brasil, os analistas de bolsa vão dizer que é um país instável, com uma crise econômica, crise política e corrupção", diz o sócio-diretor da empresa.
"Os analistas, hoje, veem o Brasil como um país em ultrarrisco. Há uma crise de liquidez, uma crise da moeda, pois vemos o Real se desvalorizando, e há uma crise política que se acentua. Mesmo que o presidente tenha uma base eleitoral de cerca de 30%, há uma desconfiança dos investidores, porque os grupos brasileiros estão endividados. E tem toda a Lava Jato que causou muito mal", completa, citando, ainda, a insegurança jurídica sobre os contratos.
"Top 5"
Já Thiago de Aragão, sócio da Arko Advice - empresa de análise de risco político - acredita que o Brasil se manterá entre os cinco principais destinos dos investidores mundiais mesmo com um ambiente político difícil ou de retração econômica.
"O investimento pode mudar de rumo, mas nunca vai abandonar o Brasil, porque o país ainda representa uma vantagem muito grande perante outros mercados por conta do perfil consumidor, produtor de commodities e porque o Brasil ainda tem uma estrutura institucional relativamente sólida, principalmente em comparação à região", explicou à RFI.
"Mesmo num ambiente de problemas políticos como estamos vivendo, raramente esses problemas geram uma incerteza institucional, porque as instituições brasileiras são muito fortes. Você pode questionar a qualidade do Congresso, mas nunca o poder do Congresso. Você pode questionar a qualidade do Supremo, mas nunca a independência do Supremo. E você pode questionar os ímpetos do Executivo, mas nunca os limites de poder do Executivo. Então isso traz uma confiança para o investidor", conclui.
Se o Brasil comprovar seus pontos fortes, souber explorar vantagens competitivas e aprender com o que acontece em regiões como o sudeste da Ásia, o país terá mais chances de encontrar seu caminho na economia do amanhã.
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