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Amor não é turismo: após meses separados pela Covid-19, casais franco-brasileiros se reencontram na França

25/09/2020 14h16

Casais binacionais separados pela Covid-19 estão podendo finalmente se reencontrar, após meses de espera e o recente anúncio do governo francês sobre a emissão das primeiras autorizações para a entrada na França. Alguns brasileiros e brasileiras começam a receber os salvo-condutos para poder viajar e outros ainda aguardam ansiosamente a permissão para rever seus namorados e namoradas.

A servidora pública baiana Marcella não esconde a emoção ao comentar a vitória, após meses tentando encontrar alternativas para rever o namorado francês, que mora em Toulouse, no sudoeste da França. Ela recebeu na última quarta-feira (23) a notícia sobre a emissão de seu salvo-conduto para poder viajar ao país.

"O sentimento é de muita alegria, de euforia. Quando eu abri meu e-mail, meus olhos se encheram de lágrimas! Eu já havia perdido as esperanças, estava há vários dias sem dormir, a ansiedade foi grande. E agora estou feliz demais!", comemora.

O casal se conheceu em 2018 e, desde então, se encontram algumas vezes por ano, quando Marcella vêm à Europa; a última vez foi em dezembro do ano passado. Eles planejavam se rever em abril, mas o fechamento das fronteiras devido à pandemia de Covid-19 atrapalhou os planos.

A baiana diz que foi graças ao grupo Love is not tourism (Amor não é turismo) que conseguiu trocar informações com outros casais que enfrentavam a mesma situação e se agilizar para fazer o pedido do salvo-conduto ao Consulado Geral da França em Recife (PE). Inicialmente resistente à reunião de casais sem união formal, o Ministério francês das Relações Exteriores cedeu à pressão do grupo para emitir cerca de duas mil autorizações de viagens, que vem anunciando a conta-gotas nos últimos dias.

"Eu só tenho a agradecer a essas pessoas que lutaram por nós. Esse pessoal tomou a frente, dialogou com o governo francês, falou por nós. Tem tantas pessoas por trás disso que ajudaram demais a gente. Sou muito grata a eles", diz Marcella.

Love is not tourism

O amor não é turismo: o coletivo foi fundado no Facebook quando as fronteiras dos países começaram a fechar para impedir que o coronavírus se propagasse através de viajantes. Com a grande quantidade de casais impedidos de se rever, a plataforma se ampliou e ganhou páginas relativas a vários países, além do site e do perfil no Instagram.

Em poucos meses, a adesão foi grande: atualmente, o grupo geral no Facebook conta com quase 33 mil participantes. Através da plataforma, uma importante rede de informação foi criada. Nos comentários, os membros trocam dicas e experiências. Porta-vozes dos diferentes grupos também realizam um trabalho importante; muitos conseguiram se reunir com representantes de governos e encontrar um canal de diálogo para o estabelecimento de medidas e tomada de decisões relativas às dificuldades de reunião de casais binacionais.

Um dos representantes do grupo Love is not tourism na França, Fabien Lefebvre, comemorou a decisão do governo francês, mas faz diversas críticas ao gerenciamento da questão pelo secretário de Estado Clément Beaune.

"Os representantes do coletivo estão muito insatisfeitos porque as autoridades francesas não puderam manter sua promessa de diálogo frequente e construtivo. Se o novo 'laissez-passer' chegou finalmente, as novas condições para sua obtenção excluem cerca da metade dos casais", observa.

De fato, para poder fazer o pedido do salvo-conduto na França, uma série de pré-requisitos é imposta, como a necessidade dos casais de comprovarem que se conhecem há no mínimo seis meses antes do fechamento das fronteiras e que o relacionamento não é apenas virtual. Os requerentes também precisam mostrar a aquisição de uma passagem direta à França para viajar, mas sem ter nenhuma garantia que seus pedidos serão aceitos.

"Alguns critérios que bloqueiam os requerimento já haviam sido evocados durante as reuniões precedentes [com o secretário de Estado]. Então, não é uma vitória para a totalidade dos casais separados há vários longos meses", avalia Lefebvre.

Casais que fogem à regra continuam separados

É o caso da engenheira Sandra, de São Paulo. O noivo dela, Kelly, é italiano, mas vive e trabalha na França desde julho de 2019. O casal tem um relacionamento há vários anos e a brasileira veio à Europa diversas vezes encontrar o noivo; a última vez foi em dezembro de 2019.

No entanto, como Kelly não é francês, Sandra não pode fazer o pedido de salvo-conduto para vê-lo, já que as autoridades da França exigem que, para obter o documento, um dos membros do casal deve apresentar a carteira de identidade francesa.

A engenheira brasileira não esconde a frustração com as falhas das autoridades da França. Ela faz uma comparação com a Alemanha, que criou um dispositivo muito mais simples e menos burocrático para os casais binacionais se reencontrarem.

"A França está com medo da imigração ilegal. Mas esse papel [salvo-conduto] não vai impedir que você passe pela fronteira. Além disso, para obtê-lo, é preciso apresentar documentos verdadeiros. Então, o país está se escondendo atrás de uma questão que existe desde que se constitituiu como nação, usando a pandemia como artíficio para tentar resolver esse problema de imigração", aponta.

Burocracias e incertezas desmotivam alguns casais

Diante de todas essas dificuldades, a professora de inglês e auxiliar de escritório Gabriela e o namorado, o francês Antoine, desistiram, por enquanto, de fazer o pedido do salvo-conduto para que ela venha à França. Inicialmente, o casal deveria se reencontrar em junho, mas com o fechamento das fronteiras, os planos foram colocados em pausa.

Gabriela também contou à RFI que não quis correr o risco de perder uma passagem para a França e que, sem outra alternativas em vista, o casal conseguiu se reunir recentemente em São Paulo, onde a jovem vive. No entanto, as incertezas em relação ao próximo encontro angustiam a jovem.

"Eu fico bem triste com isso, porque sei o esforço que a gente está fazendo. Muitos países se organizaram de forma bem simples, outros abriram as fronteiras, como o Brasil, a Croácia, e ajudam muitos casais e familiares. Mas fico triste pela França levar muito tempo pra resolver essa questão. Quando finalmente tomam uma atitude, demoram muito pra dar um retorno", desabafa.

Com o número de casos de Covid-19 aumentando na Europa e o governo francês acirrando as restrições no país, a jovem também diz não ter ideia de como fará no futuro para se reencontrar com Antoine. No entanto, Gabriela não perde as esperanças.

"Acho que o mais importante é se manter forte e saber que há alternativas. É triste não poder ir ao destino que você gostaria, como muitos casais estão tendo que se encontrar em países terceiros. Uma coisa que era pra ser simples acaba se tornando muito complicada, mas fico feliz que pelo menos meu namorado consegue vir ao Brasil. E só torço pra que as coisas fiquem melhores e que o governo francês seja mais rápido nessa burocracia toda", diz.

"Com a pandemia, tudo mudou"

Já o estudante de Direito Rennan, de Porto Alegre (RS), resolveu encontrar por conta própria outros métodos para vir à França ver a namorada, a francesa Célia. O casal se conheceu há dois anos e meio em Roma, onde realizava um intercâmbio. Quando o jovem retornou ao país, ele e a francesa continuaram se encontrando dentro de um intervalo de dois a três meses no Brasil e na França, com o visto de turismo.

No final do ano passado, Rennan e Célia decidiram ter uma vida juntos em Bordeaux, no oeste na França. A francesa já havia começado sua vida profissional e o gaúcho tinha planos de dar sequência aos estudos fora do Brasil.

"Mas, com a pandemia tudo mudou", diz o jovem à RFI. Os planos de Célia de visitar Rennan em abril foram por água abaixo. Sem nenhuma perspectiva para a abertura de fronteiras, o estudante resolveu pensar em soluções alternativas. A par de muitas questões relativas ao Direito da Família, Rennan formalizou uma união estável por procuração com Célia, um procedimento que durou cerca de dois meses para ser finalizado. Isso permitiu que o casal se reencontrasse em julho no Brasil.

Com o documento de união estável em mãos, Rennan conta foi possível obter uma atestação, junto ao Consulado Geral da França em São Paulo, provando que o casal tem um concubinato. Nada garantia, no entanto, que o gaúcho conseguiria passar a fronteira apresentando esse documento, mas ele resolveu arriscar. O final foi feliz: Rennan conseguiu entrar na França e está atualmente em Bordeaux ao lado de Célia.

"Foi um longo caminho. A gente teve que formalizar a relação, não teve outro jeito. Também tivemos esse apoio do Consulado Geral da França em São Paulo ao aceitar fazer esse documento, antes que a questão dos 'laissez-passer' entrassem em vigor", conta.

A ideia do casal agora é realizar uma união estável na França, procedimento chamado de Pacto Civil de Solidariedade (Pacs). Com esse documento, Rennan poderá fazer o pedido de um título de residência no país e dar sequência aos planos com Célia, como planejava o casal desde antes da pandemia de Covid-19.

Ministro Speranza, quero usar minha aliança

Outras histórias ainda aguardam um final feliz. É o caso da terapeura holística gaúcha Tatiana e o escritor italiano Diego. Eles noivaram em dezembro, mas estão impedidos de se reencontrar devido às rígidas restrições da Itália para a entrada de brasileiros.

Angustiada diante da demora para resolver sua situação, Tatiana chegou a gravar um vídeo endereçado ao ministro italiano da Saúde, Roberto Speranza. "Ministro Speranza, quero usar minha aliança", canta a gaúcha em uma gravação publicada no Instagram. 

Tatiana aguarda uma definição das autoridades italianas para poder se casar com Diego e dar continuidade à vida na Itália. O noivo também decidiu publicar um vídeo no Instagram e pedir mais agilidade da parte do governo.

A brasileira e o italiano se conheceram ao realizar o caminho de Santiago de Compostela, em 2017. Desde então, o casal alternava viagens ao Brasil e à Europa. Em fevereiro, em sua última ida à Itália, Tatiana foi pedida em casamento, mas não imaginava que, ao voltar para o Brasil para organizar sua nova vida, ficaria bloqueada durante meses.

O que mais incomoda a terapeuta é a falta de previsão do governo italiano. "Muitas pessoas me dizem para ter calma e esperar que tudo vai se resolver logo. Mas logo quando? Daqui a dois anos, seis meses? Ninguém sabe. Se as autoridades dissessem que em dezembro eu poderei ir, por exemplo, eu conseguiria ao menos me organizar", diz.

O que alivia um pouco a tensão da gaúcha é conversar e compartilhar informações e experiências no grupo Love is not tourism com pessoas que encontram dificuldades similares. Sensível à situação de outros casais, Tatiana é uma das integrantes mais engajadas na causa da reunião de companheiros e namorados ítalo-brasileiros.

"Eu me envolvi neste movimento de corpo de alma. Essa é a revolução que eu gostaria de fazer: sem líder, em nome de uma causa justa e que nasce da força do amor das pessoas. A base deste movimento é o que falta no mundo, é família, amor, compreensão, ajuda mútua", diz.

A terapeuta também ressalta que os membros do coletivo estão comprometidos com o respeito das regras sanitárias e as normas de imigração. "O nosso movimento não quer burlar a saúde pública. Nós queremos e podemos provar que somos saudáveis, que estamos fazendo a nossa parte, nos cuidando. Estamos levando exames comprovando que não somos positivos à Covid-19. Mas também estamos dispostos a fazer quarentena quando chegarmos. Por isso faço um apelo para que nos deixem entrar, que os consulados estudem com atenção cada caso, que possamos dar sequência às nossas vidas."

Sua principal batalha agora, ao lado do grupo Love is not tourism Itália é em prol da equiparação da lista de cidadãos originários de países ainda proibidos de entrar em território italiano, da qual o Brasil faz parte. Roma deve fazer um novo anúncio sobre a questão no próximo dia 7 de outubro.