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Cardeal próximo de Papa Francisco é julgado por escândalo de corrupção no Vaticano

Foto de arquivo do cardeal italiano, Giovanni Angelo Becciu. Ele o oficial da Igreja Católica de mais alta patente a ser indiciado por supostos crimes financeiros - REUTERS/Guglielmo Mangiapane
Foto de arquivo do cardeal italiano, Giovanni Angelo Becciu. Ele o oficial da Igreja Católica de mais alta patente a ser indiciado por supostos crimes financeiros Imagem: REUTERS/Guglielmo Mangiapane

Gina Marques, correspondente da RFI em Roma

27/07/2021 11h38Atualizada em 27/07/2021 12h13

Começou hoje no Tribunal do Vaticano o julgamento mais importante do pontificado do Papa Francisco sobre um escândalo financeiro que envolve a compra de um prédio de luxo em Londres. Pela primeira vez no banco dos réus está um cardeal, Angelo Becciu, junto com outros nove acusados. Durante quase oito anos, ele foi o terceiro homem mais poderoso da Santa Sé.

O Vaticano quer recuperar a sua credibilidade financeira depois do escândalo que afetou duramente a imagem da Igreja. O Tribunal composto por laicos e presidido por Giuseppe Pignatone julga a gestão do Óbolo de São Pedro, ou seja, as ofertas recolhidas por fiéis do mundo inteiro. Uma parte do valor arrecadado com doações é destinada aos pobres e a outra serve para o funcionamento do Vaticano. O dinheiro não pode ficar parado, tem que ser investido, mas uma rede de empresas e fundos de investimentos deixou um rombo nas finanças da Santa Sé.

A audiência desta terça-feira trata de questões preliminares. O julgamento deve se acelerar em outubro, quando serão realizadas duas audiências por semana. Os magistrados investigam as acusações de fraude, peculato, corrupção e lavagem de dinheiro, abuso de poder e outros crimes.

O processo é realizado em um local improvisado nos Museus do Vaticano por causa das restrições contra a Covid-19. O tribunal habitual do Vaticano é muito pequeno para um número sem precedentes de réus, advogados e jornalistas presentes neste que é considerado o maior julgamento no menor Estado do mundo.

Os nomes dos dez acusados surgiram há dois anos quando começaram as investigações dos promotores do Vaticano sobre a compra do prédio de Londres, na Sloane Avenue 60, pela Secretaria de Estado da Santa Sé. Segundo o jornal italiano Il Sole 24 Ore, o luxuoso edifício foi comprado em duas fases, em 2013 e 2018, e custou o total de ? 350 milhões (aproximadamente R$ 2,15 bilhões). As investigações contaram com uma série de documentos obtidos junto a outros países (Emirados Árabes Unidos, Grã-Bretanha, Jersey, Luxemburgo, Eslovênia, Suíça).

O poderoso cardeal Angelo Becciu

Entre os réus, destaca-se o cardeal Angelo Becciu, 73 anos, que deve responder pelos crimes de peculato, abuso de poder, e suborno pela suposta oferta ou promessa de dinheiro a uma testemunha ou perito. Ele também é acusado de nepotismo, pela distribuição de dinheiro e contratos a empresas e organizações de caridade controladas por seus irmãos na Sardenha, sua região de origem. Becciu sempre declarou sua inocência.

De 2011 à 2018 o cardeal ocupou um dos cargos mais poderosos da Cúria Romana como suplente na Secretaria de Estado da Santa Sé. Ele cuidava dos investimentos do Vaticano, principalmente do dinheiro recebido das doações dos fiéis. Segundo o jornal Corriere della Sera, Becciu chegou a administrar um patrimônio de ? 700 milhões da Santa Sé. Antes de determinar a compra do prédio londrino, em 2012, ele teria verificado a possibilidade de um investimento petrolífero em Angola, país no qual onde foi núncio apostólico por muitos anos. Um empresário local, amigo dele, Antonio Mosquito, ofereceu-lhe um investimento de US$ 200 milhões em sua empresa petrolífera Falcon Oil, mas o cardeal acabou desistindo da complicada aplicação de capital em petróleo.

Em setembro do ano passado, o Papa Francisco removeu a imunidade de Becciu para permitir que ele fosse indiciado. O pontífice demitiu o cardeal de seu último posto no Vaticano, como prefeito da Congregação para a Causa dos Santos. Ele manteve o título de cardeal, mas não pode exercer nenhuma função.

Para indiciar Becciu, foi necessária a aprovação do Papa, de acordo com a nova legislação recentemente introduzida pelo próprio Francisco. O pontífice, de fato, modificou a lei sobre o judiciário estabelecendo que cardeais e bispos também podem ser julgados pelo Tribunal do Vaticano, ou por leigos, com o consentimento papal.

Anteriormente, a competência para julgar cardeais e bispos em processos criminais era apenas do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. A Suprema Corte do Vaticano é presidida atualmente pelo cardeal Dominique Mamberti.

Complexas operações financeiras

Becciu é investigado por operações especulativas. Entre 2013 e 2014, a Secretaria de Estado do Vaticano tomou emprestado US$ 200 milhões (cerca de R$ 1 bilhão). Grande parte deste valor foi obtido junto ao banco suíço Credit Suisse, onde era depositado a maior quota do dinheiro vindo do Óbolo de São Pedro, para investir no fundo do empresário italiano Raffaele Mincione.

Por sua vez, Mincioni propôs a compra do edifício luxuoso em Londres e investimentos em ações do Fundo Athena (Athena Capital Global Opportunities Fund), administrado por ele mesmo, sendo que este fundo tinha apenas um cliente: o Vaticano. Metade do valor (cerca de US$ 100 milhões) foi destinado à aquisição de parte do prédio londrino e a outra parte destinada a investimentos em ações e operações especulativas.

A Secretaria de Estado da Santa Sé registrou imensas perdas em investimentos, mostrando que não conseguia controlar a situação. Então acabou decidindo encerrar a aliança quatro anos mais tarde, no final de 2018.

Mas o caso não terminou por aí. A Secretaria de Estado da Santa Sé escolheu um novo intermediário, Gianluigi Torzi, que negociou a saída de Raffaele Mincione, indenizando-o com 40 milhões de libras esterlinas (R$ 284 milhões) e modificando o acordo financeiro para que o Vaticano finalmente pudesse se tornar o único proprietário do edifício.

Segundo a acusação, por meio de ações com direito a voto, Torzi assumiu o controle da propriedade do Vaticano e, depois, extorquiu dinheiro da Secretaria de Estado para obter ? 15 milhões (R$ 91 milhões) para sua saída.

Outros réus

Estão sendo processados também outros dois intermediários que teriam ajudado Mincione e Torzi a entrar nas redes do Vaticano em troca de dinheiro. Trata-se de Enrico Crasso, célebre empresário suíço que trabalhava no Credit Suisse e administrou os fundos da Secretaria de Estado durante décadas. O outro é Fabrizio Tirabassi, considerado braço direito do cardeal Becciu. Ele era um importante funcionário leigo da Secretaria de Estado, encarregado dos investimentos, mas teria também recebido comissões dos bancos por influenciar as operações financeiras.

São julgados também René Brülhart, advogado suíço que já foi chefe da divisão de inteligência financeira do Vaticano, acusado por abuso de poder; o monsenhor Mauro Carlino por extorsão e abuso de poder, Tommaso Di Ruzza por peculato, abuso de poder e violação de sigilo profissional; Nicola Squillace por fraude, peculato, lavagem de dinheiro.

Outra personagem misteriosa que chama a atenção no escândalo é uma mulher: Cecilia Marogna, de 40 anos. Ela afirma que realizava atividades de inteligência em nome da Santa Sé para libertar religiosos sequestrados pelo mundo e teria recebido uma alta remuneração pelos serviços. Apelidada como "Dama do Cardeal", chamou a atenção da mídia italiana e internacional por causa das compras extravagantes de acessórios de marcas luxuosas. A mulher chegou a ser presa e agora é julgada por peculato.

As providências do papa Francisco

O Papa Francisco retirou da Secretaria de Estado da Santa Sé a gestão dos fundos, contas bancárias e investimentos imobiliários. Desde o começo deste ano, esses fundos são responsabilidade da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (Apsa), um marco da reforma da Cúria que está sendo realizada para conseguir maior transparência nas finanças do Vaticano.

No sábado passado, o Vaticano divulgou pela primeira vez o orçamento anual de um de seus principais departamentos encarregados da gestão de propriedades e investimentos. O documento mostrou que a Administração, espécie de escritório geral de contabilidade do Vaticano, é dona de 4.051 propriedades na Itália e cerca de 1.120 no exterior, sem incluir embaixadas ao redor do mundo. Esse documento nunca havia sido divulgado.