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Brasil é, de longe, principal comprador na América Latina de agrotóxicos exportados pela França

30/11/2022 12h04

O governo francês aprovou a exportação de mais de 7.400 toneladas de agrotóxicos proibidos no país desde o início do ano, apesar da adoção de uma lei histórica em vigor em 2022, que interdita a prática. Uma investigação da ONG suíça Public Eye et Unearthed mostra as falhas da legislação para o setor e como as empresas francesas conseguiram contornar a lei para vender para diversos países - com destaque para o Brasil - os princípios ativos de alguns desses produtos proibidos, a priori, para a exportação.

O governo francês aprovou a exportação de mais de 7.400 toneladas de agrotóxicos proibidos no país desde o início do ano, apesar da adoção de uma lei histórica em vigor em 2022, que interdita a prática. Uma investigação da ONG suíça Public Eye et Unearthed mostra as falhas da legislação para o setor e como as empresas francesas conseguiram contornar a lei para vender para diversos países - com destaque para o Brasil - os princípios ativos de alguns desses produtos proibidos, a priori, para a exportação.

São ao todo 14 moléculas consideradas muito perigosas para a saúde humana e o meio ambiente, mas que continuam a ser exportadas para grandes mercados como a América Latina. Em outubro de 2018, a França adotou uma lei que proíbe a exportação de herbicidas e fungicidas não permitidos em seu solo a partir de 2022. Esta decisão histórica foi tomada na sequência de revelações sobre o escândalo da atrazina, um disruptor endócrino proibido devido à poluição das águas subterrâneas, mas exportado pela Syngenta a partir da França. Elisabeth Borne, então ministra da Transição Ecológica do país, saudou a adoção do texto, que permitiria à França atuar pela ecologia "em escala global".

Entretanto, quase um ano após a entrada em vigor desta nova lei, o país continua a exportar produtos perigosos que não usa mais em seus próprios campos, como revela a investigação da ONG suíça, que utilizou dados obtidos com o direito de acesso à informação, e que expõem a extensão deste comércio tóxico no mundo. Entre janeiro e setembro de 2022, as autoridades francesas aprovaram 155 pedidos de exportação de agrotóxicos proibidos na França e em toda a União Europeia (UE), revela o relatório.

O Brasil - hoje o maior mercado mundial de fitossanitários - é, de longe, o principal comprador desses produtos franceses. Após a flexibilização da legislação brasileira no registro de agrotóxicos durante o governo Bolsonaro, o uso maciço de pesticidas continua associado a graves violações dos direitos humanos, como evidenciado por um relatório da ONU que denunciou a questão em 2019. Ucrânia, Rússia, México, Índia e Argélia também estão entre os dez principais importadores destes produtos proibidos "made in France".

O principal destino do veneno mais perigoso é o Brasil

Uma única substância representa quase 40% do volume de exportações de agrotóxicos proibidos: a picoxistrobina. Este fungicida, utilizado nas culturas de cereais e soja, foi proibido em 2017 devido ao potencial genotóxico e um alto risco para os organismos aquáticos. "Também pelo alto risco de dano ao genoma humano", declarou à RFI o especialista em Agricultura e Alimentação da Public Eye, Laurent Gaberell. "O principal destino da picoxistrobina é o Brasil, um pesticida muito utilizado na cultura da soja", explica. "A França exportou 2,9 mil toneladas desse produto em 2022, sendo 2,4 mil toneladas apenas para o Brasil", detalha Gaberell. 

A proibição da exportação de agrotóxicos proibidos, prevista na Lei de Agricultura e Alimentos (Lei Egalim), entrou em vigor na França em 1º de janeiro de 2022. Mas a própria lei e o decreto adotado para estabelecer os termos de sua implementação contêm grandes lacunas, que permitem aos fabricantes continuar a exportar grandes quantidades destes insumos não autorizados da França, em plena legalidade, como detalha o relatório da ONG suíça.

Perguntado como a França conseguia contornar as falhas da legislação que regula o setor para continuar vendendo os agrotóxicos, Gaberell explica que "uma dessas falhas gigantes é que mesmo se o fabricante não pode mais exportar o produto contendo substâncias proibidas, ele pode continuar a exportar a substância pura [sem ser o produto final]. Depois, o fabricante prepara a substância para ser utilizada no país destinatário. A picoxistrobina aproveitou essa falha", aponta o especialista.

"Verificamos que a empresa chamada Corteva exportou, a partir da França, 2,9 mil toneladas desse produto em sua forma pura, o que é autorizado integralmente pela lei. Quando esse substância pura chega ao Brasil, por exemplo, seu principal destino, a empresa a dilui para então preparar o produto final fitossanitário que será utilizado pelos agricultores [brasileiros]", aponta.

Produto que mata abelhas

A Public Eye et Unearthed especifica ainda em seu documento que estas revelações acontecem no momento em que a Comissão Europeia volta atrás em seu compromisso de implementar uma proibição de exportação de agrotóxicos proibidos em toda o bloco europeu até 2023. A comissão havia assumido este compromisso como parte de sua estratégia para a redução de produtos químicos, mas agora teria retirado este elemento de seu programa, aparentemente sob pressão dos lobbies da indústria química, segundo a ONG suíça.

Uma segunda lacuna na proibição de exportação imposta pelas autoridades francesas decorre do decreto adotado em março para regulamentar sua implementação. De acordo com os termos, os produtos fitofarmacêuticos que contenham substâncias cuja autorização em solo europeu tenha expirado e que não tenham sido objeto de uma decisão formal de proibição pelas autoridades europeias podem continuar a ser exportados. Neste caso, a venda só será proibida a partir de uma data estabelecida por um despacho conjunto dos ministros da Agricultura e do Meio Ambiente, "com base em uma avaliação do impacto da proibição". "Ainda não foi emitida nenhuma ordem desse tipo", salienta a investigação da Public Eye.

Graças a esta lacuna, as autoridades francesas deram luz verde a 94 aplicações da Bayer, BASF, Syngenta ou Nufarm para exportações de inseticidas "que matam abelhas", baseados em produtos como imidaclopride, tiametoxame, clotianidina ou fipronil. No total, mais de 1.800 toneladas de produtos contendo uma dessas substâncias proibidas foram autorizadas para exportação pela França desde janeiro de 2022. A maioria dos volumes destes produtos foi destinada à Rússia, Ucrânia, Japão, EUA, Guatemala, Índia e Indonésia.

(Colaborou Raphael Morán, da RFI)