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O que os países da América do Sul esperam de Lula, e vice-versa?

30/12/2022 09h46

Os líderes de esquerda da América Latina, especialmente os vizinhos da América do Sul, estão esperançosos com a volta de Luiz Inácio Lula da Silva e o retorno de uma política exterior do Brasil que dê prioridade à integração regional, num claro contraste com a postura de Jair Bolsonaro, que deu as costas para a vizinhança. Porém, o mapa político e a agenda da região são bem diferentes 20 anos depois de Lula ter chegado ao poder pela primeira vez.

Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

No próximo dia 24 de janeiro, em Buenos Aires, o Brasil vai retornar à Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), da qual o governo do presidente Bolsonaro retirou o país há três anos. Lula deve chegar um dia antes para se reunir com o colega argentino, Alberto Fernández, na sua primeira viagem ao exterior depois da posse, simbolizando a prioridade do novo governo brasileiro à integração regional - uma diferença fundamental com os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro.

Se Lula foi o líder ativo e carismático que apontou o caminho para o modelo regional de políticas públicas contra a desigualdade, desta vez, a sua influência deve ser mais horizontal e as suas alianças, em questões específicas.

"Vejo níveis de influência mais horizontais, em contraposição a uma hegemonia vertical que guie a discussão regional. Acredito que a aliança de Lula com os governos de esquerda vizinhos será em torno de temáticas específicas, como a do meio ambiente. Não vejo uma aliança em torno de políticas econômicas gerais", indica o cientista político peruano Carlos Meléndez, especialista em análises comparadas entre os países da América Latina.

"Ou seja: Lula será mais ativo na COP do que em Davos", ilustra Meléndez, em referência à Conferência do Clima da ONU e o Fórum Econômico Mundial

Carlos Meléndez, da universidade chilena Diego Portales, acredita que a expectativa dos governantes de esquerda com Lula seja moderada porque sabem das limitações do novo governo brasileiro -que, no passado, usou os créditos do BNDES para negócios com empresas brasileiras, numa política que desembocou em escândalos de corrupção em vários países da região.

"Lula já não é aquele patriarca ativo da esquerda latino-americana de 20 anos atrás. Retorna ao poder sem aquela política expansionista de influência através da diplomacia econômica, por onde se filtrou toda a corrupção", observa Meléndez.

Expectativas de Lula com os vizinhos

Ao mesmo tempo, Lula também deve ter moderado as suas expectativas, sabendo que seu poder de fogo é menor. Além disso, aquele dirigente a que todos cortejavam encontrará novos líderes de esquerda como o chileno Gabriel Boric e o colombiano Gustavo Petro, com os quais deve formar uma aliança que tende a ser mais simbólica do que decisiva, abordando questões da nova agenda como meio ambiente, identidade de gênero e povos indígenas.

Há 20 anos, a região se dividia entre uma esquerda pragmática, representada por Brasil, Uruguai e Chile, e uma esquerda anti-imperialista com Bolívia, Equador e Peru, liderados pela Venezuela de Hugo Chávez. Para Meléndez, essa esquerda bolivariana hoje está muito enfraquecida enquanto a pragmática ganhou um novo representante, o mexicano Andrés Manuel López Obrador, que ocupou espaço diante da ausência brasileira na região.

"Há diferentes tipos de esquerda na região que carregam determinados passivos. A esquerda bolivariana tem o passivo do autoritarismo. A esquerda petista carrega o passivo da corrupção que afeta a autoridade moral. Isso os obrigou a ficar num segundo plano enquanto outros atores disputam o papel de liderança regional, sendo López Obrador um deles", avalia o especialista.

Quanto ao que Lula pretende da região, o cientista político argentino e analista internacional Rosendo Fraga explica que Lula vai buscar ser o representante da América Latina nos foros internacionais sob a premissa de que os atores globais lideram as suas regiões.

"A liderança que o Brasil exerce não é hegemônica, mas de representatividade. E essa representatividade nos foros internacionais busca funcionar como a plataforma de inserção internacional do Brasil no contexto dos líderes globais", explica à RFI o diretor do Centro de Estudos União para a Nova Maioria.

Volta do Brasil à própria região

A mudança de governo no maior país da América do Sul simboliza o retorno do Brasil à sua própria região. Em termos de política externa, o presidente Jair Bolsonaro priorizou a relação com os Estados Unidos de Donald Trump e com governos com ideologia de direita, com alianças bilaterais e ideológicas.

"Bolsonaro deu as costas aos países vizinhos, em particular, mas, mais do que isso, deu as costas à política externa do Brasil em geral. Com Lula, essa dinâmica muda, levando o Brasil a novamente dar prioridade aos países da região", aponta Rosendo Fraga.

O especialista prevê a ação de Lula para reorganizar a União das Nações Sul-Americanas (Unasul), além da volta do Brasil à Celac, dois foros regionais dos quais o governo Bolsonaro retirou Brasília.

A data simbólica para o retorno do Brasil é 24 de janeiro, quando os presidentes da Celac se reúnem em Buenos Aires. A Argentina exerce a presidência rotativa deste foro e o presidente argentino, Alberto Fernández, vai contabilizar como um triunfo pessoal ter trazido o Brasil de volta. Um dia antes, Lula deve ter um encontro bilateral com Fernández, inaugurando as suas viagens internacionais e tendo a Argentina como primeiro destino, uma prática que Bolsonaro abandonou. 

Necessidade da Argentina

Durante três anos, Alberto Fernández não foi ao Brasil para uma bilateral com Jair Bolsonaro, mas bastou Lula vencer as eleições para, apenas horas depois, o presidente argentino viajar ao Brasil para tirar uma foto com Lula.

O amigo brasileiro representa não só um elemento fundamental para a integração regional que coloque a Argentina como principal aliada do Brasil, mas também para a projeção da Argentina no contexto internacional. 

Como exemplo, a Argentina quer integrar os BRICS, o bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Lula deve ser o melhor lobista para que a Argentina consiga esse objetivo.

A aliança entre Brasil e Argentina ficou congelada durante o governo Bolsonaro, apesar de os dois países serem o principal parceiro político e estratégico um do outro. E é essa a realidade que, a partir deste domingo, tanto o governo argentino quanto o brasileiro pretendem mudar.