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Franceses com dupla cidadania temem promessa da ultradireita para restringir seus direitos

28/06/2024 11h29

Franceses com dupla nacionalidade, de perfis diferentes e que se consideram plenamente cidadãos franceses, demonstram espanto e preocupação com a proposta de campanha do partido de extrema-direita Reunião Nacional para proibi-los de ocupar certos empregos no país. A medida, considerada discriminatória, causou mal-estar na campanha do líder Jordan Bardella, que pode ser alçado ao cargo de primeiro-ministro depois das eleições legislativas antecipadas no país.

"Sinto-me tocado como binacional e fruto da República Francesa: embora eu seja franco-maliano, devo tudo à França, não devo nada ao Mali além da minha origem familiar. Sinto-me francês acima de tudo", disse o blogueiro Samba Gassama, 37, à AFP. "Ouvir os franceses me rejeitarem é doloroso", confidencia.

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Durante a sua campanha para as eleições legislativas, o Reunião Nacional (RN), no topo das intenções de voto, afirmou querer "impedir" que os cidadãos com dupla nacionalidade ocupem "empregos extremamente sensíveis". A sigla mencionou o exemplo de russos com nacionalidade francesa, que segundo a legenda, não deveriam mais poder ocupar "posições de importância estratégica", como na área de defesa.

Em janeiro, o RN já tinha apresentado um projeto de lei neste sentido, que previa a possibilidade de proibir o acesso a empregos nas administrações públicas e nas empresas a franceses que tivessem outra cidadania além da francesa. A medida faria com quem 3,3 milhões de franceses não pudessem mais ser aceitos nestas vagas, segundo estimativas do sindicato CFDT.

Durante um debate na TV na última terça-feira (25), o primeiro-ministro Gabriel Attal acusou Jordan Bardella de hipocrisia e de ter uma representante franco-russa, Tamara Volokhova, numa posição estratégica no Parlamento Europeu - em contradição com a proposta do RN.

Olga Prokopieva, uma franco-russa que chegou à França em 1995 e é presidente da associação Rússia-Libertés, sente-se "hoje muito mais francesa do que russa". "Fiz todos os meus estudos e toda a minha vida aqui, minha filha também é binacional", explica.

Ela considera "impensável" ser privada de "alguns dos seus direitos e possibilidades". "É um retrocesso muito preocupante", diz ela. "Talvez o choque seja terrível depois das eleições legislativas, mas por enquanto prefiro não acreditar."

Regras mudaram há quase 100 anos 

Na França, a dupla nacionalidade não impede o acesso a empregos na função pública. "Existem reservas de nacionalidade em algumas áreas", explica à AFP Patrick Simon, demógrafo do Instituto Nacional de Estudos Demográficos (INED). "Os cidadãos não europeus têm limitações; existem restrições adicionais para profissões em áreas soberanas, como segurança e defesa", em particular.

"No entanto, os cidadãos com dupla nacionalidade não estão entre as pessoas sujeitas a estas restrições porque são totalmente francesas", sublinha. "O que o RN pretende estender é considerar que os cidadãos com dupla nacionalidade não são cidadãos plenos, o que é obviamente perigoso."

A mudança nas regras faria o país regredir quase 100 anos na sua história, quando, na década de 1930, havia restrições para franceses naturalizados. Na Libertação, ao fim da Segunda Guerra Mundial, a maior parte dessas leis desapareceram.

Em uma coluna publicada na terça-feira no jornal Le Monde, Mohamed Bouabdallah, diplomata de carreira com dupla nacionalidade, disse que encara "com uma grande dor o fato de a lealdade dos cidadãos com dupla nacionalidade poder ser questionada desta forma".

"Existem milhares de cidadãos com dupla nacionalidade (...) ocupando cargos de liderança no aparelho de Estado, incluindo cargos ditos 'sensíveis'", sublinha. Segundo ele, "o RN está alinhado com o regime racista de Vichy. (...) Em 2024, não serão mais os judeus - chegará a vez deles -, mas sim os árabes e os muçulmanos".

'Categorias diferentes' de franceses

Os cidadãos com dupla nacionalidade entrevistados pela reportagem - que também se dizem profundamente apegados à suas outras cidadanias - admitem um sentimento de desconforto, incompreensão e até mesmo de injustiça diante da proposta do partido de extrema direita.

"É um insulto a todos os cidadãos com dupla nacionalidade", reage Amayas Allam, 24 anos, franco-argelino e estudante de uma importante escola superior de negócios. Ele disse estar chocado com o apoio, por uma parte dos franceses, deste tipo de medida. "O que me assusta é o precedente de discriminação entre os franceses que isto criaria, que poderia abrir a porta" a outras medidas dirigidas aos cidadãos com dupla nacionalidade, como o "acesso a cuidados, serviços públicos etc.".

"Não compreendo esta abordagem do RN", afirma Nadjet Aviles, 58 anos, professora do ensino médio, que diz estar "preocupada". "É completamente estigmatizante. Eu me perguntei se deveria começar a fazer as malas, mesmo morando na França há 34 anos. Meus filhos nasceram aqui", diz ela, sem conter as lágrimas.

Rodrigo Arenas, deputado franco-chileno do partido França Insubmissa (esquerda radical), chegou à França em 1978 aos 4 anos com os pais que fugiam da ditadura de Augusto Pinochet. Para ele, esta proposta é "uma estupidez pragmática, política, estratégica, que não satisfaz nenhuma necessidade e é, ao contrário, oposta aos interesses da França", disse à AFP.

"A Assembleia Nacional, o Senado e até os ministérios às vezes são ocupados por figuras políticas de diferentes nacionalidades. É a história deste país", insiste.

Já Emily, uma jovem franco-britânica de 17 anos que vive na Bretanha, no oeste, diz que sente "medo" com a perspectiva de adoção do plano. "Já recebi comentários de pessoas que não são muito simpáticas em relação à minha nacionalidade britânica. Por enquanto é só na escola, mas se vierem de pessoas que potencialmente estiverem à frente do Estado e implementarem leis neste sentido, é muito mais sério", avalia.

A cantora franco-maliana Manda Sira, 30 anos, se emociona com o que considera uma proposta "lunática". "É uma forma de criar sempre diferenças e desigualdades quando, pelo contrário, lutamos para avançar e apagá-las", critica a artista, que "está alarmada" com a ideia de uma "classificação dos franceses que têm mais valor ou direitos".

Estes cidadãos com dupla nacionalidade esperam que o Conselho Constitucional francês se oponha à proposta, caso venha a ser aprovada.

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