'Divido banheiro com 600 pessoas', relata brasileira refugiada em escola no sul do Líbano
Nesta terça-feira (8), os trabalhadores humanitários da ONU pediram uma ação urgente para interromper a escalada no Líbano e evitar que o conflito "se transforme na mesma catástrofe" observada em Gaza. Os bombardeios israelenses, principalmente no sul do país e nos subúrbios do sul de Beirute, já mataram cerca de 1.100 pessoas e deslocaram mais de um milhão de outras, em menos de duas semanas. Brasileiros radicados no Líbano hesitam entre voltar ou ficar no "país do Cedro", como relatam à RFI.
O segundo avião com repatriados brasileiros pousou nesta terça-feira (8) em São Paulo, com 277 passageiros a bordo, entre eles 49 crianças. A aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB) também transportou três pets. Os brasileiros que ainda continuam no Líbano começaram a receber nesta terça a convocação para o terceiro voo de repatriamento. Ao todo, cerca de três mil brasileiros manifestaram a intenção de deixar o país, segundo informações oficiais. A FAB prevê o resgate de 500 brasileiros por semana e a prioridade será para os brasileiros que não são residentes no Líbano.
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Luiza* conta que vive no país há 24 anos. "Eu moro bem na fronteira. Já faz 10 meses que estou fora de casa. A minha situação não é nada boa, porque tive que sair da minha casa somente com uma mala, com algumas roupas. A situação é a mesma onde meu marido trabalha, na fronteira. Então fechou todas as portas", relatou a brasileira à RFI no dia 6 de agosto, quando a escalada entre Israel e o Hezbollah começava a mostrar a que vinha, prenunciando um aumento de tensões significativo na região.
Em entrevista desta terça-feira (8), Luiza mostrou à reportagem, através de um vídeo, o exíguo espaço onde mora agora, numa escola no sul do Líbano, esvaziada para acolher as centenas de refugiados. "Antes eu morava numa casa de três andares, com quatro banheiros. Agora divido o mesmo banheiro com cerca de 600 pessoas", conta Julia, que é casada com um libanês, pai de suas duas filhas. "Eu não vou para o Brasil, minhas filhas não querem ir", conta ela. "Perdi cinco quilos em quinze dias", relata Luiza, que antes vivia sob o estresse dos aviões supersônicos israelenses, que usam o artifício de estourar a barreira do som, criando grandes estrondos que aterrorizam a população local.
"Eu preciso de ajuda", diz a brasileira. "Minhas filhas eram as mais inteligentes da escola e agora estão perdendo seu futuro", afirma a mãe de família, que manifesta seu desejo que ir para a Europa. "Nossos passaportes estão todos em dia. Com meu passaporte brasileiro posso ficar três meses legalmente no continente europeu, o problema é meu marido que só tem o libanês", relata. "Não quero ir para o Brasil porque meus pais faleceram há anos e não tenho vontade de começar a vida por lá", afirma Luiza. "Na Europa há mais oportunidades para minhas filhas", admite.
A bordo do avião da FAB
Já a revisora e tradutora líbano-brasileira Nessryn Khalaf, 28, conta como foi estar a bordo do primeiro voo de repatriamento da FAB. "Eu tenho dupla nacionalidade. Eu sou brasileira e libanesa. O meu pai é 100% libanês", explica. "Eu viajei com a minha mãe, Nádia, que tem 54 anos e é cardíaca. Por isso ela estava na lista preferencial, e também com a minha irmã de 18 anos, Amanda, e a nossa gatinha, a Lili", detalhou à RFI.
Tivemos que fazer isso em 15 minutos, meu pai teve que carregar minha avó que tem câncer e já não anda mais, e entramos no carro. Dois minutos depois, Israel realmente bombardeou nosso bairro e o barulho era horrível, parece que a bomba tinha caído na nossa cabeça.
"Eu trabalhava na Universidade Americana, onde era revisora e tradutora. Mas infelizmente, por causa da situação, eu não estava mais trabalhando, porque tudo fechou. Os escritórios fecharam, as universidades fecharam. Por enquanto não tem aula", testemunha a brasileira. "Há dez dias tivemos que fugir de casa porque estavam bombardeando muito perto do nosso bairro. Era de madrugada, por volta de 4h da manhã. E, no entanto, moramos fora do Dahiye, a região do Líbano que é bombardeada diariamente.Nunca achamos que as bombas chegariam tão perto. Minha mãe estava desesperada", detalha.
"Eu estava mentindo para mim mesma, não queria sair da minha casa. É muito difícil nesse momento decidir o que é essencial, o que vai e o que fica para ser bombardeado", diz Khalaf. "Tivemos que fazer isso em 15 minutos", relata. "Meu pai teve que carregar minha avó que tem câncer e já não anda mais, e entramos no carro. Dois minutos depois, Israel realmente bombardeou nosso bairro e o barulho era horrível, parece que a bomba tinha caído na nossa cabeça. Na verdade, dentro de casa já tremia tudo. A gente via os mísseis passando da varanda", conta.
"Já tínhamos preenchido o formulário [de repatriamento] e todo dia a gente aguardava a mensagem da embaixada. Quando chegou, ficamos sabendo que o embarque seria no 4 de outubro. Recebemos essa mensagem às 4h da manhã, falando que a gente tinha que estar na embaixada [brasileira] ao meio-dia. Como estávamos longe de Beirute, entramos em pânico; às 10h da manhã ficamos sabendo que o voo havia sido cancelado e que o novo voo seria no dia 5. Recomeçamos então todo o processo", explica.
"Foi caótico, muita gente querendo sair do Líbano, o aeroporto estava cheio de gente de várias nacionalidades. Chegamos no Brasil na manhã de domingo. O presidente Lula estava lá e recebeu a gente. Eu e minha família estamos realmente muito gratos com a ajuda do governo brasileiro, que o presidente agilizou e tirou a gente de lá sem custo, porque não é a mesma coisa com outros países. Há estrangeiros pagando para serem repatriados, como é o caso dos Estados Unidos, que fornecem apenas um empréstimo para você adquirir a sua própria passagem", ressalta. Nessryn Khalaf contou ainda que, chegando no Brasil, foi recebida junto com sua família por paramédicos, psicólogos e até veterinários para os pets. "Muitos repatriados não falam português, só árabe, e o fato dos profissionais serem bilíngues ajudou muito na comunicação", disse.
O serviço consular do Itamaraty dedicado à "Operação Raízes do Cedro", que tem como objetivo repatriar brasileiros que se encontram no Líbano, divulgou nesta terça-feira (8) um comunicado avisando que não é possível prever quantos voos de repatriação serão realizados. Brasília recomenda, portanto, que os brasileiros busquem deixar o Líbano por seus próprios meios e avisa que o aeroporto internacional de Beirute continua operando, com voos regulares, principalmente pela companhia aérea Middle East Airlines.
O artista visual e cineasta Maurício Yazbek mudou-se para o Líbano em 2017, depois de realizar um curta-metragem em São Paulo sobre suas origens libanesas. "A casa que eu moro é uma comunidade de artistas, num bairro cristão, nas montanhas", conta. "Estamos protegidos, mas ouvimos quando as explosões são intensas, como quando explodiram o arsenal militar do Hezbollah uns dias atrás, porque a explosão foi gigantesca", relata o artista, que participa de um coletivo financiado por ajuda estrangeira para dar apoio aos brasileiros atingidos pela escalada militar israelense no Líbano.
"O objetivo é eu fazer o que for preciso para pelo menos minimizar os danos, porque o governo não tem capacidade de lidar com o problema", afirma Yazbek. "Muita coisa horrível pode acontecer ainda. Essa máquina de guerra não está parando e não vai parar tão cedo", acredita. "Há milhares de refugiados internos. O Líbano é um país de máfias religiosas que dividem territórios e ocupam os territórios com milícias", denuncia.
"Eu não pretendo voltar para lugar nenhum, o mundo para mim é um lugar só. Eu não sou uma pessoa que acredita em fronteira. Tenho saudade da minha família, do meu pai, da minha filha, e meu plano é ainda ficar uns dois meses por aqui, enquanto ainda sinto que a situação é segura, enquanto não há uma guerrilha interna, ou uma guerra civil sendo imposta", afirma o artista brasileiro.
(*alguns nomes foram trocados a pedido dos entrevistados)