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O santo cúmplice dos violadores sexuais

Fiel carrega imagem de João Paulo 2º durante cerimônia de canonização na praça de São Pedro, no Vaticano - 27.abr.2014 - Remo Casilli/Reuters
Fiel carrega imagem de João Paulo 2º durante cerimônia de canonização na praça de São Pedro, no Vaticano Imagem: 27.abr.2014 - Remo Casilli/Reuters

01/05/2014 00h01

A canonização do papa João Paulo 2º é um insulto e uma afronta aos milhares de vítimas de abuso sexual por parte de sacerdotes católicos durante seu papado (1978-2005). Esse novo "santo" escondeu e protegeu violadores sexuais de crianças dentro da Igreja Católica. Poderia ter evitado muitos crimes, mas decidiu não o fazer.

É muito difícil entender a motivação do novo papa Francisco ao consumar a cerimônia de canonização de João Paulo 2º, no dia 27 de abril. Tornar santo um cúmplice de tantos crimes não tem nada de revolucionário. Nesse assunto o papa Francisco foi muito brando; não se atreveu a passar das palavras a atos concretos.

Não basta que há poucos dias o papa Francisco tenha assumido a responsabilidade por essa terrível crise moral dentro da igreja. Em uma reunião recente no Vaticano, ele disse: "Devo assumir a responsabilidade e pedir perdão pelos danos que eles causaram com o abuso sexual de crianças. A igreja está ciente desse dano. É seu próprio dano pessoal e moral, mas são homens da igreja". O que lhe faltou dizer foi que entregaria às autoridades civis os criminosos sexuais que ainda existem vestidos de batina e que deixará de proteger criminosos. Não se atreveu. Também não se atreveu a dizer a verdade sobre João Paulo 2º.

João Paulo 2º é santificado por, supostamente, realizar dois milagres: curar de Parkinson uma freira francesa e de um aneurisma cerebral uma costarriquenha. Elas dizem que rezaram e que ele, já morto, as curou.

É pena que em vida João Paulo 2º não tenha se preocupado tanto com as crianças que foram violadas por seu amigo e confidente Marcial Maciel, o fundador dos Legionários de Cristo. Ou com outros milhares de menores que foram abusados sexualmente durante seus 27 anos de pontificado.

Como pode ser santo alguém que permite isso?

O papa Francisco teria sido verdadeiramente revolucionário se fosse coerente com suas palavras --"a igreja está ciente desse dano"-- e barrasse a canonização do principal cúmplice desses crimes. É impossível supor que a política institucional da igreja de proteger e encobrir sacerdotes violadores tenha ocorrido às costas de João Paulo 2º.

Além das centenas de testemunhos das vítimas, há inúmeras evidências desses fatos. A Prensa Asociada relatou que desde 1948 o Vaticano já tinha denúncias contra Marcial Maciel. O ex-sacerdote Alberto Athie me disse, em uma entrevista para a Univision, que já em 1999 ele havia denunciado Maciel à Santa Sé, mas que não lhe fizeram nada por causa de sua proximidade com o papa João Paulo 2º. E um relatório da ONU em fevereiro critica a política de encobrimento da Igreja Católica e pede que abra seus arquivos e entregue os padres pedófilos às autoridades civis.

João Paulo 2º claramente se pôs do lado dos violadores, e não das vítimas. Entendo que rezar é uma questão de fé, algo que claramente não tenho. Mas não posso imaginar que alguém reze para uma pessoa que, indiretamente, permitiu que as vidas de tantas crianças fossem destruídas.

Sim, João Paulo 2º era muito carismático, ampliou o alcance da igreja e contribuiu para a queda do comunismo. Mas um dos temas centrais de seu papado --a proteção de crianças do abuso sexual-- foi um verdadeiro e vergonhoso fracasso.

Quero crer que o papa Francisco conhece de verdade o terrível legado de abuso sexual deixado por João Paulo 2º --há milhares de casos e provas penais-- e que preferiu não enfrentar por enquanto essa polêmica.

Claro, no Vaticano também há politicagem. Embora eu suspeite que cedo ou tarde ele será atingido por sua evidente omissão nesse assunto crucial. O papa Francisco, quero crer, jamais manteria o silêncio criminoso que João Paulo 2º guardou.

A infalibilidade papal é uma piada. João Paulo 2º se equivocou ao proteger criminosos, e o papa Francisco também, ao torná-lo santo. Santo? Não.

João Paulo 2º será lembrado pelos milhares de vítimas de abuso por parte de sacerdotes como o santo cúmplice dos violadores sexuais.