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A morte do centro do Partido Trabalhista do Reino Unido

O Partido Trabalhista, principal oposição ao governo conservador de David Cameron, anunciou no último sábado (12) o nome de Jeremy Corbyn, 66, como seu novo líder no Parlamento britânico. Em tese, ele é o candidato natural a primeiro-ministro nas eleições de 2020 - Stefan Wermuth/Reuters
O Partido Trabalhista, principal oposição ao governo conservador de David Cameron, anunciou no último sábado (12) o nome de Jeremy Corbyn, 66, como seu novo líder no Parlamento britânico. Em tese, ele é o candidato natural a primeiro-ministro nas eleições de 2020 Imagem: Stefan Wermuth/Reuters

15/09/2015 00h01

Jeremy Corbyn, um antigo dissidente esquerdista, obteve uma vitória atordoante na disputa pela liderança do Partido Trabalhista do Reino Unido. Os analistas políticos dizem que isso representa uma catástrofe para as perspectivas eleitorais dos trabalhistas. Eles podem estar certos, apesar de eu não ser a única pessoa se perguntando por que comentaristas que fracassaram completamente em prever o fenômeno Corbyn têm tanta confiança em suas análises do que isso significa.

Mas não vou tentar entrar nesse jogo. O que pretendo fazer é falar sobre um elemento crucial do pano de fundo para a ascensão de Corbyn –-a implosão dos trabalhistas moderados. Na política econômica, em particular, o fato notável a respeito da disputa pela liderança foi que todos os candidatos fora Corbyn basicamente apoiaram as políticas de austeridade do governo conservador.

Pior, todos eles aceitavam implicitamente a falsa justificativa para essas políticas, na prática se declarando culpados de crimes políticos que, na verdade, os trabalhistas não cometeram. Se quiser uma analogia americana, é como se todos os principais candidatos democratas à indicação do partido à presidência em 2004 tivessem declarado: "Nós somos fracos em segurança nacional e o 11 de Setembro foi nossa culpa". Causaria surpresa se os eleitores das primárias democratas se voltassem para um candidato que rejeitasse essa mentira, independente de que posições ele ou ela defendesse?

No caso britânico, as acusações falsas contra os trabalhistas envolvem a política fiscal, especificamente as alegações de que os governos trabalhistas que governaram o Reino Unido de 1997 a 2010 gastaram muito além da receita, criando um déficit e uma crise de dívida que causou a crise econômica mais ampla. A crise fiscal, por sua vez, supostamente não deixou alternativa do que os cortes severos de gastos, especialmente os gastos que ajudam os pobres.

É preciso reconhecer que essas alegações foram pegas e repetidas por quase toda a mídia de notícias britânica. Não se trata apenas da mídia ter fracassado em submeter as alegações conservadoras a uma análise séria, mas sim de tê-las repetido como sendo fatos. E é algo impressionante para se observar –-porque cada elemento dessa narrativa convencional é completamente falso.

O último governo trabalhista foi fiscalmente irresponsável? O Reino Unido tinha um déficit orçamentário modesto às vésperas da crise econômica de 2008, mas, como percentual do PIB, não era muito alto –-aproximadamente o mesmo que o déficit orçamentário americano na mesma época. A dívida do governo britânica estava menor, como percentual do PIB, do que quando os trabalhistas chegaram ao poder uma década antes, e mais baixa do que a de qualquer outra grande economia avançada, exceto o Canadá.

Agora às vezes é alegado que a verdadeira posição fiscal era muito pior do que os números do déficit indicavam, porque a economia britânica estava inflada por uma bolha insustentável que aumentava as receitas. Mas ninguém alegou isso na época. Pelo contrário, avaliações independentes, como a do Fundo Monetário Internacional, por exemplo, sugeriam que poderia ser uma boa ideia reduzir um pouco o déficit, mas ninguém via sinal de um governo esbanjando dinheiro muito além de sua receita.

É  verdade que os déficits britânicos subiram depois de 2008, mas isso foi em consequência da crise, não uma causa. A dívida também subiu, mas ainda assim muito abaixo dos níveis que predominaram durante grande parte da história moderna do Reino Unido. E nunca houve nenhum indício de que os investidores, diferente dos políticos, estavam preocupados com a solvência do Reino Unido: as taxas de juros sobre a dívida britânica permaneceram muito baixas. Isso significa tanto que a suposta crise fiscal nunca criou qualquer problema econômico de fato e que nunca houve qualquer necessidade de adoção de austeridade.

Resumindo, toda narrativa sobre a culpa dos trabalhistas pela crise econômica e a urgência da austeridade é um disparate. Mas é um disparate que foi repetido de forma consistente pela mídia britânica como sendo fato. E todos os rivais de Corbyn pela liderança trabalhista acolheram esse disparate convencional, na prática aceitando o argumento conservador de que o partido deles fez um péssimo trabalho na gestão da economia, o que simplesmente não é verdade. Assim, como eu disse, o triunfo de Corbyn não é tão surpreendente, dada a determinação dos políticos trabalhistas moderados de aceitarem falsas alegações de má gestão.

Isso ainda deixa a questão do motivo para os trabalhistas moderados terem se mostrado tão infelizes. Considere a comparação com os Estados Unidos, onde as críticas ao déficit dominaram o discurso em Washington em 2010 e 2011, mas nunca conseguiram ditar os termos de debate político, e onde os principais democratas não soam como uma versão "lite" dos republicanos. Parte da resposta é que a mídia de notícias americana não se mostrou tão comprometida com as fantasias fiscais, apesar de isso fazer a questão dar um passo para trás.

Além disso, o establishment político trabalhista parecer carecer de convicção, por motivos que não entendo plenamente. E isso significa que a vitória de Corbyn não se trata de uma guinada repentina à esquerda por parte daqueles que apoiam os trabalhistas. Trata-se principalmente do estranho e triste colapso moral e intelectual dos trabalhistas moderados.