Longe dos confrontos que amedrontaram o Rio de Janeiro, bondinho, petiscos e uma vista privilegiada das praias cariocas. Pavão-Pavãozinho está fora do mapa turístico da cidade, mas quer corrigir a ausência até 2016. Até lá, a favela, que pretende ser a anfitriã das Olimpíadas, com direito a serviço de primeira nas biroscas locais, prepara um passeio para fazer concorrência à beleza do circuito já conhecido internacionalmente.
"O plano é esse", diz Dalva, dona da primeira birosca encontrada na comunidade, encarnada nas vielas estreitas do morro. Ela vive de tocar o pequeno bar criado pelo marido, que morreu em 1991, deixando o negócio para ela e as três filhas. Moradora há 25 anos do conjunto de favelas, do qual também faz parte o Cantagalo, Dalva testemunhou os avanços da favela.
Biroscas sonham com as Olimpíadas no Rio
Dalva é dona da primeira birosca encontrada na comunidade, encarnada nas vielas estreitas do morro. "Aqui era tudo de 'tauba', as escadas, todas de barro. Corrimão chegou agora", diz ela, que agora aposta em novas mudanças com o evento
"Aqui era tudo de 'tauba', as escadas, todas de barro. Corrimão chegou agora", diz a vendedora, que aposta em novas mudanças com o evento mundial.
São ao menos 40 biroscas parecidas com as de Dalva que podem servir de parada aos turistas que se interessarem pelos contrastes da comunidade.
A longa subidaAs "facilidades" que devem servir aos turistas, no entanto, são dificuldades para os moradores. Para chegar à favela, entre os bairros nobres de Ipanema e Copacabana, na zona sul, são 10 minutos de carro do litoral. Já para subir ao topo do morro, são pelo menos 40 minutos a pé, com o "conforto" de escadarias asfaltadas, mais de 500 degraus, e caminhos iluminados à noite.
"Manda um trem para fortalecer aqui", pede dona Maria, 60, freguesa de Dalva que ganha um copo de vinho no balcão. "Aqui, só ando de proteção no joelho", conta a moradora, que sobe e desce o morro todos os dias.
Para subir o Pavão-Pavãozinho, existem duas maneiras. Uma, é andar a pé por mais de 500 degraus até o topo. Outra, é cortar a metade do caminho por um bondinho, que tem cinco estações
"Tem que se ganhar em alguma coisa", diz Valdete, proprietária de um dos pontos com melhor vista para orla de Copacabana -uma casa quase no topo do Pavão, de onde se vê o Pão de Açúcar. "É uma academia forçada", diz a moradora.
Ela abre a varanda aos turistas que já realizam passeios no local. Para chegar lá, é preciso pegar um bondinho. A espécie de "gaiola" segue lotada por cinco estações e serve a comunidade, de 28 mil habitantes, como um meio de transporte mais do que necessário. Depois, onde o bonde não alcança, mais escadarias.
Segundo Valdete, que trabalha junto ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) do governo federal, a favela, porém, não está interessada em intervenções estruturais para receber os turistas. "A ideia do governo para fazer as melhorias é abrir ruas, como se ruas largas trouxessem paz, mas isso só vai destruir a comunidade", defende.
Morro com tráfico e pazA reclamação contra as obras do PAC aumenta entre os moradores das partes mais altas do morro. É lá que ainda sobrevivem as últimas casas que ainda não se transformaram em mini-prédios, bloqueando a visão do mar na favela que cresce, hoje, apenas verticalmente. Além disso, moradores dizem que o local é uma ilha de paz em meio a tantos conflitos entre traficantes na cidade.
A comunidade ainda é ocupada pelo Comando Vermelho. Na caminhada, focos da presença dos traficantes. Motociclistas que vigiam a favela e observam os turistas, mas, ao menos na presença do
UOL Notícias, não intervieram.
"Aqui é muito difícil ter tiroteio. Quando se vê na televisão que teve alguma operação, é do lado do Cantagalo", diz Valdete. "É uma favela da zona sul e é por isso que o governo não faz nada muito brusco aqui."
Salada culturalSeguindo pelas escadarias, mais meia hora de caminhada, chega-se ao "Vetinan", a região mais alta da favela. O apelido surgiu nos anos 70 quando só havia casas de madeira no morro. Quando alguns recém-chegados traziam lonas, ouviam dos já instalados: "Parece que está vindo da guerra." São eles que hoje ocupam a área.
Assim se fazem as distinções do morro, dividido entre os descendentes dos negros, mas já ocupado, em sua maioria, por nordestinos migrantes. Na birosca mais alta da favela, Antonia de Maria Alves, 42, trouxe do Ceará o som que contamina seu estabelecimento, o forró. Junto com o marido, José, ela vende o refrigerante mais caro da região -R$ 6 a garrafa de 2 litros.
"Às vezes aparece um gringo", conta ela, que também sofre com as escadas. "O ruim mesmo daqui é isso, porque a gente tem essa vista, tem árvores, tranquilidade para morar. Aqui é difícil ter assalto. Mas a mercadoria que vem lá debaixo, para abastecer o comércio, é muito cara, porque o transporte é a pé. Por isso que, se chegar turista aqui, vai pagar caro o refrigerante", adianta, cumprimentando o marido, que chega com as provisões do dia -cerca de 10 kg de mantimentos carregados nas costas, desde o bairro.
Outro dono de birosca promete atender o turista com sua especialidade - pão de dois, com peixe. O também cearense Francisco Cesar Sabino Rodrigues, 40, tempera o arroz, o feijão branco, mistura com carne seca e "está pronto". Tem ainda caldo de mocotó, galinha caipira e toda uma série de aperitivos. "Se precisar falar inglês, eu aprendo."
Especial sobre os confrontos no Rio
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Policiais confrontam traficantes durante operação na favela Vila Cruzeiro, no bairro da Penha, no Rio de Janeiro; mais de 40 pessoas morreram nos últimos confrontos em favelas da zona norte, que tiveram início no dia 17 de outubro
A comunidade já tem inclusive um intérprete, para ensinar aos comerciantes pelo menos 20 frases em inglês até o ano das Olimpíadas: Cristiano, 21, formado na escola local, o Solar Meninos de Luz. "Eu já vou começar a fazer isso a partir de agora. Assim, dá tempo de ficar tinindo até lá."
Quem destaca o estudante de engenharia para a empreitada é o empresário e fotógrafo Daniel Plá, que já organizou um Réveillon na comunidade em 2007. "Tenho certeza que será um passeio que vai valer a pena justamente pelos inúmeros contrastes, a cultura, as pessoas. Esse lugar é lindo, rico, e o turista vai gostar muito", afirma.
O "topo"Já no topo da favela, a situação se inverte, e dificilmente deve melhorar sem investimento público.
Ruth, 61, é dona da última casa da comunidade, a mais alta. Da janela, tem uma visão panorâmica do que é o Rio de Janeiro. O bondinho, o Pão de Açúcar, parte da Lagoa Rodrigo de Freitas. Mas o retrato é o do descaso.
"A vista é boa, mas subir é com peso. É todo mundo desempregado. Outro dia, a casa começou a desabar", diz ela, mostrando os fundos do barraco, o único de pau a pique que ainda resta no morro.
"Me deram um papel, da Defesa Civil, me falando que eu tenho que desocupar. Eu até queria ir lá para baixo. Se eu pudesse, era melhor. Mas ninguém me dá outra casa, eu vou ficando", diz Ruth, que aos nove anos de idade se "casou" com o marido de 19.
Ela e Francisco, conhecido como "Chico Rola", estão juntos desde então. Têm três filhos, que também moram no topo do Pavão. Uma está doente, e não recebe tratamento. Estão resignados. "A zona sul nunca se interessou por isso aqui."