Mortes de policiais causam menos comoção?
Um policial militar havia morrido dias antes, queimado vivo por criminosos em uma favela da zona norte do Rio. Em tom de desabafo, o secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, discursou na última quinta (22): "eu gostaria que a sociedade visse isso com indignação e tristeza. Parece que é o trabalho dele; que ele é policial e ele tem que morrer". Foi a mais recente de uma série de queixas públicas de autoridades sobre a falta de comoção com a morte de agentes de segurança.
Mas a reclamação do secretário é pertinente? A morte de policiais realmente causa menos indignação que a de outras vítimas da violência? O assunto é complexo e muitas vezes tratado de forma passional. Para aprofundar o debate, o UOL ouviu membros de organizações da sociedade civil, um especialista em segurança pública, um representante de PMs e a viúva de um policial morto, que também trabalha na corporação.
A PM fluminense vive um momento delicado: 2015 já é o ano com mais policiais militares mortos em serviço no Rio dos últimos três. Até setembro, em média, dois policiais morreram a cada mês, segundo o ISP (Instituto de Segurança Pública). Somados dois homicídios que ocorreram em outubro, são pelo menos 20 até agora. No ano passado, houve 18 mortes do tipo; e 16 em 2013.
As mortes cresceram também entre as vítimas de oficiais militares e civis. Os 517 homicídios decorrentes de intervenções policiais registrados entre janeiro e setembro deste ano já superam o número de casos de todo o ano de 2013. A quantidade é 31% maior que o mesmo período de 2014.
"Valores estão invertidos"
A noite de 11 de setembro de 2014 não sai da memória de Bianca Neves Ferreira da Silva, 31. Capitã da PM e chefe da secretaria da Coordenadoria de Polícia Pacificadora, ela soube naquele dia que o marido, o capitão Uanderson Manoel da Silva, 34, comandante de uma das UPPs do Complexo do Alemão, havia sido baleado no tórax durante confronto com traficantes da comunidade Nova Brasília. Ele não resistiu aos ferimentos. Meses depois, ficou comprovado que o tiro que matou o oficial partiu de outro PM.
A viúva lamenta que tanto a morte de Uanderson quanto a de outros colegas não tenha gerado indignação pública. "Eu acho que a nossa sociedade está doente. Os valores estão invertidos. Quando um vulnerável morre o clamor é bem maior", declara. Bianca reclama ainda da falta de atitude por parte do governo. "Se o próprio governo não se indigna de verdade que os seus próprios funcionários estarem morrendo, que dirá a população?"
Apesar de receber "100% de apoio da PM", ela diz que nunca foi procurada pelo governador Luiz Fernando Pezão, que já se encontrou com familiares de pessoas mortas em operações policiais, por exemplo. "Nunca recebi nenhuma indenização e vou entrar na Justiça. Isso é um direito nosso, da nossa filha de nove anos, que vai crescer sem um pai. E ela já está sofrendo problemas psicológicos. Tem pânico que eu também morra", afirmou. "Mas a família de A, B ou C tem indenização, ganha nome de rua", disse, em referência ao ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, morto por PMs da UPP da Rocinha em 2013.
"Com que motivação um policial vai sair de casa para arriscar a própria vida sabendo que ele não é valorizado nem pela sociedade nem pelo governo?", questionou a policial.
Polarização de narrativas
Diretor do Observatório de Favelas e professor da Universidade Federal Fluminense, Jaílson de Souza e Silva discorda que a morte de policiais seja desvalorizada. "A sociedade despreza, em geral, a vida dos jovens, pobres, de favelas ou periferias. E também despreza os policiais como agentes do Estado, da repressão, considerando que no seu papel há a naturalização de que ele morra por conta da estratégia de combate ao tráfico de drogas", declara.
"Nós temos que lamentar todas essas mortes porque elas não são simplesmente consequência da truculência ou maldade do policial ou do criminoso. São frutos de uma política equivocada por parte do Estado que privilegia o enfrentamento de determinado tipo de criminalidade e não a defesa da segurança pública para todos os moradores, inclusive para os policiais", complementa. O professor considera "perverso" o raciocínio de quem trata a vida do policial como se ela valesse mais do que outra.
Para o assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, Alexandre Ciconello, declarações com a de Beltrame são irresponsáveis, porque alimentam uma polarização na narrativa do confronto da guerra. "Confunde uma discussão que é complexa. Qualquer vida perdida é lamentável", diz Ciconello. "Quando um policial é morto em serviço, de quem é a responsabilidade por ter colocado a vida desse profissional em risco? Quem tem que ser cobrado é o Estado", comenta.
Ciconello aponta ainda que a comoção varia conforme as circunstâncias dessas mortes. "Quando se trata de uma criança assassinada quando estava brincando com um celular na porta de casa ou de um policial que é torturado e arrastado por um cavalo, lógico que provoca uma grande comoção, porque são absurdos".
O advogado João Tancredo, presidente do DDH (Instituto de Defensores de Direitos Humanos), é categórico ao afirmar que não se pode comparar mortes causadas por criminosos e por agentes da lei. "Existe uma diferença fundamental entre a pessoa que está trabalhando no tráfico de drogas, que evidentemente está tendo uma conduta contra a lei, e o policial que vai para dentro de uma comunidade e comete atos contra a lei, porque ele ali seria o fiscalizador e o aplicador da lei. Não podemos admitir isso", afirma.
"Quando um policial morre é horrível, temos que lamentar e nos manifestar contra isso. Mas o que mais você vai fazer? Uma manifestação contra o marginal? Chega a ser risível", complementa Tancredo. "O que a gente entende é que os governos estaduais inventaram uma guerra contra os moradores de periferia para justificar alguns crimes, para dizer que estão combatendo o crime. Essa guerra é inventada para dizer que está morrendo gente. No Brasil, morre-se muito e mata-se muito, os policiais também".
Polícia vulnerável
Presidente da Aspra (Associação de Praças da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros do Rio), o subtenente Vanderlei Ribeiro classifica como de "de total vulnerabilidade" a atual situação do policial militar no Rio de Janeiro. "Em determinadas áreas, o PM vive uma realidade extremamente delicada, inclusive nas UPPs. Ele se vê cercado".
Segundo o policial, a ausência do Estado é um dos fatores que contribui para a revolta de moradores contra os agentes de segurança. "Não tem os serviços públicos básicos e só chega a polícia para importunar. E a comunidade adere à determinação do tráfico e faz manifestações contra os policiais", afirma.
Para Paulo Storani, antropólogo e ex-integrante do Bope (Batalhão de Operações Especiais), as condições precárias de trabalho e o sofrimento físico e psicológico contribuem para ações policiais "com o uso de mais força e violência do que o necessário".
Enquanto isso, opina Storani, "a sociedade está completamente alheia à instituição policial". "Quando você precisa dela, você quer do seu lado. Quando não precisa, quer o mais longe possível. Não valoriza, não apoia e dá mais importância aos seus erros do que aos seus acertos", declara.
* Colaborou Hanrrikson de Andrade
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