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Aliados americanos pagaram combatentes da Al Qaeda para que saíssem do Iêmen

Integrante de força de segurança leal ao governo dos Emirados Árabes durante repressão contra rebeldes houthis em junho - Saleh Al-Obeidi/AFP
Integrante de força de segurança leal ao governo dos Emirados Árabes durante repressão contra rebeldes houthis em junho Imagem: Saleh Al-Obeidi/AFP

Da Associated Press

07/08/2018 04h00

Uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita e apoiada pelos Estados Unidos fez acordos secretos com combatentes da Al Qaeda, pagando alguns para que deixassem as principais cidades tomadas por militantes no Iêmen e permitindo que outros se retirassem com armas, equipamentos e maços de dinheiro saqueados. Outras centenas de militantes foram recrutadas para se juntarem à própria coalizão.

Nos últimos dois anos, a coalizão alegou diversas vezes ter conquistado vitórias decisivas que forçaram a retirada de militantes da Al Qaeda de suas fortalezas e destruíram sua capacidade de atacar o Ocidente. No entanto, o que eles não revelaram foi que muitas dessas conquistas vieram sem disparar um tiro.

Os compromissos e alianças permitiram que os militantes da Al Qaeda sobrevivessem para continuar a lutar e correram o risco de fortalecer o ramo mais perigoso da rede terrorista que realizou os ataques do 11 de Setembro.

Participantes-chave nos pactos disseram que os EUA estavam cientes dos arranjos e decidiram não atacar com drones quando os combatentes da Al Qaeda se retiraram, sem terem a necessidade de se esconder.

A equipe de reportagem da AP no Iêmen foi responsável por essa descoberta, feita a partir de entrevistas com dezenas de autoridades, incluindo oficiais de segurança iemenitas, comandantes de milícias, mediadores tribais e quatro membros da divisão da Al Qaeda. Quase todas as fontes falaram sob condição de anonimato, temendo represálias. Facções apoiadas pelos Emirados Árabes Unidos, como a maioria dos grupos armados no Iêmen, foram acusadas de sequestrar ou matar seus críticos.

Os acordos descobertos pela AP refletem os interesses contraditórios das duas guerras travadas simultaneamente neste país do sudoeste da Península Arábica.

Em um dos conflitos, os EUA estão trabalhando com seus aliados árabes --particularmente os Emirados Árabes Unidos-- com o objetivo de eliminar os extremistas conhecidos como Al Qaeda na Península Arábica, ou AQAP. Mas a missão maior é vencer a guerra civil contra os houthis, rebeldes xiitas apoiados pelo Irã. Nessa luta, a Al Qaeda está efetivamente do mesmo lado da coalizão e, por extensão, dos Estados Unidos.

Os EUA enviaram à coalizão bilhões de dólares em armas para combater os houthis, e jatos americanos fornecem reabastecimento aéreo para aviões de guerra da coalizão. Os EUA, no entanto, não financiam a coalizão e não há evidências de que o dinheiro americano tenha ido para os militantes da AQAP.

“Elementos das Forças Armadas dos EUA estão claramente cientes de que muito do que os EUA estão fazendo no Iêmen está ajudando a AQAP e há muita apreensão sobre isso”, disse Michael Horton, um membro da Jamestown Foundation, um grupo de análise norte-americano que acompanha o terrorismo.

Mas apoiar aliados contra "o que os EUA consideram como expansionismo iraniano tem prioridade sobre o combate à AQAP e até mesmo sobre a estabilidade do Iêmen", disse Horton.

A AP descobriu que os comandantes das milícias, financiados pela coalizão, recrutam ativamente militantes da Al Qaeda --considerados combatentes excepcionais-- ou combatentes que, até muito recentemente, eram membros do grupo.

Abdel-Sattar al-Shamiri, um ex-assessor do governador da província de Taiz, disse que reconhece a presença da Al Qaeda desde o início e pediu aos comandantes para não recrutassem membros.

“A resposta deles foi: 'Vamos nos unir com o diabo diante dos houthis'”, disse al-Shamiri.

Um comandante da milícia em Taiz, conhecido como Aboul Abbas, foi colocado na lista de terrorismo dos EUA por causa de seus laços com a Al Qaeda, no ano passado. Mas ele continua recebendo dinheiro dos Emirados Árabes Unidos por causa de sua milícia, disse Adel al-Ezzi, seu assessor, à AP. Al-Ezzi rejeitou a acusação dos EUA, negando quaisquer ligações terroristas. Logo após seus comentários, a AP o viu se encontrar com um conhecido comandante da AQAP.

Outro comandante de Taiz, Adnan Rouzek, que recentemente recebeu US$ 12 milhões do presidente do Iêmen por sua força de combate, tem uma figura conhecida da Al Qaeda como seu assessor mais próximo.

Os EUA estão cientes de uma presença da Al Qaeda entre as fileiras anti-houthis, disse um alto funcionário americano a repórteres no Cairo no início deste ano. Como os membros da coalizão apoiam as milícias com comandantes islâmicos linha-dura, “é muito fácil para a Al Qaeda insinuar-se na mistura”, disse o funcionário, falando sob a condição de anonimato.

O Pentágono negou qualquer cumplicidade com a Al Qaeda.

"Desde o início de 2017, realizamos mais de 140 ataques para remover os principais líderes da AQAP e interromper sua capacidade de usar espaços sem governo para recrutar, treinar e planejar operações contra os EUA e nossos parceiros em toda a região", disse o porta-voz da Marinha, Sean Robertson, em um email.

"Nossos parceiros regionais têm um histórico comprovado de perseguir agressivamente organizações terroristas e lhes negar refúgio no Iêmen, e o Pentágono não tem qualquer razão para duvidar de sua determinação", escreveu ele.

A coalizão liderada pela Arábia Saudita comentou dizendo que "continua seu compromisso de combater o extremismo e o terrorismo".

Os Emirados Árabes Unidos não responderam a repetidos pedidos de comentários.

No início de 2016, a Al Qaeda se retirou da cidade portuária de Mukalla, no sul, e de sete áreas da província vizinha de Abyan, segundo acordos com os Emirados Árabes, de acordo com cinco autoridades militares e governamentais e quatro mediadores tribais envolvidos no acordo.

O acordo incluía uma cláusula segundo a qual 10 mil membros da tribo local --incluindo 250 militantes da Al Qaeda-- seriam incorporados ao Cinturão de Segurança, as forças iemenitas na área, disseram um negociador da Al Qaeda e dois comandantes do Cinturão de Segurança.

Um acordo para a retirada em fevereiro da cidade de al-Said, na província de Shabwa, foi mais longe, apurou a AP. A coalizão prometeu pagamentos aos membros da Al Qaeda que saíram, segundo o chefe de segurança de Shabwa, Awad al-Dahboul, um mediador e dois funcionários do governo.

Al-Dahboul disse que cerca de 200 membros da Al Qaeda receberam pagamentos. Ele não sabia os valores exatos, mas disse que 100 mil rials sauditas (US$ 26 mil) foram entregues a um líder da Al Qaeda na presença de comandantes dos Emirados Árabes.

Milhares de combatentes tribais, incluindo membros da AQAP, também deveriam ser levados para a milícia Shabwa Elite, financiada pelos Emirados Árabes, disseram o mediador e dois oficiais.

Al-Shamiri, o ex-assessor do governador de Taiz, alertou que os militantes serão difíceis de serem removidos após se infiltrarem em tais funções. "Vamos nos livrar dos houthis e seremos atingidos por grupos terroristas."