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Monstro racional: como o terror se encaixa no plano do Estado Islâmico

Christoph Reuter

26/11/2015 06h00

"Foi uma noite terrível. Nós ouvimos o som de jatos, as detonações. Então, a luz apagou de repente e tudo caiu na escuridão", diz a jovem. Ela disse que só conseguia ver os clarões das explosões, com uma bomba caindo perto de onde ela estava. "Mas não quero morrer depois de tudo o que já passamos aqui."

A mulher é de Raqqa, onde o Estado Islâmico estabeleceu seu quartel-general na Síria. Ela vive ali com seus pais e irmãos. Ainda. Assim como muitos outros civis. Por telefone, ela descreveu a primeira onda de ataques na "guerra" que o presidente da França, François Hollande, declarou contra o grupo extremista após os ataques em Paris.

As bombas lançadas por caças franceses atingiram tanto bases em uso quanto abandonadas do Estado Islâmico, o antigo campo militar da Divisão 17 de Bashar Assad, a policlínica, o hipódromo e a principal linha de transmissão de energia. O irmão da mulher é um taxista que testemunhou vários combatentes feridos sendo levados ao hospital, que foi fechado para os civis.

Mesmo assim, o ataque provavelmente não atingiu qualquer líder do Estado Islâmico. Os ataques aéreos no fim de semana foram aparentemente uma tentativa de matar Abdelhamid Abaaoud, que é considerado a figura chave por trás dos ataques em Paris e que os franceses inicialmente acreditavam estar em Raqqa. Ele acabou sendo morto na manhã de quarta-feira nas batidas policiais em Saint Denis, um subúrbio de Paris.

Mas os altos escalões do Estado Islâmico estão vivendo há meses nas áreas residenciais densamente povoadas da cidade e são cuidadosos em manter seus movimentos discretos. Assim, eles provavelmente conseguiram escapar dos ataques aéreos da coalizão liderada pelos Estados Unidos, que estão ocorrendo há 15 meses.

Os ataques em Paris, Beirute e Ancara, e a derrubada do avião de passageiros russo da Metrojet na Península do Sinai, mostraram às pessoas de todo o mundo quão vulneráveis elas estão. Mas isso não vale da mesma forma para os autores desses ataques: no máximo, os ataques aéreos enfraqueceram o Estado Islâmico, mas com certeza não o derrotaram. Hollande declarou uma guerra que é quase impossível de travar.

Abordagem não sustentável

Os jatos franceses mal tinham pousado quando o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, emitiu uma rejeição a formas de guerra que exijam um maior envolvimento. Enviar tropas terrestres para a Síria ou Iraque, ele disse, seria um erro. O conselheiro de segurança dos Estados Unidos, Ben Rhodes, disse: "Não se trata de uma simples relutância em empregar tropas terrestres. É uma crença de que não é uma abordagem sustentável".

Depois de Paris, a questão de como melhor nos opormos ao Estado Islâmico se tornou mais urgente do que nunca. Mas para responder a essa pergunta, precisamos de uma ideia clara sobre que estratégia os jihadistas podem seguir. A ideia de que os ataques foram ações desesperadas de um grupo em colapso de extremistas apocalípticos não é consistente com a situação militar em solo, nem com a própria organização. Também é implausível que os ataques tenham ocorrido nesse instante porque só agora apareceu a oportunidade.

Porque em tudo o que o Estado Islâmico tem feito nos últimos anos, seja a tomada do controle de cidades ou a conquista de regiões inteiras, ele só lançou ofensivas após preparação meticulosa e em momentos em que o sucesso parecia mais provável. Uma organização que foi capaz de empregar 23 caminhões blindados cheios de explosivos, artilharia pesada e gás mostarda apenas para um ataque em setembro a duas pequenas cidades sírias certamente conta com meios financeiros e militares, assim como perícia, para também lançar ataques a outros lugares.

Assassinatos anteriores de comandantes rebeldes e jornalistas fora da Síria e do Iraque revelaram um padrão: o Estado Islâmico está contrabandeando células dormentes há muito tempo, ou as recruta localmente. Ele só as ativa meses depois e os assassinos costumam ser realizados por confidentes próximos das vítimas. Desde 2013 no mínimo, o grupo extremista tem conseguido se infiltrar nas forças inimigas, como as milícias curdas, o que sugere logicamente que o EI conta com várias células estabelecidas na Europa que estão apenas aguardando pelo sinal para atacar.

Apenas agora, ao que parece, o grupo terrorista parece acreditar que os ataques no Ocidente, que há muito vinha ameaçando, apresentam mais benefícios que custos. A Europa está mais frágil recentemente, em parte por ter recebido mais de um milhão de refugiados, tornando-se mais aberta a preconceito, pânico e polarização política. Essa é exatamente a vulnerabilidade que os terroristas aparentemente querem explorar. O fato de um passaporte sírio intacto (e aparentemente falso) ter sido encontrado perto do corpo de um dos homens-bomba provavelmente não foi coincidência. De repente, todos os refugiados sírios são vistos como terroristas potenciais –assim como o Estado Islâmico desejava.

Um erro

Os ataques em Paris foram operações complicadas do ponto de vista logístico, com pelo menos oito terroristas atacando em vários pontos da cidade. Eles provavelmente prepararam o ataque por um período longo, o tempo todo evitando chamar atenção. Mas também foi um ataque relativamente simples do ponto de vista técnico. Os terroristas visaram uma sala de shows e restaurantes desprotegidos --e não conseguiram superar a segurança no Stade de France.

Antes dos ataques mais recentes, a teoria predominante era de que o Estado Islâmico não estava realizando ataques terroristas no exterior por ser incapaz de fazê-lo. Isso foi um erro derivado de um entendimento equivocado por parte dos especialistas em terrorismo, políticos e jornalistas, de que o Estado Islâmico deixaria para a Al Qaeda a noção mal concebida de que o terror por si só levaria ao colapso dos regimes árabes, da Arábia Saudita ao Egito, assim como a dissolução dos Estados Unidos.

Mas a previsão da Al Qaeda estava errada. Tanto o ataque aos turistas em Luxor, no Egito, assim como os ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, provocaram repostas rápidas e severas. No Egito, a resposta resultou no colapso dos grupos islamitas propensos à violência, enquanto a Al Qaeda foi expulsa do Afeganistão depois do 11 de Setembro.

A Al Qaeda acreditava que as massas se ergueriam em seu apoio, o que nunca aconteceu. A ideia de ressuscitar o império islâmico global pode ter existido como uma vaga utopia, mas o grupo não sabia ao certo como chegar lá. A Al Qaeda nunca teve uma estratégia militar para a conquista de território, nenhum plano para tomada de cidades inteiras e não tinha ideias para o estabelecimento do controle sobre fontes confiáveis de receita.

O Estado Islâmico, por sua vez, visava estabelecer um Estado desde o início. Essa meta faz parte do DNA do grupo. O fato de ter evitado por muito tempo realizar grandes ataques no Ocidente foi interpretado de forma errônea como fraqueza. Mas o Estado Islâmico apenas inverteu as prioridades há muito mantidas pelos jihadistas. Ataques ao poder central do Estado fracassaram consistentemente, primeiro no Egito e mais recentemente no Iraque. Foi aí onde o Estado Islâmico nasceu há quase uma década, a partir de uma coleção de radicais iraquianos e estrangeiros, antes de receberem a adesão de oficiais das forças armadas e serviços secretos iraquianos, que foram debandados em 2003.

Esses homens, cujos anos de formação foram passados preservando o poder de Saddam, assumiram a liderança do Estado Islâmico em 2010 e transformaram o grupo no monstro de ações calculadas e militarmente bem-sucedido que conhecemos hoje. De lá para cá, o grupo terrorista demonstrou repetidamente sua habilidade de mudar e se adaptar. Quando sua primeira tentativa de expansão militar fracassou em 2008, ele se transformou em uma esquiva e temível organização mafiosa em Mosul, uma metrópole comercial no norte do Iraque, vivendo de dinheiro de proteção. Todas as empresas, supermercados e restaurantes –até mesmo farmácias e corretores imobiliários– eram sistematicamente extorquidos, com capangas homicidas enviados para coletar o dinheiro. Segundo estimativas americanas, o Estado Islâmico conseguia arrecadar cerca de US$ 12 milhões (cerca de R$ 44 milhões) por mês apenas em Mosul.

Imediatismo brutal

Quando a autoridade do Estado ruiu na Síria em 2012, em consequência da guerra civil, chegou o momento do Estado Islâmico expandir --a princípio de modo clandestino, mas depois com imediatismo brutal.

Os planos elaborados pelo estrategista do Estado Islâmico, Haji Bakr --que foi morto no início de 2014 no norte da Síria-- para conquistar o país dividido pela guerra foram basicamente uma combinação dos métodos comprovados de Saddam Hussein de opressão com a estratégia de Lênin de orquestrar uma tomada de poder, por meio de grupos pequenos, mas poderosos, de combatentes. Mas eles não eram apenas adeptos de atacar duramente --o Estado Islâmico provou ser perfeitamente capaz de se adaptar a qualquer situação que se apresentasse. Por muitos anos, Haji Bakr foi um coronel da agência de inteligência das forças armadas iraquianas, foi um especialista em logística brilhante e uma espécie de gerente de projeto no mundo sombrio do terror.

Expandir alcance e poder em nome da jihad era o seu novo Projeto. O Grupo estava externamente realizando a vontade de Deus, mas permanecia internamente flexível a ponto de sua própria habilidade de mudar e se transformar se tornar seu grito de batalha: "Baqiya wa tatamaddad", ou "manter-se e crescer". A ideia é atacar quando possível, mas "hibernar" no inverno quando necessário, apenas para reaparecer e atacar de novo.

Nessa estratégia, os ataques terroristas são apenas um meio entre muitos. Eles servem para demonstrar a vulnerabilidade dos atacados, como vingança pelos ataques aéreos do Ocidente, para ajudar a recrutar apoiadores adicionais e para ressaltar a alegação de onipotência do Estado Islâmico. Mesmo assim, esses ataques são uma tática ambivalente para o Estado Islâmico --porque como Estado, como deseja ser, o Estado Islâmico é vulnerável. Ele possui um território que pode ser atacado.

Em duas coleções de arquivos deixadas para trás pelo Estado Islâmico quando fugiu da província de Aleppo, após os combates ocorridos ali em janeiro de 2014, não havia indicações de que ataques estavam sendo preparados contra a Europa ou os Estados Unidos. Não havia planos para o estabelecimento de células dormentes, treinamento militar e nenhuma menção ao que os radicais islâmicos europeus deveriam fazer ao voltarem para casa. Igualmente, não havia detalhes relacionados a transferências de dinheiro. Os arquivos incluíam documentos do quartel-general do Estado Islâmico em Aleppo e os planos de Haji Bakr para o desenvolvimento do Estado Islâmico. Ambas as coleções foram analisadas com exclusividade pela "Spiegel". Na época, toda a energia e recursos do grupo estavam focados na expansão na Síria e Iraque.

Aumentando o ceticismo europeu

Entretanto, os planos apenas se referiam a parte de uma estratégia maior, e só se estendiam até o final de 2013. Mas refletiam as prioridades do Estado Islâmico: expansão, controle, domínio. Se queriam um Estado, primeiro era preciso criá-lo. Essa ênfase é exibida claramente nas decisões tomadas pelo Estado Islâmico ao longo dos últimos dois anos.

Tudo isso leva à pergunta: que cálculos agora levaram o Estado Islâmico a perpetrar ataques no Ocidente? Primeiro, eles servem ao Estado Islâmico para aumentar o ceticismo dos europeus em relação aos refugiados muçulmanos. Segundo, o Estado Islâmico se posiciona nos enormes campos de batalha que cercam seus territórios principais, de uma forma que dificultaria para outros lançarem uma grande ofensiva por terra contra os jihadistas. Uma ofensiva dessas também exigiria um grande número de tropas. A partir dos comentários ocidentais, particularmente nos Estados Unidos, os estrategistas do Estado Islâmico sabem que uma ofensiva por terra envolvendo tropas ocidentais é extremamente improvável.

Caso essa ofensiva venha a ocorrer, o Estado Islâmico acredita que o ataque poderia, paradoxalmente, ajudar o grupo a longo prazo. Tropas terrestres provavelmente só seriam empregadas com aprovação da Rússia, e Moscou apoia Assad. E se o Ocidente mudar de posição e de repente intervir na Síria ao lado de Assad, todos os rebeldes no país se tornariam imediatamente inimigos do Ocidente. Caso isso aconteça, o Estado Islâmico poderia posar como protetor dos sunitas na região e expandir sua influência.

O velho ditado, de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo, não mais se aplica na Síria e no Iraque. Em ambas as zonas de combate, os esforços americanos foram tolhidos até o momento. No norte da Síria, os aliados curdos dos Estados Unidos são, infelizmente, inimigos de outros aliados de Washington, os turcos. No Iraque, o inimigo xiita do Estado Islâmico também é inimigo dos Estados Unidos. As milícias xiitas, sob liderança militar da Guarda Revolucionária do Irã, estão altamente engajadas na batalha contra o Estado Islâmico, mas em sua ferocidade, também empurram mais sunitas para os braços do Estado Islâmico.

'Realpolitik' escrupulosa

Somados, o conflito entre sunitas e xiitas e o bombardeio turco a posições curdas reduzem a pressão sobre o Estado Islâmico. Sim, o Estado Islâmico foi forçado a reconhecer algumas perdas nos últimos dias: ele perdeu a pequena cidade de Sinjar, no norte do Iraque, há não muito tempo, após 15 meses de combate com os combatentes peshmerga curdos. Em dois lugares, os curdos conseguiram bloquear a estrada mais importante que liga as duas "metrópoles" do Estado Islâmico, Raqqa e Mosul. Os bombardeios americanos igualmente destruíram 116 caminhões-tanque usados pelo Estado Islâmico para transportar seu petróleo. No Iraque, o Estado Islâmico está lentamente perdendo território desde que lançou um ataque relâmpago para tomada da capital provincial de Ramadi, a oeste de Bagdá, em meados de maio. Enquanto isso, na Síria, a expansão do Estado Islâmico praticamente estagnou desde setembro.

Mesmo assim, ele ainda está longe de exibir as convulsões de um império em colapso. O murmúrio constante sobre fim dos tempos e batalhas apocalípticas podem servir como boas relações públicas para o Estado Islâmico –tanto junto aos seus seguidores quanto ao restante do mundo. Mas se destruição fosse a única meta pretendida pelo Estado Islâmico, ele não teria tentado estabelecer um Estado, não teria sido cuidadoso em evitar danos aos silos de grãos quando os tomava, não buscaria uma "realpolitik" escrupulosa, mesmo junto aos seus próprios inimigos.

Os estrategistas do Estado Islâmicos pensam várias jogadas à frente. Para derrotar o grupo terrorista, o Ocidente precisa fazer o mesmo. Ele deve unir os sírios pró-regime com os rebeldes, um projeto que não terá sucesso enquanto Assad permanecer no poder e que foi dificultado ainda mais pela intervenção russa. No Iraque, as facções sunita e xiita divididas pelo medo e ódio devem se unir de novo –apesar de o Ocidente só poder ajudar, pois são os próprios iraquianos que precisam conseguir isso. Resumindo, o Ocidente --juntamente com a Rússia, Irã e os países árabes do Golfo-- devem criar as condições que permitam que uma ofensiva terrestre contra os jihadistas seja possível.

Mas enquanto isso não acontecer, o mundo permitirá que um monstro continue crescendo. É um monstro que hoje está aplicando seu "Modelo Sírio" de expansão de poder, testado em batalha, na Líbia. E é um monstro que pode até mesmo deixar de lançar ataques terroristas caso seja deixado em paz para continuar expandindo seu domínio no Oriente Médio. Porque o terror, em última análise, é apenas um meio para os fins do Estado Islâmico.