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Grupo investiga tortura praticada durante décadas pelo governo na Tunísia

O professor Rached Jaidane passou 13 anos preso por conspiração contra o então governante da Tunísia, Zine el-Abidine Ben Ali. Ele afirma que as acusações são falsas e que processou o governo, sem conseguir resultados - Mauricio Lima/The New York Times
O professor Rached Jaidane passou 13 anos preso por conspiração contra o então governante da Tunísia, Zine el-Abidine Ben Ali. Ele afirma que as acusações são falsas e que processou o governo, sem conseguir resultados Imagem: Mauricio Lima/The New York Times

Carlotta Gall

Em Túnis (Tunísia)

21/05/2015 06h00

Uma das formas de tortura mais famosas era o “frango assado”, uma posição obscena em que a vítima era suspensa nua, como um pássaro amarrado em um espeto.

Durante os meses de interrogatório, que começaram quando ele tinha apenas 17 anos, Mohamed Hamemi, hoje um treinador de atletismo com 45 anos, repetidamente suportou a postura excruciante, vítima da repressão do governo contra um movimento islâmico na década de 1980.

“Há histórias que eu nem consigo contar”, disse ele. “Você passa o dia todo nu, com os pés algemados, na posição do frango. Quando todo o seu corpo fica azul, eles deixam você cair, jogam água em você e depois penduram novamente.”

Hamemi é um dos milhares de tunisianos que visitaram a recém-formada Comissão de Verdade e Dignidade do país, um esforço ambicioso para examinar os abusos do passado e responder a demandas por justiça.

Embora o esforço da Tunísia tenha como meta unificar e curar, não é aceito por todos no país. A comissão teve dificuldades com a burocracia para obter seu financiamento e com a polícia para ter acesso aos arquivos, mesmo antes de abrir suas portas ao público em dezembro.

Há dúvidas crescentes sobre a comissão conseguir atingir seus objetivos nobres. Os dois principais partidos políticos do país buscam a reconciliação no interesse da estabilidade nacional, mas parecem menos interessados em justiça. E os membros da elite política e empresarial do antigo regime conservaram influência na nova ordem democrática.

“Há uma resistência por parte do governo, por isso temos muitos desafios”, diz Sihem Bensedrine, ex-jornalista e ativista dos direitos humanos que lidera a comissão. “Esse é o nosso trabalho, desconstruir a máquina, entender como ela funciona, e depois reconstruir sabendo o que não fazer.”

Durante os próximos quatro a cinco anos, a comissão prevê revelar toda a gama de violações de direitos humanos cometidas durante quase 60 anos de regime autoritário na Tunísia e responsabilizar aqueles que cometeram os crimes mais chocantes.

Seu período de estudo se inicia em 1954, um ano antes da independência da França, e inclui o longo governo de dois ditadores, os presidentes Habib Bourguiba e Zine el-Abidine Ben Ali. Ele abrange a grande matança ocorrida durante o movimento de independência; a tortura e a prisão de cerca de 30 mil sindicalistas, estudantes, esquerdistas e islâmicos pela ditadura; e as vítimas da revolução de 2011, que deu início à Primavera Árabe: 338 mortos e 2.147 feridos.

“Não se trata de um regime ou de outro”, diz Emtyez Bellali, do setor da Organização Mundial contra a Tortura em Túnis, a capital. “A tortura tem sido a forma de governo neste país. Precisamos lutar contra isso, porque é a mentalidade dominante.”

Hamemi foi torturado durante a repressão aos islâmicos. Ele foi junto com dois colegas de cela apresentar suas reivindicações à Comissão de Verdade, e os três deixaram a seção com os ombros curvados contra o vento cortante.

“Eles nos batiam com paus e cabos elétricos”, disse Hamemi em uma entrevista na qual, em determinado momento, caiu em prantos. “Eles colocavam paus até nas nossas partes íntimas. Eles amarravam nossos órgãos e os puxavam. Eu também fui pendurado de cabeça para baixo em uma porta, com as mãos amarradas, por cinco a seis horas.”

Mohamed Salah Barhoumi, um motorista de táxi preso duas vezes, disse ter recebido tratamento similar.

“Fui assediado por 13 anos pelo governo, e minha família também”, disse ele em uma entrevista. “Por três dias seguidos, eles fizeram o ‘frango assado’ comigo. Dia e noite com tapas, golpes, todo tipo de chute.”

Os torturadores queriam informações, e todos davam nomes e até mesmo confessavam crimes que não haviam cometido, disse Hamemi. “Se você se recusasse a assinar, eles voltavam a torturá-lo.”

Rached Jaidane, professor de matemática, foi preso por 13 anos por conspirar contra o presidente, uma acusação inventada, segundo ele. Ele tentou processar as autoridades responsáveis do governo do ex-ditador Ben Ali, com pouco sucesso.

“É importante ter audições públicas, na televisão”, disse Jaidane, de modo que as gerações futuras saibam o que aconteceu. “Talvez seja difícil, mas temos que ousar.”

Muitas vítimas que esperavam por justiça rápida após a revolução estão desiludidas com a lentidão do processo. Os advogados se queixam da falta de vontade política, bem como das ineficiências e das divisões no seio da Comissão de Verdade.

Bensedrine, chefe da comissão, tem sido criticada por sua liderança combativa pelos colegas e pela mídia, que é hostil à ideia da justiça de transição.

Ela disse em uma entrevista que o novo governo tinha inicialmente apoiado o trabalho da comissão, mas não tinha cumprido os acordos. Os burocratas atrasaram seus fundos, ela disse, e a polícia impediu-a de remover arquivos do governo do palácio presidencial, apesar de ter prometido cooperar.

Bensedrine disse que planejava construir um banco de dados com milhares de casos. Os casos mais flagrantes serão levados a câmaras especiais de acusação. Como o ato de testemunhar pode ser tão traumático quanto a tortura original, psiquiatras estão assessorando as vítimas.

Os ex-companheiros de cela estão divididos sobre que tipo de justiça gostariam. Alguns querem uma compensação financeira para suas famílias, após anos de penúria forçada. Barhoumi quer a restauração de sua licença de táxi, que ainda não conseguiu após quatro anos de burocracia. Hamemi gostaria de ouvir seus torturadores pedirem desculpas. “Eu poderia ter feito isso com minhas próprias mãos depois da revolução”, disse ele, “mas queria fazê-lo por via da lei”.