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Países entram na corrida por espaço no fim do mundo antártico

Cientista caminha com a igreja ortodoxa russa ao fundo, em área de bases da Antártida - Daniel Berehulak/The New York Times
Cientista caminha com a igreja ortodoxa russa ao fundo, em área de bases da Antártida Imagem: Daniel Berehulak/The New York Times

Simon Romero

Na Estação Bellingshausen (Antártida)

31/12/2015 00h04

Em uma ilha cheia de geleiras com fiordes e leões-marinhos, a Rússia construiu a primeira igreja ortodoxa da Antártida sobre um morro próximo à sua base de pesquisas, transportando os troncos da Sibéria.

A menos de uma hora em snowmobile, ou "motoneve", trabalhadores chineses reformaram a Estação Grande Muralha, um elemento chave no plano chinês de operar cinco bases na Antártida, com quadra interna de badminton, domos para proteger as estações de satélite e dormitórios para 150 pessoas.

Sem ficar para trás, a nova base futurista da Índia, Bharathi, construída sobre palafitas usando 134 contêineres de navios entrelaçados, parece uma espaçonave. A Turquia e o Irã também anunciaram planos de construir bases.

Mais de um século se passou desde que exploradores correram para plantar suas bandeiras no fim do mundo, e durante as próximas décadas este continente ainda deverá estar protegido como reserva científica, a salvo de invasores como atividades militares e mineração.

Mas diversos países estão correndo para exercer maior influência aqui, de olho não apenas no dia em que esses tratados protetores expirarem, mas também nas oportunidades estratégicas e comerciais que já existem hoje.

"Os novos atores estão entrando no que consideram uma casa do tesouro de recursos", disse Anne-Marie Brady, professora na Universidade de Canterbury da Nova Zelândia especializada em política da Antártida.

Algumas empreitadas se concentram nos recursos da Antártida que já podem ser aproveitados, como a abundante vida marinha. A China e a Coreia do Sul, que operam bases de última geração aqui, estão aumentando a pesca de krill, o crustáceo semelhante ao camarão que existe em abundância no oceano Antártico ou Austral, enquanto a Rússia recentemente obstruiu as iniciativas para a criação dos maiores santuários oceânicos do mundo.

Alguns cientistas estão examinando o potencial para colher icebergs da Antártida, que, segundo estimativas, teria as maiores reservas de água doce do planeta. Os países também promovem a pesquisa espacial e projetos de satélites para expandir suas capacidades de navegação global.

Partindo de uma base da era soviética, a Rússia expande as estações de monitoramento do Glonass, sua versão do Sistema de Posicionamento Global (GPS na sigla em inglês). Pelo menos três estações russas já estão em operação na Antártida, parte de seu esforço para desafiar o predomínio do GPS americano, e novas estações estão planejadas para locais como a base russa, à sombra da Igreja Ortodoxa da Santíssima Trindade.

Em outros pontos da Antártida, pesquisadores russos se gabam de sua recente descoberta de uma reserva de água doce do tamanho do lago Ontário, no Canadá, depois de perfurar quilômetros de gelo sólido.

"Você pode ver que estamos aqui para ficar", disse Vladimir Cheberdak, 57, chefe da Estação Bellingshausen, enquanto tomava chá sob um retrato de Fabian Gotlieb von Bellingshausen, um oficial e mais tarde almirante da marinha imperial russa que explorou a costa antártica em 1820.

Petróleo e diamantes

A riqueza mineral, de petróleo e gás do continente gelado são um prêmio para o longo prazo. O tratado que proíbe a mineração aqui --cobrindo reservas cobiçadas de minério de ferro, carvão e cromo-- deverá ser revisto em 2048 e poderá ser contestado antes disso. Pesquisadores encontraram recentemente depósitos de kimberlito que sugerem a existência de diamantes. E embora as avaliações sejam muito variáveis, os geólogos estimam que a Antártida contenha pelo menos 36 bilhões de barris de petróleo e gás natural.

Além dos tratados antárticos, persistem enormes obstáculos para o aproveitamento desses recursos, como os icebergs (ou banquisas) que podem pôr em risco as plataformas oceânicas. Depois há as distâncias da Antártida, com alguns depósitos minerais encontrados em locais varridos pelo vento em um continente maior que a Europa e onde as temperaturas no inverno giram em torno de -20 graus centígrados.

Mas os avanços tecnológicos poderão tornar a região muito mais acessível daqui a 30 anos. E mesmo antes disso os cientistas tentam determinar como a mudança climática poderá modificar o acesso a algumas regiões antárticas, potencialmente desestabilizando a camada de gelo do continente ou esgotando as populações de krill no oceano Antártico.

Estudiosos também advertem que a demanda por recursos em um mundo faminto por energia poderá aumentar a pressão para se renegociar os tratados da Antártida, possivelmente permitindo mais empreendimentos comerciais aqui muito antes que expirem as proibições.

As estações de pesquisa na ilha do Rei Jorge oferecem uma imagem do longo jogo das nações que tentam se afirmar neste continente coberto de gelo, desgastando o poder há muito mantido por países como EUA, Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia.

Missa e TV

Estar estacionado na Antártida significa adaptar-se à vida no continente mais seco, ventoso e frio do planeta, mas cada país consegue se sentir em casa.

Padres russos oferecem serviços regulares na igreja ortodoxa para os cerca de 16 falantes de russo que passam o inverno na base, sobretudo cientistas polares em campos como glaciologia e meteorologia. Seu número chega a aproximadamente 40 nos meses de verão, mais quentes.

No interior da base de Bellingshausen, satélites projetam a televisão russa diretamente para as telas planas nas paredes. Os pesquisadores desaparecem durante horas em uma biblioteca com livros de ficção científica e policiais. Outros buscam refúgio na sauna ("banya") de Bellingshausen, onde relaxam bebericando sua ração de algumas cervejas por semana.

"Sacrificamos algumas das boas coisas da vida para vir à Antártida", disse Oleg Katorgin, 45, um supervisor de obras que passou a maior parte do último ano em Bellingshausen. Para ajudar a matar o tempo, ele pinta murais com cenas idílicas de praias tropicais, com sereias. Suas pinturas estão nas paredes da sala de bilhar na base e em uma área de recreação na base chilena adjacente, sobre a baía de Maxwell.

A China talvez tenha as operações de crescimento mais rápido na Antártida. Ela abriu sua quarta estação no ano passado e avança nos planos de construir uma quinta. Está construindo seu segundo navio quebra-gelo e montando operações de perfuração em um domo de gelo a 4 mil metros de altitude, que é um dos lugares mais frios do planeta.

Autoridades chinesas dizem que a expansão na Antártida dá prioridade à pesquisa científica, mas também reconhecem que as preocupações com a "segurança de recursos" influenciam seus movimentos.

A recém-reformada Estação Grande Muralha da China na ilha do Rei Jorge faz as bases russa e chilena parecerem antiquadas.

"Aqui fazemos monitoramento do clima e outras pesquisas", disse Ning Xu, 53, o chefe da base chinesa, enquanto tomava chá durante uma forte nevasca no final de novembro.

A base cavernosa que ele comanda parece um campus universitário coberto de neve durante as férias, com a capacidade de abrigar mais de dez vezes as 13 pessoas que permaneciam durante o inverno antártico.

Yong Yu, um microbiólogo chinês, mostrou o prédio espaçoso, com mesas vazias sob um cronograma ilustrado que mostra o rápido crescimento das operações chinesas na Antártida desde os anos 1980. "Hoje estamos equipados para crescer", disse ele.

Enquanto alguns países expandem as operações na Antártida, os EUA mantêm três estações durante o ano todo no continente, com mais de mil pessoas durante o verão no hemisfério sul, incluindo as da Estação Amundsen-Scott, construída em 1956 em uma altitude de 2.700 metros sobre um planalto no polo Sul.

Mas pesquisadores americanos resmungam em silêncio sobre restrições orçamentárias e de ter menos quebra-gelos que a Rússia, limitando o alcance dos EUA na Antártida.

Estudiosos advertem que o fluxo político na Antártida poderá borrar a distinção entre atividades civis e militares muito antes que os tratados sobre o continente sejam renegociados, especialmente em partes da Antártida que são ideais para interceptar sinais de satélites ou reprogramar esses sistemas, potencialmente reforçando as operações de inteligência eletrônica.

Base brasileira

Alguns países tiveram dificuldades aqui. O Brasil abriu uma estação de pesquisa em 1984, mas ela foi quase toda destruída por um incêndio que matou duas pessoas em 2012, mesmo ano em que uma barcaça brasileira carregada de diesel afundou perto da base. Como se não bastasse, um avião de transporte militar Hercules C-130 ficou atolado perto da base chilena aqui desde que fez um pouso forçado em 2014.

Mas a série de infortúnios do Brasil criou oportunidades para a China: uma companhia chinesa ganhou em 2015 o contrato de US$ 100 milhões para reconstruir a estação brasileira.

Entre todas as mudanças, a Antártida mantém sua atração. A Coreia do Sul abriu sua segunda base de pesquisas em 2014, descrevendo-a como um modo de testar robôs desenvolvidos por pesquisadores coreanos para ser usados em condições extremas. Com a ajuda da Rússia, Belarus se prepara para construir sua primeira base antártica. A Colômbia disse este ano que pretende se somar a outros países sul-americanos com bases no continente.

"Os velhos tempos em que a Antártida era dominada por interesses e desejos de homens brancos de países europeus, australasianos e norte-americanos terminaram", disse Klaus Dodds, um estudioso de política na Universidade de Londres especializado em Antártida. "A realidade é que a Antártida é disputada geopoliticamente."

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves