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Em Gaza, mulheres desafiam Hamas com bicicletas

Amna Suleiman (segunda à esquerda) e outras mulheres andam de bicicleta em Beit Hanun, na faixa de Gaza  - Wissam Nassar/The New York Times
Amna Suleiman (segunda à esquerda) e outras mulheres andam de bicicleta em Beit Hanun, na faixa de Gaza Imagem: Wissam Nassar/The New York Times

Diaa Hadid e Majd Al Waheidi

Em Salahuddin Road (Faixa de Gaza)*

24/02/2016 06h02

As quatro mulheres rodando em bicicletas com engrenagens emperradas e correntes frouxas em uma manhã recente na Salahuddin Road, a principal e esburacada via de Gaza, causaram comoção.

O motorista de um tuk-tuk de três rodas desacelerou, e um adolescente em uma charrete puxada por cavalo tentou acompanhar o ritmo das mulheres. Um jipe cheio de atiradores do Hamas buzinou e ovacionou ao passar, e um grupo de homens em motonetas deixou um rastro de miados.

A visão das mulheres sobre duas rodas era tão incomum que Alaa, 11 anos, que pastoreava carneiros à beira da estrada, supôs que fossem estrangeiras e gritou em seu limitado vocabulário inglês: "Hello! One, two, three!"

As mulheres ignoraram o burburinho enquanto pedalaram de Jabalia, uma densa cidade feita com blocos de concreto no norte de Gaza, até o posto de controle do Hamas antes da travessia de fronteira para Israel, fortemente restrita. Elas desceram das bicicletas em um olival próximo e sentaram-se para um piquenique de sanduíches de queijo.

Amna Suleiman, 33, a líder do pequeno clube de ciclistas, deu alguns conselhos às demais, cerca de dez anos mais jovens.

"Ouçam, meninas, não resta nada no meu pomar além de lenha", disse Suleiman, usando um ditado palestino sobre as solteironas. "Mas vocês são jovens. Eu quero que, quando se casarem, façam da bicicleta uma condição para o casamento."

As outras riram diante da sugestão. "Ele me dará uma surra!", exclamou Asala, 21, que falou sob a condição de omitir seu sobrenome.

As mulheres, que começaram a pedalar em dezembro, são as primeiras em muitos anos a fazer isso em público em Gaza, onde o regime de quase uma década do movimento islamista Hamas foi acompanhado de várias iniciativas para restringir os modestos esforços das mulheres que desejam praticar esportes.

O Hamas impediu que elas corressem em uma maratona em Gaza em 2013, levando a seu cancelamento, e tentou proibir que mulheres andassem na garupa de motos conduzidas por homens. As mulheres atletas treinam em estádios fechados. As academias são unissexuais ou têm horários divididos rigidamente por gênero.

Em 2010, uma jornalista de Gaza, Asmaa al-Ghoul, recebeu cusparadas e ameaças quando ela e três amigas estrangeiras pedalaram cerca de 25 quilômetros do extremo sul da faixa até a Cidade de Gaza, em protesto contra a proibição informal de que mulheres andem de bicicleta após a puberdade.

Ahmad Muheisin, subsecretário-assistente do Ministério da Juventude e Esportes de Gaza, disse que mulheres pedalando em público representam uma "violação" dos valores de Gaza, mas que ele não tentaria detê-las, a menos que líderes religiosos tratem a questão com uma "fatwa" [condenação].

Muitos palestinos reprovam a ideia de mulheres pedalarem em público, porque os homens poderiam espiar inadequadamente suas pernas subindo e descendo, ou cobiçar seus traseiros.

As ciclistas mulheres são uma visão bastante rara em todo o mundo árabe, mas mulheres participam de passeios em grupo no Cairo e em Amã, e em Beirute elas pedalam bicicletas alugadas na Corniche, o calçadão que margeia o Mediterrâneo.

Atef Abu Saif, um escritor morador de Gaza, disse que até meados dos anos 1980 "era normal" ver mulheres pedalando. "Elas o faziam por prazer e diversão, à beira-mar", disse.

bicicleta - Wissam Nassar/The New York Times - Wissam Nassar/The New York Times
Amna Suleiman e sua amiga Asala fazem pausa após pedalar no norte da faixa de Gaza
Imagem: Wissam Nassar/The New York Times

Isso foi antes de Suleiman mudar-se para Gaza, quando adolescente, nos anos 1990. Mas ela possuía uma bicicleta quando era criança, em Damasco, na Síria.

Seu recomeço sobre duas rodas partiu de uma aposta: ela e duas amigas criaram uma competição para ver quem perderia mais peso em duas semanas. Suleiman, que também nada e toca teclado, perdeu quase 5 quilos, cortando pão, arroz e massas, e ganhou US$ 75.

"Foi como 'A Grande Perdedora', mas na versão Amna", disse ela.

Então decidiu comprar uma bicicleta, imaginando que a ajudaria a emagrecer. E também, disse ela, "queria lembrar a minha infância, quando não tinha problemas" e fugia com a bicicleta do vizinho em excursões por seu enclave em Damasco.

No início ela só rodava em Gaza pelo seu bairro de madrugada, quando poucos poderiam vê-la. Ela incentivou sua amiga Sara Salibi, 24, cujo irmão adolescente lhe ensinou a pedalar, também de madrugada. As duas compartilhavam o desafio às expectativas limitadas de Gaza sobre as mulheres. Mas fora isso são muito diferentes.

Salibi fuma, só em situações privadas; lê Milan Kundera, o autor checo; e cantarola canções do programa de televisão de Jimmy Fallon. "Eu gosto de dançar, mas não sei muito bem", disse ela. "Quero aprender a dançar."

Para a aventura ousada na Salahuddin Road na sexta-feira, Salibi usou um conjunto de jogging azul e preto no estilo anos 70, com o cabelo escapando de um boné de lã que enfiou na cabeça de má vontade.

Em comparação, Suleiman, que ensina o Corão para crianças e é voluntária em um orfanato, estava vestida com recato: lenço de cabeça vermelho, casaco vermelho comprido, calças largas pretas e meias com bolinhas vermelhas.

"Andar de bicicleta a faz sentir que está voando", disse Suleiman. Salibi ecoou esse sentimento, dizendo: "Eu me sinto livre".

Elas foram acompanhadas na sexta-feira pela irmã de Salibi, Nour, 21, e sua amiga Asala, cujo lenço de cabeça marrom combinava com seus tênis Converse.

O grupo pedalou diante de um prédio cuja fachada tinha buracos para vigiar cobertos de plástico, ainda não reparados desde a guerra de 2014 entre militantes de Gaza e Israel. As amigas passaram por terrenos baldios cheios de detritos que indicavam onde um dia existiu um prédio que foi bombardeado.

Ali perto, um combatente do grupo Jihad Islâmica que esperava um amigo descreveu as mulheres como "detestáveis e feias".

"O papel de nossas mulheres é obedecer a seus maridos e preparar a comida para eles dentro de casa, e não imitar os homens e pedalar bicicletas nas ruas", disse o homem de 33 anos, que se recusou a dar seu nome, mas repetiu a opinião de muitos moradores de Gaza entrevistados e diversos comentários nas redes sociais, depois que a notícia do grupo de ciclistas chegou à mídia palestina.

Uma minoria diferente aprovou, incluindo Abdul Salam Hussein, 53, que estava sentado perto de uma fábrica de cimento. "Qual é o problema de uma mulher andar de bicicleta?", exclamou ele. "As pessoas já foram à lua!"

Haniya Hamad, 51, mãe de nove filhos, viu as mulheres em Gaza da charrete em que percorria a estrada. Apontando para uma de suas filhas, Hamad disse, com orgulho: "Ela também anda de bicicleta. Usa a do irmão".

Mas Hamad havia dito a sua filha que não poderia continuar quando crescesse, para evitar fofocas e zombarias. Agora a garota mostrava um largo sorriso.

"Quando ela as viu, disse-me: 'Olhe, mamãe, mulheres andando de bicicleta!", comentou Hamad.

*Colaboraram na reportagem Anne Barnard, de Beirute (Líbano), e Rana F. Sweis, de Amã (Jordânia)